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ddLivrosLivros{ Baixe Livros de forma Rápida e Gratuita }Converted by convertEPubhttps://dlivros.com/https://dlivros.org/https://convertepub.com/Para UlinkaSumárioIlustraçõesMapasAgradecimentosIntroduçãoPARTE I: AS CRUZADAS1. Das percepções gregas às muçulmanas2. Reconquista cristã3. Universalismo: Integração e classificação4. Tipologias da humanidade e modelos de discriminaçãoPARTE II: EXPLORAÇÃO OCEÂNICA5. Hierarquias de continentes e povos6. Africanos7. Americanos8. Asiáticos9. EuropeusPARTE III: SOCIEDADES COLONIAIS10. Classificação étnica11. Estrutura étnica12. Projetos e políticas13. Discriminação e segregação14. AbolicionismoPARTE IV: TEORIAS DE RAÇA15. Classificações dos seres humanos16. Racialismo científico17. Darwin e a evolução socialPARTE V: NACIONALISMO E MAIS ALÉM18. O impacto do nacionalismo19. Comparações globaisConclusõesNotasCréditos das imagensIntroduçãoEsta obra rompe com a visão, relativamenteconsensual, de que a teoria das raças antecedeu oracismo; contesta o atual revisionismo acadêmico, queremonta a invenção do racismo à Antiguidade Clássica; erejeita a ideia do racismo como fenômeno inatopartilhado por toda a humanidade. Meu argumento é deque determinadas configurações de racismo só podemser explicadas com a pesquisa de conjunturas históricas,que precisam ser comparadas e estudadas no longoprazo. O racismo é relacional e sofre alterações com otempo, não podendo ser compreendido na sua totalidadeatravés do estudo segmentado de breves períodostemporais, de regiões específicas ou de vítimasrecorrentes — negros ou judeus, por exemplo.O conceito de racismo de que me servirei neste livro —preconceito em relação à ascendência étnica combinadocom ação discriminatória — serve de base para essaabordagem de longo prazo, permitindo-nos descrever assuas diferentes formas, continuidades, descontinuidadese transformações. A minha pesquisa se concentra nomundo ocidental, desde as Cruzadas até o tempopresente. Encontramos discriminação e preconceitosétnicos dentro da Europa desde a Idade Média até os diasatuais, e a expansão europeia deu origem a um corpocoerente de ideias e de práticas associadas à hierarquiados povos de diferentes continentes. Não defendo que arealidade do racismo seja exclusiva dessa zona do globo;a Europa limita-se a fornecer um cenário relativamenteconsistente, que será comparado com outras partes domundo onde se verificou a ocorrência de fenômenossemelhantes.A presente obra baseia-se, em grande medida, naanálise de fontes primárias impressas e visuais, que nosproporcionam novas pistas sobre o passado, servindo-seainda da interpretação crítica de uma importante eextensa literatura secundária, oriunda de vários camposdo saber, acerca do racismo.1 A hipótese na qual secentra a minha pesquisa considera que, ao longo dahistória, o racismo na forma de preconceito étnicoassociado a ações discriminatórias foi motivado porprojetos políticos.QUESTIONAMENTOSComo é possível que a mesma pessoa seja consideradanegra nos Estados Unidos, de cor no Caribe ou na Áfricado Sul e branca no Brasil? Foi esse questionamento quehá doze anos me levou a investigar a história do racismo.A arbitrariedade está no cerne da questão, mas a minhaformação me obrigava a levar a sério as formas declassificação. As classificações podem moldar ocomportamento humano em todos os níveis dasociedade. Neste caso, parecia óbvio que asclassificações raciais tinham o poder imenso deescalonar os grupos sociais, bem como de imporlimitações e oportunidades às populações dos paísesenvolvidos. Consultei os principais estudos sobre racismode Pierre van den Berghe, Carl Degler e George M.Fredrickson, obras que identificavam claramentepercepções raciais comuns e divergentes nos EstadosUnidos e no Brasil — como exemplo dessas divergências,nos Estados Unidos, uma gota de sangue africano defineum indivíduo como negro, ao passo que, no Brasil, ostatus de classe média embranquece a tez humana.2Contudo, sentia que tanto os antecedentes históricoscomo as formas de classificação em constante mudançacareciam de uma exploração mais atenta. O atualcontraste entre a França e os Estados Unidos é revelador:a classificação racial, vista como reforço dos preconceitosracistas, foi oficialmente abolida pelos franceses, aopasso que, nos Estados Unidos, a classificação racial fazparte de todos os inquéritos burocráticos, em especial nocaso de quem pretende entrar no país. Ao mesmo tempo,os afro-americanos apoderaram-se do termo “raça” parausá-lo como expressão de identidade coletiva e comoferramenta política contra a discriminação. O conceito declassificação racial como uma construção social queservia para justificar hierarquias e monopolizar recursosfoi subvertido.Com o avançar do meu trabalho, fui me dando contade que o questionamento que o inspirara se baseavaapenas na cor da pele; não eram incluídos, por exemplo,os nativos americanos, cujo tom de pele eraindiscutivelmente semelhante ao de muitos brancoseuropeus. Voltei a me sentir enredado nos meandros daclassificação. Onde e como se inventara o conceito depele-vermelha? Como seria possível manter o contrasteentre pele negra e branca, considerando a imensidão degradações, tanto na África como na Europa? Notei aindaque as classificações raciais, formuladas na Europa e nosEstados Unidos dos séculos XVIII e XIX com objetivoscientíficos, ambicionavam incluir todos os povos domundo numa disposição relacional sistêmica ehierárquica. Isso ia bem além da simples variação do tomda pele. Teria de associar experiências coloniaisconcretas à visão global dos povos do mundo. Issodefiniu meus questionamentos seguintes: como seproduziam os sistemas de classificação racial? Comoesses sistemas variavam no tempo e no espaço? Até queponto moldaram as ações humanas? Como foram asclassificações raciais influenciadas pelos conflitos e pelosinteresses sociais? Como as hierarquias raciais refletiramos preconceitos e estimularam a ação discriminatória?Essa lista de questionamentos ainda deixava lacunasna minha investigação. Os judeus, por exemplo, rarasvezes foram definidos pela cor da pele, e nem sequerforam incluídos nas muitas teorias de raçasdesenvolvidas nos séculos XVIII e XIX. Contudo, eles foramo principal alvo de extermínio racial na Alemanhanazista. À luz desse caso devastador de genocídio, oracismo não pode ser compreendido dentro dos limitesda história intelectual; as práticas sociais e políticas sãocruciais. Foi por isso que decidi estudar o racismo comoprática de discriminação e de segregação. Uma vez quetem sido usada tanto para legitimar a intervençãoinstitucional como para justificar a ação informal dosgrupos sociais, a classificação racial não pode serignorada. Daí ser necessário compreender as práticas, osestereótipos e as ideias classificatórias como aspectosinterligados. A classificação depende da percepção quetemos dos outros povos do mundo, e para entendê-la épreciso reconstituí-la. Em seguida, expandi minhainvestigação para outros casos de genocídio, abrangendoos hererós, na Namíbia, e os armênios, no ImpérioOtomano. Percebi que diferentes formas de racismoforam surgindo no tempo e no espaço, semprerelacionadas com as conjunturas específicas. Euprecisava me afastar de uma perspectiva de racismolinear e cumulativo, o que por sua vez levou a um últimoe essencial questionamento: em que condições adiscriminação e a segregação se transformaram emextermínio racial?INTERPRETAÇÕESA ideia de que a teoria das raças antecede o racismo —visão relativamente consensual entre os historiadores —pressupõe que a noção de ascendência étnica sedesenvolveu na Europa dos séculos XVIII e XIX de acordocom a teoria das raças, a qual definia a divisãoa Conquista Normanda adquiriu um fervorreligioso até então nunca visto, assumindo o caráter deguerra santa antes do início oficial da Primeira Cruzada,lançada pelo papa Urbano II em Clermont, em 1095. Éesse fervor religioso por parte de Rogério I queprovavelmente explica o motivo por que, em 1098,Urbano II tenha lhe conferido o status de núncioapostólico — reivindicado pelos seus sucessores ereconhecido por consecutivos papas. Emborainevitavelmente se tenha usado violência, com aescravização de muçulmanos em determinadascircunstâncias e até, no caso de Butera, conquistada em1088, o exílio da sua população para a Calábria, emmuitos pontos negociou-se uma rendição pacífica, o quepermitiu aos muçulmanos manter uma presençaimportante em muitas povoações.O status da comunidade muçulmana deteriorou-serapidamente durante o século XII, mesmo estando osgovernantes normandos da Sicília, bem como os seussucessores suábios até Frederico II, rodeados por artistas,geógrafos e filósofos islâmicos; além disso, durante oreinado de Rogério II, o reino absorveu as melhoresinovações administrativas do Egito fatímida. Osmuçulmanos viram-se excluídos das posições de poder eperderam o controle das suas terras, distribuídas pelosgovernantes normandos por aqueles que os haviamajudado na conquista. Mantiveram uma certa presençanas cidades da Sicília ocidental como mercadores eartistas (e, em certos casos, administradores), mas naszonas rurais a maioria foi reduzida à servidão ou àescravidão. Eram elogiados como guerreiros, acima detudo como soldados de infantaria e cavaleiros arqueiros:de Rogério II a Manfredo, e mesmo durante a expediçãode Frederico II à Palestina, os reis sicilianos tiveramguarda-costas e tropas especiais muçulmanas; e o reiManfredo lutou com tropas muçulmanas na batalhadecisiva de 1266 contra Carlos I de Anjou.28 Mas odeclínio geral da população muçulmana da Sicília foiconstante, situação agravada pelas políticas deconversão, iniciadas por Rogério II em 1153 e renovadaspor bulas papais em 1199 e 1208, que estimularam aemigração para o Norte da África.O ritmo célere do declínio do seu status explica asucessão de revoltas muçulmanas na Sicília: em 1189-90, durante o governo fraco de Tancredo; em 1197, apósa morte do imperador Henrique VI; em 1219-21, durantea ausência de Frederico II; e em 1243, mais uma vez comFrederico II, naquela que seria a derradeira menção aosmuçulmanos na cena política da Sicília. O padrão foi oseguinte: revolta, controle dos baluartes na zona rural(montanhas), reagrupamento de escravos e servos,resistência durante vários anos e derrota final, commassacres e deportação. Em 1221-4, após uma violentarepressão, Frederico II deportou as comunidadesmuçulmanas acusadas de rebelião para o norte daApúlia, especialmente para Lucera. O mesmo viria aocorrer em 1246, após três anos de resistênciamuçulmana. Os muçulmanos desapareceram então daSicília, tendo a última colônia em Lucera sido destruídapor Carlos II de Anjou em agosto de 1300: osmuçulmanos, que haviam se revoltado contra o novosoberano, foram aprisionados e transportados para osportos de Barletta e de Nápoles, para serem vendidoscomo escravos, uma operação que provavelmenteenvolveu 10 mil pessoas.29PENÍNSULA IBÊRICATal como vimos, o desaparecimento relativamenterápido dos muçulmanos da Sicília e do sul da Itália estavacompleto no início do século XIV. Mas, na PenínsulaIbérica, a presença muçulmana, que começara no ano711, durou até 1492 como potência política, e osmuçulmanos continuaram a existir como comunidadereligiosa distinta até 1502 em Granada e até 1526 emAragão. Os diferentes históricos políticos das duasregiões podem ser explicados em razão do contrasteentre dois séculos de domínio muçulmano na Sicília ecinco na maior parte da Península Ibérica (e quaseoitocentos anos na região de Granada). A rápidaconquista muçulmana da Península Ibérica, com exceçãodos territórios setentrionais, em menos de dez anosestabelece um grande contraste com as mais de seisdécadas de que os muçulmanos precisaram paraconquistar a Sicília, um processo atrasado pela forteresistência bizantina. Consequentemente, o islamismotornou-se muito mais enraizado na Península Ibérica,embora o número de comunidades cristãs também fossesignificativo e houvesse mais comunidades judaicas doque na Sicília. As relações intercomunitárias na PenínsulaIbérica baseavam-se assim nas três religiões abraâmicas:islã, cristianismo e judaísmo.Mapa 2.1. Reconquista cristã da Península Ibérica (722-1492).Fonte: Jonathan Riley-Smith, The Atlas of the Crusades. Londres:Times Books, 1991, pp. 32, 73.O domínio islâmico na Península Ibérica diluiu o efeitoda divisão anterior da península em duas comunidades:os visigodos e os suevos, instalados a noroeste. Osbascos eram a única exceção à divisão: nunca tinham seintegrado no reino visigodo e mantiveram durante váriosséculos uma resistência feroz a todas as formas dedomínio estrangeiro. Foi perto do seu território tradicionalno nordeste da Península Ibérica que a intervenção dosfrancos teve um impacto significativo, na segundametade do século VIII, o que estimulou tanto a dissidênciamuçulmana como a resistência cristã a sudoeste dosPireneus, tendo em 801 os cristãos criado o condado deBarcelona para controlar os territórios de ambos os ladosda cordilheira até a Provença. A distância e afragmentação do Império Carolíngio tornaram essecondado autônomo em finais do século X, o mesmoperíodo em que se assistiu à emergência da línguacatalã, embora a langue d’oc continuasse a ser usadasistematicamente até o século XIII para expressar umaliteratura profícua.30O reino visigodo anterior garantiu duas ferramentasessenciais para a reconquista da Península Ibérica: ocristianismo, que se enraizara entre a população após aconversão do rei Recaredo do arianismo ao catolicismo(c. 586) e o III Concílio de Toledo (589); e o legado dodireito escrito romano e dos elementos do direitoconsuetudinário hispânico e germânico, compilados numcódigo unificado em meados do século VII — um feitorelevante entre os reinos bárbaros. A religião cristã era omais importante veículo de resistência contra o domíniomuçulmano, com os novos reinos cristãos adotando a lexgothica, que manteve uma presença duradoura naCatalunha como estrutura legal e institucional. Areconquista cristã da Península Ibérica criou novasformas de identidade coletiva ao longo do eixo norte-sulda expansão a partir das Astúrias, um reino criado comorefúgio político pelos visigodos derrotados. Os territóriosda Galícia e de Portugal, a oeste, de Leão e Castela, aocentro, e de Navarra, Aragão e Catalunha, no leste daPenínsula Ibérica, tornaram-se entidades políticas entreos séculos VIII e XII. Mas, com exceção de Portugal, que setornou um reino independente na década de 1130, essasentidades políticas permaneceram ligadas entre si aolongo do processo de reconquista e mais além. A Galíciafoi integrada a Leão, que se associou a Castela em 1037,unindo-se finalmente em 1230; a Catalunha associou-seao reino de Aragão em 1150; e Navarra, entidade políticadesde o século IX e separada de Aragão em 1134, perdeuo território ao sul dos Pireneus, conquistado em 1512 porFernando, na época rei de Castela e de Aragão. Maistarde criaram-se identidades coletivas em torno dosreinos de Castela e de Portugal, com uma identidadebasca ainda desassociada de uma entidade políticaindependente, ao passo que a autonomia catalã semanteve sob a coroa de Aragão.31A constante e notória migração para a PenínsulaIbérica de francos, bem como de outros povos da EuropaOcidental e Setentrional, durante o período dereconquista cristã (legitimada pelo papa como Cruzadanos séculos XII e XIII) teve o seu impacto em váriosaspectosdos territórios ibéricos: as elites política eeclesiástica cristãs receberam uma injeção de sanguenovo, já que muitos francos, borgonheses ou ingleses setornaram governantes e bispos da região; a liturgia daIgreja alterou-se, com o ritual visigodo sendo substituídopelo romano; e a colonização dos territóriosreconquistados foi reforçada pelos recém-chegados.Esses novos imigrantes envolveram-se na conquista decidades importantes, como Toledo, Valência e Múrcia,embora, em alguns casos, tenha havido cidades quecaíram nas mãos de conquistadores que atraíram frotasde cruzados a caminho da Terra Santa, como aconteceuna conquista de Lisboa (1147), de Silves (1189) e deAlcácer do Sal (1217), naquela que viria a se tornar acosta portuguesa. Não obstante, a marcante imigraçãode cristãos de outras partes da Europa não deixougrandes vestígios quanto a identidades distintas: emboraa sua chegada tenha levado a algumas alterações emtopônimos, os imigrantes, no geral, integraram-seprontamente às entidades políticas cristãs. Essefenômeno marcava um contraste com a Sicília, onde em1266 os cronistas descreviam as tropas de Manfredocomo compostas de alemães, lombardos, regnicoli(habitantes do reino) e muçulmanos. Isso talvez possaser explicado pelo contexto italiano: como a “ameaça”muçulmana desaparecera rapidamente, as diferentesetnias podem não ter sentido necessidade de se integrar,tendo mantido, em vez disso, as suas identidadesseparadas. A presença constante de potências e detropas estrangeiras na Itália (gregas, germânicas,francesas e catalãs) também ajuda a explicar adiferença, bem como as consequências duradouras dosreinos bárbaros da região — consequências essasexpressas na identidade arraigada dos lombardos.A islamização e a cristianização foram processoscomplicados na Península Ibérica. A conquista islâmicaenvolveu dezenas de milhares de guerreiros do Norte daÁfrica, mas no início os conquistadores governavam umasociedade esmagadoramente cristã. A conversãogeneralizada e a arabização cultural da Penínsulaganharam ritmo no século X, o que foi facilitado pelamigração para o norte das comunidades cristãstransformadas em minorias. À reconquista seguiu-se arecristianização: consolidou-se uma fronteira ao longo dorio Douro no início do século X; o rio Tejo foi controlado nofinal do século XI, com a conquista crucial de Toledo em1085 e a primeira conquista de Lisboa em 1093; e apósum século (a partir de 1147) de reveses na luta contra odomínio almóada, em meados do século XIII conseguiu-seo isolamento do poder islâmico na região de Granada,com as conquistas de Córdoba, Múrcia, Jaén, Sevilha,Cartagena e Cádiz por Castela (1236-63), a conquista dasilhas Baleares e de Valência por Aragão e pela Catalunha(1229-45), e a conquista de Faro, o derradeiro baluartemuçulmano relevante, no Algarve por Portugal (1249). Talcomo se verificara na Sicília, o status dos muçulmanosapós a conquista cristã variou de comunidade paracomunidade: poderia representar pilhagem, massacre eescravidão; ou então, com a rendição e um pacto (o que,em geral, foi o caso), poderia representar a manutençãoda comunidade muçulmana com uma posição socialinferior, mas com um compromisso quanto a impostos,propriedade e respeito pela religião.32A resistência islâmica à conquista foi aparentementemais forte do que a cristã, já que no final do século XVhavia ainda um grande número de muçulmanos emValência, Aragão e Granada. Contudo, na PenínsulaIbérica ocidental e central, as comunidades muçulmanasentraram num declínio acentuado ao longo de doisséculos devido a uma pressão religiosa irresistível (todasas grandes mesquitas foram transformadas em catedrais,com os minaretes e os muezins sendo proibidos) e a leisde segregação. Os muçulmanos foram excluídos dogoverno municipal, restringidos a bairros específicos ebanidos de emprego a serviço do rei, bem como daparticipação no sistema judicial cristão. O vestuário erasujeito a regulamentações severas. A onda de conquistascristãs entre as décadas de 1230 e 1250 trouxe na suaesteira a expulsão dos muçulmanos dos centros urbanos.Em 1254 e 1276, revoltas muçulmanas em Valênciaforam violentamente reprimidas. Em 1264, uma grandesublevação entre os muçulmanos de Múrcia e daAndaluzia (ainda estávamos na primeira geração após aconquista cristã) foi contida com enorme esforço,desencadeando mais expulsões de centros urbanos,como em Múrcia. Em 1287, a conquista final de Minorcafoi seguida pela escravidão e deportação de toda apopulação. Nas décadas de 1220 e 1230 já tinham severificado expulsões em massa após a conquista dasoutras ilhas. Em 1293, as cortes (parlamento) deValladolid baniram a posse de terra por parte dosmuçulmanos, obrigando-os a vender as suaspropriedades a cristãos, obviamente a preços baixos.33Muito mais do que acontecera no caso da reconquistada Sicília, as condições impostas pela reconquista cristãna Península Ibérica criaram divisões étnicas queultrapassaram as fronteiras religiosas. A discriminaçãocontra os mozarabes ou moçárabes (a partir daexpressão árabe “must’arab” — literalmente, tornadoárabe), as comunidades cristãs que haviam sobrevividosob o jugo muçulmano na Península Ibérica, foi aindamais severa do que a discriminação contra a Igrejaortodoxa na Sicília e no sul da Itália. Em muitas cidadestomadas dos muçulmanos pelos cristãos setentrionais, obispo moçárabe foi substituído imediatamente por umbispo latino, em muitos casos estrangeiro, que impunhao ritual católico em detrimento do visigodo. Atualmente,isso talvez pareça algo irrelevante, mas na época o casorevestia-se de grande importância. Os diferentes rituaisexpressavam identidades diferentes — a origem de umacomunidade e a forma como evoluíra. O triunfo do ritualrepresentava o novo domínio político dos conquistadorese mostrava que, apesar de terem por vezes desfrutadode ajuda interna por parte dos moçárabes durante ocerco a uma cidade, desconfiavam da proximidade doscolaboradores com o inimigo. Apesar de serem cristãos,os moçárabes viram-se obrigados a renegociar o seustatus com os novos governantes, que redistribuíram oscargos militares, políticos e administrativos entre os seusseguidores.34A dificuldade da posição dos moçárabes pode ser vistanum episódio particularmente marcante. Em 1139, osoberano de Portugal, d. Afonso Henriques, lançou umataque arrojado na Andaluzia, a mais de 150 quilômetrosdo seu quartel-general em Coimbra. O soberano derrotouas tropas muçulmanas na batalha de Ourique e partiucom um grande saque formado pelos despojos da guerrae pela pilhagem de aldeias. Entre os numerososprisioneiros destinados à escravidão contavam-se maisde mil moçárabes (a crônica incluiu explicitamenteapenas os homens no “cálculo”). A libertação dessescristãos só foi conseguida através da intervenção deTeotônio, prior do importante convento de Santa Cruz deCoimbra.35 O episódio revela que os protestos e asorações dos moçárabes tinham sido ignorados, sendocapturados e agrilhoados, tal como acontecia aosmuçulmanos. Um outro episódio crucial ocorreu durantea conquista de Lisboa em 1147 — uma conquista queenvolveu cruzados alemães, flamengos, ingleses enormandos. Após a rendição, uma delegação dasdiversas tropas envolvidas entrou na cidade pararecolher o tesouro reunido pelos derrotados em troca dasua liberdade e para consagrar o cenário da conquistacom uma procissão. Segundo um cruzado anglo-normando anônimo, provavelmente o presbítero Rodolfo,as tropas alemãs e flamengas não respeitaram o acordoestabelecido e entraram na cidade em grande número,saqueando-a, abusando da população e cometendogestos violentos, entre eles o assassinato do antigo bispoda comunidade moçárabe.36 Esse episódio mostra que oscruzados não respeitavam os direitos da comunidadecristã existente, que se mantivera fiel à sua religiãodurante os anos de domínio muçulmano. O bispomoçárabe foi eliminado e substituído por Gilberto, umclérigo inglês que acompanhara os cruzados.37 Após aviolência, muçulmanos e judeus abandonaram acidade.38A presença militar dos almorávidas (a potênciaislâmica puritana invasora oriunda do noroeste da África)na Península Ibérica após a conquista cristã de Toledo em1085 trouxe consigo uma intolerância religiosa (proibiçãode comunidades religiosas não islâmicas, limitações àexpressão pública de religião e regras quanto aovestuário) que provocou uma nova onda de migraçõespor parte de judeus e moçárabes para territórios cristãos.Os almóadas, guerreiros de outra potência islâmicaaustera no Norte da África, foram também atraídos paraconflitos na Península Ibérica após as derrotas islâmicasde meados do século XII, provocando uma diáspora aindamais marcante entre as comunidades judaicas, acima detudo para a Sicília e para a Itália. Os judeus da PenínsulaIbérica haviam sofrido com as perseguições religiosasextremas nas últimas décadas do reino visigodo, tendo oXVII Concílio de Toledo decidido dispersar as comunidadesjudaicas, subjugar os habitantes judeus e separar dospais as crianças até os sete anos de idade para quefossem criadas por católicos.39 A circuncisão era tidacomo uma prática tão infame que a lex visigothorumpunia a falsa acusação de “homem circuncidado” com150 chibatadas públicas. Nesse mesmo período, o reiWamba decidiu punir com circuncisão os soldadosacusados de saque e de violação.40Depois de terem vivido em tal opressão, ascomunidades judaicas receberam, naturalmente, ainvasão islâmica como uma libertação, mas, com asperseguições renovadas trazidas pelos regimesalmorávida e almóada, os judeus procuraram apoio naspotências cristãs. Apesar dos conflitos locais, entre 1148e 1348, as comunidades judaicas nos territórios cristãosda Península Ibérica gozaram de certo nível de respeito eviveram em relativa tranquilidade, participandoativamente da vida política como conselheiros,embaixadores ou ministros do rei. Trabalhavam, acima detudo, como artesãos, mas também havia mercadores,médicos, coletores de impostos, empreiteiros ebanqueiros. Desempenharam um papel relevante na vidaintelectual das principais cidades, por exemplo Toledo,que ajudaram a transformar em importantes centros detradução de textos árabes e gregos para o latim.Tal estado de relativa coexistência foi interrompido em1348, com o primeiro grande ataque cristão aos judeusno bairro judaico de Barcelona, seguido por açõessemelhantes em Lisboa, em 1383, e em Sevilha, em1391. Este último se alastrou rapidamente para as maisimportantes cidades de Castela e de Aragão, além dePalma de Maiorca. O saque e o massacre de judeus eramas características básicas desses ataques cristãos, quepuseram em xeque o papel supostamente protetor daautoridade real. No início, os reis conseguiram manteralgum controle sobre a situação e punir os responsáveispelos tumultos. No entanto, o ano de 1391 representouum ponto de virada devido à escalada dos ataques e aonúmero de cidades envolvidas. A partir desse momento,os casos de violência local mantiveram-se durante osoitenta anos que se seguiram.41A intimidação das comunidades judaicas através demilhares de assassinatos levou a conversõesgeneralizadas; a prédica do santo dominicano VicenteFerrer (1350-1419) aproveitou-se dos debates públicosobrigatórios sobre cristianismo impostos às comunidadesjudaicas, como os que foram organizados em Tortosa em1413-4. A integração violenta de parte da populaçãojudaica no cristianismo não era um fenômeno novo, mastambém nunca fora implementada em tal escala, sendocontrária aos preceitos da conversão pacífica e voluntáriaestabelecidos pelo direito canônico. Essa série de açõesteve duas consequências principais: dividiu acomunidade judaica, alimentando a suspeita (ou melhor,o preconceito baseado na ideia das qualidades inatas dadescendência) entre a comunidade cristã de que osjudeus convertidos retomariam, em segredo, a antiga fé;e levou à divisão da comunidade cristã em cristãosvelhos e novos (convertidos recentemente). Estes embreve seriam estigmatizados, sofrendo os mesmospreconceitos que antes haviam sido dirigidos aos seusantepassados.42A onda de status de pureza do sangue, lançada em1449 em Toledo, com um motim de cristãos-velhoscontra cristãos-novos acusados de conluio com o rei parao aumento indevido de impostos, impediu os cristãos-novos de assumir cargos públicos e administrativos edefiniu uma nova divisão de linhagem ou “casta” no seioda comunidade cristã que atravessava as diferentesordens sociais — uma característica específica dassociedades ibéricas.43 A expulsão dos judeus daEspanha, em 1492, e de Portugal, em 1496 (neste últimoforam obrigados a se converter), selou o destino de umacomunidade extraordinária que desapareceu em razãoda crescente intolerância de um poder político cristãoque não estava disposto a aceitar a diferença religiosa nanova Península Ibérica “homogênea” (ver o capítulo 9para uma análise mais pormenorizada).44A comparação do destino sofrido pelas comunidadesjudaicas a sudoeste e a nordeste dos Pireneus émarcante, pois verificou-se um intervalo de dois séculosentre as duas sequências de acontecimentos quelevaram à expulsão. Durante a década de 1010, quandoda primeira onda de massacres, houve judeus mortos emRouen, Orléans e Limoges, bem como em Mainz e outrascidades do Reno, mas foi em 1096, depois do início daPrimeira Cruzada, que bandos de cruzados decidiramlimpar os seus territórios dos infiéis que haviam negado anatureza divina de Cristo e que o tinham entregado àsautoridades romanas para que fosse crucificado (umaacusação dúbia retirada do Novo Testamento). Muitascidades da Europa Ocidental e Central (França, Alemanhae Boêmia) foram devastadas por saques e assassinatos,levando à morte de milhares de judeus e a conversõesforçadas em massa. Em certos casos, os governantespermitiam que os judeus convertidos voltassem à sua féanterior por contestar a legitimidade do processo deconversão, embora o direito canônico condenasse aconversão violenta, mesmo aceitando as suasconsequências. A Segunda Cruzada, em 1146, foi maisbem organizada, não se repetindo o caos oportunista daPrimeira, embora se tivessem verificado massacres emColônia, Speyer, Mainz, Würzburg, Carentan, Ramerupt eSully. Em 1188, a Terceira Cruzada levou ao saque e aomassacre de comunidades judaicas na Inglaterra(Londres, York, Norwich, Stamford e Lynn). A Cruzadacontra os albigenses na Provença (1209-29) tambémlevou violência às comunidades judaicas locais. AsCruzadas abortadas em 1236, 1309 e 1320 deixaram umrasto de ataques antijudaicos em várias regiões daEuropa.45 Durante esse período, os judeus foramacusados de envenenar deliberadamente a água depoços, de raptar crianças que seriam assassinadasritualisticamente e de profanar a hóstia.46As expulsões de judeus decretadas na Inglaterra, em1290, e na França (à época um território muito maisreduzido), em 1306 e 1394, inauguraram a primeiralonga e intensa onda de antissemitismo na Europa.Durante esse período, duas razões explicam a relativatolerância dos cristãos em relação aos judeus naPenínsula Ibérica: os cristãos concentravam-se na guerracontra os muçulmanos, que representavam uma potênciaterritorial, além de uma religião rival; e as comunidadesjudaicas eram muito mais fortes e estavam maisintegradas em todos os níveis da sociedade cristã do quena França, Inglaterra ou na Alemanha. A estabilizaçãodos reinos e das sociedades cristãs na Península Ibéricaapós meados do século XIII, na sequência da destruiçãoda resistência muçulmana interna e da redução dainfluência de Granada,deu início a uma mudança parauma política religiosa mais intolerante, apoiada pornovas gerações de pobres e de clérigos inferiores, semacesso aos mesmos benefícios dos conquistadores.ORIENTE MÉDIOO status das comunidades judaicas no Oriente Médio,discriminadas e segregadas pelo Império Bizantino ebanidas de Jerusalém, também era complexo. Aconquista islâmica da Cidade Santa representou umalívio temporário da opressão anterior, fazendo com quepudessem regressar para lá, apesar dos protestos dopatriarca ortodoxo, que se rendera aos muçulmanos.Ainda assim, à semelhança dos cristãos, os judeus foramsubmetidos à discriminação islâmica.47 As condições doseu status foram definidas pelo famoso “Pacto” para osdhimmı¯s (não muçulmanos que vivessem em territóriosislâmicos), estabelecido durante o califado de ‘Umar ibn-al Khattab (634-44), segundo sucessor do profetaMaomé. O Pacto decretava que os não muçulmanos seencontravam sob a proteção dos muçulmanos.Consequentemente, não lhes era permitido o uso doAlcorão para troça ou interpretação equivocada, ofendero profeta, ridicularizar o culto islâmico, tocar numamulher muçulmana ou casar com ela, converter ummuçulmano ou atentar contra a vida ou a propriedade deum muçulmano, ou ajudar um inimigo ou auxiliar espiõesinimigos. Os não muçulmanos eram obrigados a usar oghiyar — um emblema distintivo, amarelo para os judeuse azul para os cristãos —, não podiam construir casasmais altas do que as dos muçulmanos, tocar sinos deigrejas, ler os livros sagrados em voz alta, beber vinhoem público, mostrar os crucifixos, nem montar a cavalo,apenas burros e mulas. Por fim, também eram obrigadosa enterrar os mortos em silêncio.Mapa 2.2. Estados cruzados na sua maior extensão (c. 1144). Fonte: Angus Konstam, The Historical Atlas of the Crusades.Londres: Mercury Books, 2004, pp. 80-1.Tal como veremos, a reprodução dessa lista completaserá útil. A violação de qualquer uma das seis primeirasregras fazia com que o transgressor fosse consideradofora da proteção garantida pelo Pacto; a violação dosegundo conjunto de seis regras podia levar apunições.48 Em finais do século IX, as restrições devestuário vigoravam com força para os dhimmı¯s. Elasproibiam os cristãos e os judeus de usar o qaba¯’, umtraje de seda khazz, e o as¸b (turbante), e impunham adiferenciação através da cor das vestes e de emblemas.A introdução de símbolos zoomórficos, por exemplo naforma de emblemas identificadores que tinham comoobjetivo humilhar o seu portador, também ocorreu nesseperíodo em outros locais. Na Ifríquia, por exemplo, osjudeus tinham de usar um emblema com a imagem deum macaco e os cristãos um com a imagem de umporco, enquanto no Egito os cristãos eram obrigados ausar na mão a tatuagem de um leão.É fácil reconhecer a longa influência desse Pactoislâmico em práticas cristãs posteriores contra judeus emuçulmanos.49 Os judeus do Oriente Médio tambémsofreram perseguições esporádicas durante o domíniomuçulmano, tendo a pior delas ocorrido durante oreinado do califa fatímida do Egito, Hakim, que em 1012ordenou a destruição de todas as igrejas e sinagogas,bem como a proibição da prática de qualquer outrareligião que não o islã.50 A conquista temporária daPalestina pelos turcos seljúcidas na década de 1070levou a uma devastação generalizada que não poupou osjudeus. Posteriormente, a primeira onda de conquistascruzadas teve um grande impacto nas comunidadesjudaica e muçulmana: em todas as cidades queofereceram resistência, como Jerusalém em 1099, osjudeus e os muçulmanos foram massacrados, e ossobreviventes vendidos como escravos. As comunidadesjudaicas só sobreviveram nas cidades que capitularam,como Ascalão e Tiro. Eram obrigadas a pagar impostos, àsemelhança de todos os não cristãos, reproduzindo aprática muçulmana em relação aos dhimmı¯s. Após asegunda década do século XII, a proibição de colôniasjudaicas em Jerusalém foi afrouxada, e um pequenonúmero foi autorizado a viver na cidade, embora umacomunidade propriamente dita só tenha sidorestabelecida depois da conquista da cidade porSaladino, em 1187. Mesmo então, a maioria dos judeusvivia fora das cidades, sobretudo nas aldeias da Galileia.Contudo, a legislação antijudaica dos III e IV Concílios deLatrão não foi aplicada no Reino Latino de Jerusalém.51Mapa 2.3. Avanços cristãos no Oriente Médio até 1187. Fonte: Angus Konstam, The Historical Atlas of the Crusades.Londres: Mercury Books, 2004, pp. 80-1.O tratamento relativamente tolerante dos judeus paracom os cristãos latinos no Oriente Médio após a primeiraonda de conquistas pode ser explicado pela constanteameaça do mundo islâmico circundante, pela falta deefetivos dos conquistadores, pela escassez de recursosnaturais e pela duração relativamente curta daexperiência colonial, entre 1099 e 1291.52 Se olharmospara as outras áreas analisadas num contexto globalsemelhante, isso pode explicar as diferentes políticas,além de diferentes formas de integração ou segregação,a que as comunidades conquistadas eram sujeitas emcada caso. A Sicília era uma ilha a 130 quilômetros dedistância do Norte da África e que ficava perto do sul daItália e do centro da cristandade latina. A PenínsulaIbérica fazia fronteira com a Europa Ocidental, mas dooutro lado dos Pireneus. A sua fronteira com o Norte daÁfrica, além do estreito de Gibraltar, tinha apenas trezequilômetros e era mais fácil de atravessar. SegundoLudolfo de Sudheim, um peregrino na Terra Santa (1336-41), a distância para o outro lado do estreito era tãocurta que uma lavadeira cristã e outra muçulmanapodiam discutir e se insultar, cada uma no seu lado.53 Aproximidade entre a Península Ibérica e a África permitiaque se realizassem importantes invasões em ambas asdireções, algo que em parte poderá explicar a longaresistência muçulmana na península, ao passo que adistância entre a Sicília e a África facilitou a reconquistacristã normanda da ilha, mas dificultou a manutençãodas conquistas de Rogério II na Ifríquia. A Terra Santa, poroutro lado, estava isolada da Europa latina: ficava acerca de 2 mil quilômetros do sul da Itália por viamarítima, embora desfrutasse de uma ligação com oChipre cristão (latinizado após a conquista da ilha em1191 por Ricardo I da Inglaterra), bem como com asredes coloniais venezianas e genovesas no Mediterrâneooriental.A experiência colonial dos cruzados na Terra Santa foiessencial: foi o primeiro caso de expansão europeiadesde os romanos em que os cristãos latinos tiveram delidar com vastas conquistas e administrações territoriaisnum ambiente hostil, longe das suas raízes. O governode uma minoria étnica, a criação de identidades locais —visíveis, por exemplo, nas crônicas de Guilherme de Tiroou de Fulco de Chartres —, a constante interação com aspopulações nativas, entre elas a maioria muçulmana,magistralmente registrada por Usama Ibn Munqidh, e amanutenção de elos com a Europa definiram um modelocolonial que viria a ser replicado no futuro.54 O fluxoconstante de novos migrantes, a renovação regular deligações com as elites política e cultural europeias,visíveis nas alianças matrimoniais, a atração de novoscavaleiros e a educação dos jovens na Europa — eramessas as principais características de um modelo que jáse debatia com os problemas das alianças e daintegração, ou segregação, entre as comunidades locaise as elites no poder.O Reino Latino de Jerusalém teve de gerir umapopulação convertida em massa ao islã ao longo dosquatro séculos anteriores. Durante a repressão dareligião dessa população, muitas mesquitas foramtransformadas em igrejas. O destino da mesquita Al-Aqsa, situada no monte do Templo de Jerusalém, perto daCúpula da Pedra, dá uma ideia da profanação e dadesconsagração sistemáticas levadas a cabo pelosconquistadoresem tais locais: começou por sertransformada em residência real e depois em quartel-general dos templários. As relações sexuais entremuçulmanos e cristãos estavam proibidas, sendo punidascom castração; os muçulmanos não podiam usar vestesfrancas; e eram obrigados a pagar um impostoindividual.55 O reino latino precisava ainda lidar com umagrande variedade de comunidades cristãs não latinas.Havia os gregos, presentes em todos os territórios doreino, mas concentrados acima de tudo no principado deAntioquia, e que eram apoiados pelo imperadorbizantino.56 Havia ainda os armênios, que mantinhamuma presença importante no condado de Edessa e queimpuseram o seu poder político na Ásia Menor, ondepuderam controlar um vasto território após a vitóriasobre os turcos durante a Primeira Cruzada.57 E haviatambém os jacobitas e os sírios, presentes nos territóriossetentrionais e mais além; os georgianos — embora taiscristãos mantivessem apenas uma presença simbólicaem Jerusalém; os nestorianos, mais importantes na Síriae na Ásia Menor do que na Palestina, e famosos pelassuas missões na Ásia Central; os maronitas, com raízesno Líbano; e, por fim, os coptas, com presença maismarcante no Egito.58O choque mais importante dos cristãos latinos com osdemais cristãos foi com os gregos ortodoxos, que eles serecusaram a usar na administração ou no exército, algocontrário à prática latina na Sicília. Isso provavelmenteocorreu em razão de os cristãos gregos da Palestinaterem, nos séculos anteriores, perdido a sua influênciapolítica e sido excluídos de cargos administrativos, mas ogoverno latino não lhes devolveu a igualdade legal. Ahierarquia religiosa grega, que conseguira resistir a trêsséculos de domínio muçulmano, foi quasecompletamente varrida da Terra Santa com as conquistascruzadas, apesar de seu suposto objetivo: salvar oscristãos orientais. Só os clérigos gregos locaisconseguiram sobreviver, mas numa rede reduzida, já quevárias das igrejas e uma parte das propriedades foramconfiscadas pelo novo clero latino em muitas cidades eterritórios colonizados pelos europeus. É preciso frisarque os cristãos latinos não forçaram conversões nemimpuseram o seu domínio sobre as comunidadesortodoxas.59 Os mosteiros gregos, bem estabelecidos,foram menos afetados pelas expropriações, tendo de ummodo geral sido respeitados, verificando-se inclusive acriação de novos. No entanto, algumas comunidadesforam removidas dos seus centros e perderam apropriedade durante a criação de um númeroimpressionante de comunidades latinas regulares, tantoreligiosas como militares.Após a conquista de Jerusalém, o patriarca gregoSimeão, que fugira para o Chipre antes da chegada doscruzados (ou por vontade própria, ou forçado pelosgovernantes muçulmanos da cidade), não regressou,passando os patriarcas gregos de Jerusalém a viver noexílio em Constantinopla. João, o patriarca grego deAntioquia, mudou-se para Constantinopla dois anosdepois da conquista da cidade pelos cruzados. Durante aexistência do Reino de Jerusalém, os cristãos latinoscriaram um número impressionante de dioceses: osarcebispados de Cesareia, Nazaré, Tiro, Bete-Seã e Petra;e os episcopados de Ramlá, Belém, Gaza, Hebron,Sebaste, Tiberíades, Banias, Sídon e Beirute. Verificaram-se desenvolvimentos semelhantes no condado de Trípoli,no principado de Antioquia e no condado de Edessa,chegando a um total de 31 dioceses.60 Em todos esseslocais, os patriarcas e os bispos gregos foram expulsos eas propriedades confiscadas, embora, em alguns casos, opoder das fações locais e a necessidade de alianças como imperador bizantino tivessem levado ao regresso brevede um patriarca grego (tal como se verificou emAntioquia, em 1165).61 O único bispo grego a conseguirsobreviver à onda latina pode ter sido o de Gaza e Beit-Jibrin: há registros que indicam que o arcebispo Meletocontinuou ativo por lá em 1164. Os gregos ortodoxos sóconseguiram recuperar parte das suas posses no Reinode Jerusalém quando, na sequência da conquista porSaladino, em 1187, a maior parte do clero latino e seusmosteiros desapareceu.As outras Igrejas orientais, como a armênia, a jacobitae a siríaca, sofreram menos do que a grega, já que cadauma fazia parte de uma aliança diferente e nãorepresentava concorrência política ou religiosa.62 Osarmênios eram os mais aceitáveis para a Igreja latina,pois haviam reconhecido a autoridade do papa,mantinham conflitos regulares com a Igreja ortodoxagrega, e tinham desempenhado um papel político emilitar crucial contra os turcos. Não foi por acaso que osarmênios procuraram de imediato estabelecer umaaliança com os francos que compunham a PrimeiraCruzada, oferecendo uma aliança matrimonial ao cruzadoBalduíno (mais tarde o primeiro rei de Jerusalém) paradefesa do território vulnerável de Edessa. Os jacobitasforam tratados com mais tolerância pelos francos do quehaviam sido sob o domínio bizantino, mas não deixaramde perder as propriedades eclesiásticas no interior. Deum modo geral, os cristãos orientais foram tratadoscomo nativos conquistados pelos cruzados. Após asprimeiras décadas tiveram garantida sua proteção legal— o mesmo que era oferecido aos judeus e aosmuçulmanos, numa imitação cristã do estatuto dosdhimmı¯s — à vida e à propriedade. No entanto, nuncaobtiveram o estatuto de “cidadãos”, privilégio da elitelatina conquistadora. A desconfiança dos francos emrelação às Igrejas orientais foi mitigada graças a umcomportamento prudente por parte dos líderes religiososlocais. Por exemplo, o bispo jacobita nunca residiu emAntioquia durante o período de domínio latino, e oscoptas só criaram um bispado em Jerusalém após aconquista de Saladino. A única maneira encontrada peloscristãos latinos de lidar com as diferenças foi através daassimilação ou da associação hierárquica. Até mesmo oscristãos libaneses maronitas, embora considerados bonssoldados e arqueiros, só foram totalmente integrados àsforças cruzadas quando reconheceram a autoridade dopapa, consequência das ações diplomáticas constantesdo arcebispo de Antioquia.633. Universalismo: Integração eclassificaçãoAs experiências políticas dos cristãos latinos na Sicília,na Península Ibérica e no Oriente Médio levaram a novospreconceitos e ações de discriminação: as religiõesopostas, como o islamismo e o judaísmo, eram alvospreferenciais, mas as Igrejas ortodoxa grega e cristãoriental também não foram poupadas. A diferença eraque os cristãos orientais eram vistos como concorrentesque tinham de ser refreados. A grande questão era oreconhecimento da autoridade do papa. Não selevantaram obstáculos à integração dos cristãos orientaisno ritual latino; de um modo geral, não se suspeitava quepudessem voltar atrás, pois os preconceitos contra elesnão incluíam a sua descendência. Na prática, porém, otratamento dado ia contra a suposta teoria dafraternidade cristã. É por esse motivo que teremos deanalisar o universalismo da Igreja cristã, já que issogarantia uma estrutura teórica, ainda que contraditapelas políticas locais. Questão equivalente diz respeito àsrelações políticas entre reinos específicos e os objetivosuniversais do império. O legado romano fora perpetuadopelo Império Bizantino, enquanto na Europa o SacroImpério Romano criado por Carlos Magno aspirava a essamesma ambição universal. Essa lógica teve o seuimpacto em diversos níveis da ação política ligada àsetnias. Por fim, regressaremos à Europa para observar oprocesso de assimilação das suas periferias durante aIdade Média, já que alguns dos problemas analisados nosprimeiros dois capítulos foram replicados por aquilo quefoi definido como colonialismo interno.IGREJA E IMPÉRIOEm 1461, Enea Silvio Piccolomini, o papa Pio II (1458-64), escreveu uma carta a Mehmet II (governanteotomano, 1451-81), que conquistaraConstantinopla(1453) e o que restara do Império Bizantino (Sinop eTrebizonda, nesse mesmo ano de 1461), convidando-o ase converter ao cristianismo em troca do título deimperador. A carta é um manifesto fascinante sobrepolítica e relações internacionais, em que o papaavaliava o equilíbrio de forças entre cristãos emuçulmanos. Pio II argumentava que os turcos jamaisconseguiriam conquistar a Europa, frisava o número decristãos sob o seu domínio e lembrava a resistência comque se deparavam na Hungria, na Boêmia, na Dalmácia,na Grécia e em outras regiões onde o cristianismo estavaprofundamente enraizado. Associou com mestria o podertemporal à salvação da alma, sendo esta domínioprivilegiado do papado. Segundo o seu raciocínio, aguerra e o sofrimento da humanidade espalhavam o male impediam a salvação; só a conversão ao cristianismopodia levar à homogeneidade religiosa e à paz universal.Piccolomini identificava-se como promotor da salvaçãouniversal para os gregos, os latinos, os hebreus, ossarracenos e todos os povos do mundo, incluindo osinimigos do cristianismo. Prometeu a Mehmet II glória esalvação através da conversão. Apontou que um“pequeno” gesto poderia transformar Mehmet II napessoa mais poderosa do mundo; ele deveria aceitar aágua do batismo, adotar os rituais cristãos e acreditar noEvangelho. A carta incluía a tradição dos governantesque haviam aceitado a conversão para garantir ouexpandir os seus impérios: o imperador Constantino, quedesenvolveu o modelo de unificação de povos sob ocristianismo; Clóvis I, rei dos francos; Estêvão, rei doshúngaros; Ricardo, rei dos visigodos; Agilulfo, rei doslombardos; e Ladislau, grão-duque da Lituânia, que setornou rei da Polônia. Piccolomini sublinhou o papel dosseus antecessores, os papas Estêvão, Adriano e Leão,que encorajaram Pepino III e Carlos Magno a combater osbárbaros e reconheceram a legitimidade do seu podernas regiões “libertadas”. Dava a entender que, seMehmet II fosse cristão, talvez pudesse reclamar asucessão ao trono da Boêmia e da Hungria com o apoiopapal.1No cerne da carta está um modelo de poder imperialtemporal apoiado pelo poder espiritual do papado(maiestas pontificalis) — um excelente exercício deretórica de autoria de um papa que desenvolvera a suacarreira política como secretário de cardeais, papas e doimperador Frederico III graças às suas espantosascapacidades intelectuais, além de uma grandeeloquência verbal e escrita. Piccolomini compôs tratadosgeográficos sobre a Ásia e a Europa, uma história daBoêmia e muitos textos didáticos, biografias e discursos.Tais feitos literários culminaram nos Commentarii, aúnica autobiografia já redigida por um papa.2 Contudo, amissiva revela o conhecimento limitado e distorcido dePio II sobre o islamismo e os seus preceitos: Piccolominifoi buscar as suas principais referências em Juan deTorquemada e Nicolau de Cusa, que pouco tempo anteshaviam compilado textos e produzido novas reflexõesacerca do islã, criticado como epicurista. Pio II tambémignorou (ou talvez tenha decidido fazê-lo) o fato de que,segundo a tradição dos governantes bizantinos, MehmetII se apresentara como legítimo imperador de umterritório que incluía a Europa Ocidental.A carta a Mehmet II talvez nunca tenha chegado a serenviada. Foi copiada e corrigida pelo papa, que a usoucomo propaganda para apaziguar os turcófilos, bemcomo para afirmar a sua autoridade contra o sacroimperador romano e as potências italianas. A partir daqueda de Constantinopla, tanto antes como depois de tersido empossado como papa, Piccolomini dedicou-se auma série de discursos e de ações a favor de umaCruzada contra os turcos. Morreu em Ancona, enquantoaguardava os navios venezianos que lhe permitiriam serele próprio a comandar a Cruzada — um gesto de desafioem face da indiferença ou do abandono da empreitadapelo sacro imperador romano, pelo rei da França e peloduque da Borgonha. A redação da epístola e ospreparativos para a invasão não foram gestoscontraditórios, uma vez que a persuasão era semprevista como o preliminar da ação violenta. Seguindo amesma linha de raciocínio, a impossível repetição domodelo constantiniano de conversão obrigaria a umconfronto militar com Mehmet II para a recriação de umMediterrâneo ecumênico baseado na unidade da Igrejacristã. A visão teocrática medieval da Cruzada era assimrenovada para promover a reforma contra o islamismo eimpedir quaisquer iniciativas políticas por parte daspotências cristãs que desafiassem a autoridade da Igreja.Na sua carta, Piccolomini abordava a questão dasIgrejas cristãs sob o domínio otomano: armênias,jacobitas, maronitas e gregas. Acusava tais Igrejas deterem rejeitado o decreto de união do Concílio deFlorença (1439) e de persistirem nos seus “erros”,referindo-se especificamente à forma como viam oEspírito Santo e ao seu conceito de purgatório.3 É óbvioque o âmbito universal da Igreja cristã deveria serimposto de forma inflexível através da implementaçãosevera da doutrina da Igreja católica e da afirmação daautoridade do papa. Ainda assim, os concílios deConstança (1414) e de Florença (1439) desempenharamum papel importante na projeção universal da Igrejacatólica, uma vez que colocaram a unificação de todas asIgrejas cristãs no centro de seus interesses;supostamente ameaçadas pelas conquistas otomanas epela queda prevista dos derradeiros territórios do ImpérioBizantino, as Igrejas orientais deveriam ser protegidas e,se possível, absorvidas. Esses concílios foram assimtransformados em fóruns de discussão ecumênica comdignitários gregos como convidados, os quais foram alvode uma atenção que não era vista desde os séculos XI eXII. Essa sequência de acontecimentos pode parecer umaretomada estranha e fracassada da atmosfera e dasações da Primeira Cruzada, que teve como catalisador ainvasão turca da Palestina. Contudo, o universalismo nãoimpediu que o papa retomasse os preconceitos contra ospovos pelos quais dizia ser responsável perante Deus. Nasua carta a Mehmet II, Piccolomini elogiava os turcoscomo valentes guerreiros, supostos descendentes doscitas, mas difamava os sarracenos “viciados naimoralidade”, os sírios “desonestos”, os egípcios“afeminados”, os árabes “fracos” e os africanos “nus”,todos eles considerados pouco preparados para aguerra.4Se no início a Igreja desenvolvera uma posiçãouniversalista e se considerava responsável perante Deuspor todos os povos do mundo, os desenvolvimentosacadêmicos do século XIII, especialmente o trabalho deTomás de Aquino, integravam a noção romana de leinatural na teoria jurídica.5 A colocação do Homo naturalisnão cristão no mesmo nível do Homo renatus cristãolibertava a humanidade de qualquer base cristológica,acentuando o comportamento e o raciocínio comuns dosseres humanos como base essencial da humanitas.6 Ouniversalismo, porém, foi acompanhado por segregação.No trabalho de Aquino atribuía-se aos judeus o status deescravidão perpétua e eles eram acusados de usura,considerada a sua “única” fonte de rendimentos. Osescravos de famílias judaicas que se tornassem cristãosdeveriam ser imediatamente libertados da servidão.Contudo, Aquino acreditava que não se deveriamcometer ofensas contra os judeus e que não se deveriamimpor tributos nos locais em que não existisse taltradição. Mostrava-se resoluto na crença de que osdescrentes (judeus e pagãos) “não deveriam ser forçadosà fé por qualquer meio”. Também defendia que os ritosjudaicos deveriam ser tolerados, para mostrar que “atéos nossos inimigos são testemunhas da nossa fé”, masdeclarava que não se deviam tolerar os ritos de outrosdescrentes.7Essas posições seguiam o direito canônico — ou seja, acoleção compilada por Graciano em 1140 e os decretalescompilados sob Gregório IX em 1234. Nestes eramabordados osdireitos dos não cristãos, nomeadamente odireito à propriedade. A primeira dessas compilaçõesopunha-se ao casamento entre cristãos e judeus.Integrava ainda a decisão do IV Concílio de Toledo, de633, segundo a qual os judeus não deveriam serobrigados a se converter. No entanto, uma vez que issoocorresse, mesmo contra a vontade, eles teriam depermanecer cristãos. A segunda compilação estabeleciaa equivalência entre as duas comunidades religiosas,judeus e muçulmanos, impondo-lhes formas semelhantesde segregação. Definia-se claramente o status deservidão, vista como sendo, na prática, o resultado daconquista, justificando a legitimidade da expulsão maistarde aplicada aos judeus.8Sinibaldo Freschi, o papa Inocêncio IV (1243-54), umadvogado de direito canônico que contestou a ocupaçãopela força da Terra Santa pelos muçulmanos e justificouas Cruzadas como guerra defensiva, desenvolveu oconceito de guerra justa. Reivindicou também osterritórios ocidentais do Império Romano como herançalegítima do papado, baseando-se na doaçãosupostamente feita por Constantino, denunciada comofalsificação por Dante Alighieri por volta de 1310 erefutada de maneira convincente por Lorenzo Valla em1440.9 Ainda assim, Inocêncio IV reconheceu os direitosdos não cristãos à propriedade e à independência,considerados direitos de todos, e repudiou a guerracontra os descrentes apenas com base na falta de fé,embora houvesse certa ambiguidade na sua visão, já queconsiderava que o papa era responsável por todos osseres humanos, cristãos ou não, o que abria a porta àintervenção em sociedades infiéis em determinadascondições. Foi por isso que alguns advogados canônicosmais tarde contestariam os direitos dos infiéis edefenderiam que fossem submetidos aos cristãos. Essedebate também foi influenciado pelos preceitos do amorao próximo e da caridade, que iam contra a expulsão dosnão cristãos das suas terras. Dessa forma, a intervençãoem territórios muçulmanos era unicamente justificadapela necessidade de proteger as comunidades cristãs.10Figura 3.1. Iluminura representando arainha de Sabá com longo cabelolouro e pele negra, pintada por mãoposterior, em Conrad Kyeser, CódiceBellifortis, fl. 122r (anterior a 1405).A ambiguidade entre a defesa do universalismo feitapela Igreja católica e a sua repetição de preconceitosétnicos, com as ações discriminatórias consequentes,também era identificável na visão imperial do mundo.Bizâncio refletia a mudança do centro do ImpérioRomano para o Oriente Médio e a manutenção deposições políticas no Norte da África até as invasõesmuçulmanas. A natureza teocrática do Império Bizantino,com a interdependência estrutural entre Igreja e Estado,fundiu o universalismo religioso e político de uma formamais sistemática do que acontecia na tradição ocidentalde separação de poderes. Porém, a inclusão dosdiferentes povos do mundo no panorama bizantino nãoimplicou a ausência dos preconceitos herdados daAntiguidade Clássica. Esse legado surgia paralelamenteàs ideias sobre as populações orientais etransmediterrâneas de pele escura, mas essa percepçãoexibia uma ambiguidade maior do que a do mundocarolíngio, onde se desenvolvera o simples contrasteentre branco e negro. O anticolonialismo mobilizadopelas invasões muçulmanas pode ter contribuído para apercepção bizantina relativamente mais igualitária dospovos do mundo: a representação de indivíduos de pelenegra nos manuscritos ortodoxos gregos iluminados quese dedicavam à evangelização reforçava a mensagemuniversal da Igreja. A relevância política desse tema eracorroborada todos os anos: durante as celebrações donascimento de Cristo no Hipódromo de Constantinopla,os povos do mundo conhecido eram apresentados diantedo imperador.11As ideias ecumênicas tiveram uma influênciasignificativa na Europa Ocidental, espalhando-sejuntamente com a difusão dos ritos e dos símbolos doImpério Bizantino e sendo absorvidas em diferentesgraus pelas cortes reais e pelo Sacro Império Romano. Jávimos como os projetos imperiais na Sicília realçavamdiferentes tipos humanos, incluindo os africanos negros,como símbolos de reivindicações universais, criando ocenário para a imagética política posta em circulaçãopelo imperador Frederico II. Entretanto, a imagem darainha de Sabá, representada como símbolo da nobrezaque desejava converter-se ao cristianismo, começou aescurecer, acabando por se tornar negra.12 A placa deesmalte de Nicolau de Verdun, Salomão e a rainha deSabá, no Capítulo de Klosterneuburg (1181), é um dosprimeiros exemplos, mas a extraordinária ilustração nomanuscrito iluminado por Conrad Kyeser antes de 1405,onde se mostra uma rainha negra com cabelo louro,suscita a questão do contraste simbólico de cores (verfigura 3.1). No longo prazo sobressai a ambiguidadevisual, já que a negra sensual e tentadora estájustaposta ao que antes fora um símbolo de virtudereligiosa. Também no século XII, os três reis magoscomeçaram a ser associados às três partes do mundo,embora os seus nomes, que não foram registrados noEvangelho, viessem a ser permutáveis, bem como assupostas regiões de origem: Melchior, que oferecia ouro,seria representado como um idoso europeu de barbabranca comprida; Gaspar, que levava incenso, erarepresentado como um asiático jovem de túnica e, maistarde, turbante; e Baltazar, com a sua mirra, erarepresentado com pele trigueira, tornando-se negro noséculo XIII.13 A pintura em Würzburg, na capela de SantaMaria (1514), é um dos melhores exemplos dessatradição, bem representada pelo retábulo de Polling(1444).A “africanização” de um dos três reis magosacompanhou a “africanização” de são Maurício, ummártir da Legião de Tebas que foi condenado à morte noImpério Romano entre 386 e 392 por se recusar arenegar o cristianismo. Logo o santo passou a ser objetode um culto que justificou a fundação da abadia deAgaune em 515. O cavaleiro-santo tornou-seextremamente importante durante a instabilidade militarda Idade Média como alternativa ao são Jorge “inglês” ouao são Tiago “hispânico”: o seu nome foi atribuído a 62comunas no território da atual França, tornando-seindissociável do exército franco; Otto I da Saxôniaescolheu-o como santo padroeiro do Sacro ImpérioRomano; a expansão oriental alemã contra os eslavos eos húngaros foi feita sob o seu patrocínio; tornou-sesanto padroeiro de Magdeburgo e Halle; no norte da Itáliafoi criada uma ordem militar em seu nome; foi escolhidocomo santo padroeiro da Federação Suíça; e Frederico IIfoi ungido em Roma diante do altar de são Maurício nacatedral de são Pedro.Originalmente um santo branco, Maurício só começoua se tornar negro no século XIII. Essa inovação foipersonificada na extraordinária estátua de são Maurícionegro na catedral de Magdeburgo, cidade que, junto comColônia, foi das mais criativas no desenvolvimento desímbolos e ideologia imperiais (ver figura 3.3). A Legiãode Tebas foi interpretada como egípcia e depoisreinterpretada como negra, num processo duplo deorientalização e de africanização. O santo foirepresentado como negro acima de tudo na Alemanha,bem como na Europa Central e na Setentrional, tendopermanecido branco na França, em Flandres e na Itália. Oapoio do imperador foi essencial para a aquisição e aoferta das relíquias do santo aos principais centros doseu culto. Muitas pinturas, esculturas, textos iluminadose, mais tarde, gravuras do santo foram encomendadaspelas elites imperial, religiosa e locais.14 Essa tradiçãopictórica pode ser observada, por exemplo, no retábuloda autoria de Hans Baldung Grien de são Maurício e sãoJorge (1504) e no quadro de santo Erasmo e são Mauríciopor Matthias Grünewald (1520-4), que representamretratos extraordinários de negros. O impacto dasCruzadas e a reputação de Saladino, elogiado comoconquistadorna literatura medieval, certamentedesempenharam um papel importante no entusiasmo doséculo XIII por tudo o que era egípcio, mas a invenção dosoldado e santo africano negro só pode ter sidodesenvolvida sob o auspício político do imperador.Figura 3.2. Adoração dos reis magos,1444, óleo sobre madeira em retábulode Mestre dos Painéis, 129 × 86 cm.Painel da esquerda do tríptico, parteinferior do verso. Munique, AltePinakothek, n. inv. 1360.Figura 3.3. São Maurício negro, c.1240-50, escultura em calcário deautor desconhecido, 112 cm dealtura. Catedral de Magdeburgo.Figura 3.4. Jardim das delíciasterrenas, c. 1503-4, de HieronymusBosch, tríptico, painel central,dimensão total do tríptico 220 × 195cm. Museu do Prado, n. inv. 2823.A reunião de diferentes povos do mundo paraexpressar as ambições imperiais mostra uma linha depensamento relativamente contínua de Bizâncio à Sicíliae ao Sacro Império Romano. Dante, um dos autoresmedievais que defendiam de forma aberta a ideia de umimpério universal baseado na separação da Igreja e doEstado com autonomia política do imperador, recuperoua ideia de Plínio das três partes do mundo para falarexplicitamente de asiáticos, africanos e europeus.15Dante antecipou em dois séculos as divisões dahumanidade, uma visão que só seria desenvolvida comoconsequência da expansão oceânica europeia. Nessemesmo contexto, a elevação do africano negro ao statusde santo e de rei mago, graças ao investimento simbólicoimperial, abriu caminho à observação e à representaçãona Europa dos africanos subsaarianos como pessoasreais nas suas funções comuns de escravos, servos ousoldados. A representação estereotipada de negros deambos os lados da divisória entre condenados e salvosn’O último julgamento de Hans Memling mostrava aigualdade tanto na morte como no além.16 Mas o augedessa nova tendência para a representaçãorelativamente neutra dos negros terá sido atingido comHieronymus Bosch, por volta de 1510, no quadro maistarde intitulado A variedade do mundo ou O jardim dasdelícias terrenas (ver figura 3.4), em que negros surgiamrepresentados entre dezenas de outros indivíduos nus,sem nenhuma desonra aparente.17 Essa nova visão nãodesafiava os grandes estereótipos alimentados pelotradicional significado simbólico dado na Europa ao pretocomo cor, usado para expressar pecado, mal, trevas,imundície, infidelidade, luto, penitência, infortúnio oufealdade. Tais preconceitos em torno da cor tambémforam alimentados pela reinterpretação medieval do filhoamaldiçoado de Noé, Cam, acusado de comportamentodesleal, cuja linhagem remontava à África e eracomposta de pecadores negros e infiéis, maculados degeração em geração.18 Ainda assim, a promoção de umsanto negro como protetor pelo imperador criava novaspossibilidades para a representação dos negros.PERIFERIAS EUROPEIASOs preconceitos étnicos que se desenvolveram durantea expansão do poder cristão latino não se limitaram àsregiões da Península Ibérica, da Sicília, da Ifríquia e doOriente Médio. É verdade que os conflitos nessas regiõescontra grandes potências baseadas em outras religiõesou outros ritos, tais como o islamismo e a Igrejaortodoxa, deram origem a uma estrutura específica emque os critérios de identificação étnica se confundiramcom o preconceito religioso, mas a expansão daspotências cristãs latinas pela Europa criou novasperiferias e levou a novas formas de percepçãointerétnica nesses territórios periféricos, num processodefinido como colonialismo interno.19 A dificuldade nadiferenciação entre colonialismo interno e externo naEuropa medieval torna-se óbvia nos casos complexos daSicília e da Península Ibérica. Outra dificuldade dizrespeito à especificidade das regiões moldadas peloconceito inclusivo de cidadania romana e cristianizaçãoinicial. Já abordamos superficialmente a questão dasinvasões bárbaras e das novas realidades étnicas quesurgiram no que fora o Império Romano. Vamos agoranos dedicar às áreas que não foram abrangidas pelaromanização, que também assistiram à emergência denovas etnias e que tiveram a primeira experiência decristianização durante a Idade Média. E, ao passo quenos primeiros capítulos desta parte analisamos ospreconceitos interétnicos num contexto de rivalidadeentre diferentes religiões e diferentes igrejas cristãs,agora examinaremos alguns preconceitos interétnicosque se desenvolveram numa estrutura religiosa menoscompetitiva.A cristianização das periferias europeias adveio de umasérie complexa de acontecimentos que têm de sercuidadosamente examinados. Por exemplo, os vikings,ativos entre cerca de 800 e 1050 e descritos por outrospovos como ferozes, haviam desempenhado um papelcrucial nos territórios da Escandinávia, das IlhasBritânicas e da costa noroeste da França; estabeleceramum comércio regular com Constantinopla, influenciarama futura Rússia e chegaram até o Irã.20 Assim, osterritórios vikings não podem ser considerados umaperiferia bárbara, já que eles realizavam trocascomerciais regulares e pacíficas com regiões distantes. Omesmo pode ser dito de outras regiões periféricas. Damesma forma, as relações entre os alemãescristianizados e os eslavos no Leste Europeu no início doséculo XIII não podem ser reduzidas à representação doseslavos pelos alemães como bárbaros que se dedicavama escalpelar as vítimas.21 O objetivo aqui é observar asformas assumidas pela cristianização nessas áreas, asnovas percepções dos povos desenvolvidas nesseprocesso e o fosso entre integração religiosa e objetivospolíticos que poderia dar origem a novas formas depreconceito e de discriminação.A conversão forçada dos saxões ao cristianismoimposta pelas tropas de Carlos Magno na EuropaSetentrional estabeleceu um exemplo que seria seguidocinco séculos depois pelas atividades da ordem militarteutônica contra os prussianos e os lituanos, queresistiram à conversão até o século XIV.22 A nobreza cristãpolonesa enviou protestos para Roma quanto aocomportamento dos cavaleiros teutônicos, condenando abusca impiedosa de conquista territorial e ambiçõespolíticas. Uma aliança entre os poloneses e os lituanoslevou à vitória contra os cavaleiros teutônicos emTannenberg, em 1410. Os tributos exigidos peloscavaleiros teutônicos, que reivindicavam todas as terrasocupadas por infiéis e chegaram a violar acordos compovos convertidos, como no caso dos cumanos, naPrússia, suscitaram tamanhos protestos que o papaacabaria por excomungá-los.23 Por outro lado, aconversão dos povos escandinavos, alcançada por voltado século X, decorreu com relativa tranquilidade, seminvasões ou confrontos militares. No entanto, no norte eno centro da Escandinávia verificou-se resistência aocristianismo por parte dos sami (lapões, como eramchamados, de modo depreciativo), um povo decaçadores-coletores cuja língua pertencia ao grupo fino-úgrico e que seguiu uma religião xamanística até oséculo XVIII.24 Essa resistência definiu uma periferia noseio da Escandinávia, não só em termos de religião, mastambém no que diz respeito ao estilo de vida. O modo devida seminômade dos sami, determinado pelas estaçõese pelas expedições de pesca e caça, despertava nosescandinavos os mesmos preconceitos antigos quehaviam sido desenvolvidos nas sociedades urbanas daAntiguidade Clássica. A conversão das populações fino-úgricas e eslavas na Europa Central também ocorreu noséculo X sem nenhuma intervenção militar. A integraçãoe a conversão dos cumanos, chegados à Hungria vindosda Ásia Central no século XIII, ocupando as provínciascentrais e desempenhando aí um importante papelmilitar, demoraram dois séculos. O impacto dos seuscostumes, penteados e toucados na região foi prova nãosó da sua resiliência, mas também do fato de umapopulação cristianizada poder ser tentada a regressaraos hábitos bárbaros.25A conversão dos búlgaros e dos sérvios (eslavos), bemcomo dos romenos (não eslavos) à Igreja ortodoxa nãoimpediu graves conflitos militares entre as áreas centraise as periferias do Império Bizantino, assim como aconversão dos croatas, dos tchecos, dos morávios e dospoloneses (eslavos), além dos húngaros (magiares nãoeslavos), ao cristianismo latino não acabou com osconflitos entre as principais potências e os Estados daEuropa Central e do Leste Europeu — nem com osconflitos internos e entre esses países periféricos. Umexemplo entre muitos é o status de subordinação doscroatas aos domínios húngaro, veneziano e otomano;outro é a luta constante sustentada pelos magiares naHungria, pelos tchecos na Boêmia e pelos poloneses naPolônia contra o poder dos alemães, dos russos e dosotomanos. Na Boêmia e na Hungria, os imigrantesalemães levavam consigo as suas próprias leis e tinhamuma vida comunal separada. Após o século XIV, porém, oequilíbrio de poder mudou, e os alemães na Boêmiaforam proibidos pelo poder local de casar com elementosda população local, banidos da cidadania das povoaçõese excluídos de determinados cargos.26A zona de disputa entre as Igrejas grega e latina criouuma complicada fronteira política, militar e religiosa naEuropa, onde a discriminação era fértil. O breve ImpérioLatino em Bizâncio (1204-61) criou vários feudos naGrécia, por exemplo o principado de Acaia (na épocaMoreia), onde os servos gregos sofriam de discriminaçãojudicial e não podiam apresentar acusações contra osgovernantes francos. Depois, no início do século XIV, oscatalães assumiram o controle do ducado de Atenas,criando oligarquias municipais e sistemas legais duplos.Durante muitos anos, a instabilidade da região permitiu osaque sistemático e a escravidão de cristãos gregos,vendidos pelos catalães (cristãos) na Itália e na PenínsulaIbérica — um negócio que só foi interrompido pelo rei deAragão depois de 1382.27 Esse abuso contrastava com aausência, em Bizâncio, de uma estratificação legalformal: a principal divisão era entre os homens livres e osescravos; não havia nenhuma divisão étnica em relaçãoaos eslavos, por exemplo, considerados livres.28Em outros países periféricos da Europa Ocidental, oconflito interétnico entre cristãos era ainda maisagressivo, como no caso da Irlanda. O país foi convertidoao cristianismo no século V, o que significa que se tornoucristão antes da Inglaterra. No entanto, a fé comum nãoimpediu séculos de guerras coloniais, expropriações deterras, dependência política e humilhação coletiva sob oscolonizadores ingleses, iniciados com a Conquista Anglo-Normanda em 1169. A expropriação econômica foi umprocesso longo, que atingiu o seu auge no século XVII,mas os preconceitos étnicos tiveram início pouco depoisda conquista. A discriminação legal presente numsistema legal duplo foi introduzida através do uso peloscolonos da lei consuetudinária inglesa; os irlandesespodiam ser acusados, mas não tinham autorização deacusar. Podemos encontrar o desprezo pela arquiteturairlandesa doméstica, alegadamente sem tijolos ou pedra,pela ausência de jardins e pela falta das provisões a queos colonos estavam habituados em textos medievaisingleses, que espalharam a ideia de que os irlandesestinham um estilo de vida inferior. Supostamente, osirlandeses não se barbeavam nem se calçavam, usavamcabelo comprido, empregavam um machado enormecomo único equipamento de guerra e dedicavam-se àbestialidade e a ritos selváticos de investidura real.29 Osingleses adotaram desde cedo políticas de segregação ede exclusão no território conquistado: em 1366, osestatutos de Kilkenny proibiam o casamento ou acoabitação entre ingleses e irlandeses, pois as uniõesmistas podiam levar os ingleses a cair na tentação deadotar os costumes degenerados dos irlandeses.30 Avisão dos irlandeses como um povo bárbaro seria maistarde usada para compará-los aos índios norte-americanos, tal como encontramos nos escritos doscolonos americanos Thomas Morton e Hugh Peter.314. Tipologias da humanidade emodelos de discriminaçãoTIPOLOGIASAs principais etnias na Sicília normanda, uma região daEuropa na confluência de três civilizações expostas àguerra e a migrações, eram definidas, em grandemedida, pela religião. Em geral, a identificação étnica ereligiosa acarretava um status político, tal como sugeridopelas esculturas nos sarcófagos de Rogério II. No entanto,essas representações não chegavam ao nível de umatipologia para toda a humanidade, só abrangendo eclassificando os povos dominados por um podersoberano específico com objetivos imperiais. Essefenômeno ocorreu durante esse período em outrasentidades políticas nas fronteiras das civilizações — porexemplo, nos reinos cristãos da Península Ibérica ou noReino Latino de Jerusalém, onde era preciso gerir eintegrar politicamente uma realidade multirreligiosa emultiétnica. O mundo clássico não tinha tipologias dehumanidade claramente definidas, mas testemunhou amudança da divisão entre leste e oeste concebida pelosgregos para a divisão entre norte e sul dos romanos.Nesta, os povos nórdicos opunham-se aos povos doMediterrâneo; também havia lugar para os asiáticos, bemcomo para os africanos negros levados para oMediterrâneo pelo lento mas constante fluxo do mercadoescravagista.A Idade Média foi um período de transição, que levouàs tipologias humanas resultantes da expansão oceânicaeuropeia de finais do século XV e do século XVI. Na décadade 1250, o trabalho do escultor Nicola Pisano na catedralde Siena pode ter expressado ideias correntes nessaconjuntura: no interior da cúpula da catedral esculpiuquatro capitéis com a forma de cabeças, podendo cadauma representar um diferente grupo humano.1 Nãotemos como identificar claramente tais grupos. Asfeições estereotipadas atribuídas ao africano negro sãoas únicas identificáveis: cabelo crespo, lábios grossos enariz largo. Aparentemente, as outras três cabeçasrepresentariam os tipos nórdico, mediterrânico e asiático.Essa hipótese inspira-se em imagens dos livrosiluminados bizantinos e europeus ocidentais — emespecial os manuscritos que descrevem as conquistas deAlexandre, as crônicas das Cruzadas e a ChronologiaMagna — em que se representavam diferentes tipos decabeça e cor da pele. Na década de 1310, Dante foi umdos primeiros autores medievais a diferenciar os tiposhumanos segundo o conceito de continentes: asiáticos,africanos e europeus.2 Tal divisão, que correspondia àtipologia visual implícita, e por vezes explícita, dos trêsreis magos, demorou certo tempo para se estabelecer.Os autores medievais interessados em geografiaestavam familiarizados com o mito clássico dos trêscontinentes, mas não encaixavam de modo sistemáticoos seres humanos em categorias que coincidissem comessas divisões.3 O que fizeram foi desenvolver certoscritérios para a identificação dos povos (ou das etnias). Jáno século VII, Isidoro de Sevilha definia o importantepapel da língua na formação do comportamento e nacriação de um sentimento de pertencimento: osdiferentes povos desenvolviam-se por falarem a sualíngua específica, e não o contrário.4 No século X, Reginode Prum indicou quatro critérios para a identificaçãoétnica: ascendência, costumes, língua e direito. Oprimeiro desses critérios apresentava provas claras deque a ideia clássica das características hereditáriaspersistia na Europa Ocidental medieval.5 O segundoavaliava algo difícil de definir — comportamento, hábitose modos de fazer as coisas. A língua era mais uma vezapontada como principal veículo de comunicação e decultura. Por fim, havia a lei oral ou as regras escritas —uma estrutura institucionalizada para a ação. Idrisi, ogeógrafo muçulmano que serviu a Rogério II, sugeriu umconjunto semelhante, embora maisespecífico: aparênciafísica, tendência natural, religião, ornamentos, vestes elinguagem.6 O papel desses critérios em relação aodesenvolvimento é importante, já que realçam o papelda religião — característica que provavelmente não teriaa mesma importância nos reinos bárbaros antes daconversão ao cristianismo. Os critérios também revelamuma percepção muito mais forte da avaliação étnica —em que tudo conta. A aparência física, o temperamento,o estilo da barba e do cabelo, os tecidos, as formas e aspeças de vestuário e as joias tornaram-se os principaiselementos descritivos. Essa atenção extrema aosdetalhes foi usada para criar preconceitos padronizadoscontra povos específicos. Começaremos por nos dedicarao impacto do critério sobre a aparência física naspráticas e percepções históricas.APARÊNCIA FÏSICAEm 1149, durante um cerco do castelo de Kerkyra(Corfu), que fora tomado aos bizantinos pelos normandossicilianos, as tropas ofensivas dos aliados bizantinos evenezianos entraram numa disputa amarga que acabouem combate. Os venezianos derrotados refugiaram-senos navios e saquearam a costa grega, incendiando eafundando a frota bizantina, que ficara em Eubeia.Segundo Niketas Choniate¯s, um oficial superior imperialque se tornara cronista, verificou-se um acontecimento“monstruoso”:Roubaram o navio imperial, adornaram as cabines imperiais com cortinasentremeadas com fio de ouro e tapetes púrpura e instalaram a bordo ummaldito manequim, um certo etíope de pele negra. Louvaram-no comoimperador dos romanos [bizantinos] e mostraram-no numa procissão comuma coroa esplêndida na cabeça, ridicularizando as cerimônias imperiaissagradas e troçando do imperador Manuel por não ter cabelo amarelo, acor do verão, mas sim uma compleição trigueira, como a noiva da cançãoque diz: “Sou negra e bela, pois o Sol olhou-me de soslaio”.7Esse escárnio mostra a dimensão do preconceitoantibizantino entre os cristãos latinos. O imperadorbizantino Manuel Comneno, que se apresentarapessoalmente no cerco de Corfu, foi ridicularizado pelacor da pele (a sua tez escura foi sublinhada num duploretrato seu com a esposa, Maria de Antioquia, que era,em contraste, alva como a neve), pelo orpo franzino,pelos modos supostamente “afeminados” e luxocerimonial pomposo (ver figura 4.1). Um africano negro,provavelmente escravo, representou tudo isso parasublinhar a condição inferior do imperador nas suasvestes e emblemas magníficos. Choniatēs conseguiuresponder no final da descrição usando uma citaçãobíblica do Cântico dos Cânticos.8 O cronista bizantinotinha obviamente noção da exegese patrística do Cânticodos Cânticos como alegoria da Igreja, como acontece notrabalho do erudito Orígenes (185-232).9 A referência lhepermitiu inverter a ofensa e elevar Comneno a defensorda Igreja contra os bárbaros sacrílegos.Figura 4.1. Retrato anônimo deManuel I Comneno, imperadorbizantino (1143-80), e da suasegunda esposa, Maria de Antioquia.Manuscrito iluminado, BibliotecaApostólica Vaticana, vat. gr. 1176.O preconceito dos venezianos equiparava-se ao dosrestantes povos latinos. Guilherme de Tiro, por exemplo,que escreveu nas décadas de 1170 e 1180, consideravaos gregos preguiçosos e carentes de virtudes guerreiras,responsáveis pelas conquistas muçulmanas, movidospela sua maldade inata e ódio aos cristãos latinos,afeitos a questões enigmáticas e respostas ambíguas, edados a protelar as decisões.10 Os bizantinos tambémnão poupavam palavras: descreviam os cristãos latinoscomo “arrogantes, destemidos de espírito, carentes dehumildade e treinados para ser sanguinários”, econsideravam que eles “albergavam uma hostilidadeperene contra os romanos [bizantinos], um ódioeterno”.11O conflito entre os venezianos e os bizantinos teveconsequências dramáticas: embora Comneno se visseobrigado a engolir a ofensa dos venezianos para queestes voltassem ao cerco e se conseguisse a retiradanormanda de Corfu, em 1171 ele se vingou, ordenandoque se detivessem todos os venezianos do império e seconfiscasse a sua propriedade. Essa situação deixou umrasto de ódio que durou várias décadas, com osvenezianos exigindo compensação financeira; essacompensação foi aceita pelos governantes bizantinos,mas nunca chegou a ser paga na totalidade. Outroacontecimento traumático foi o ataque à zona latina deConstantinopla em 1182 pela turba bizantina, quemassacrou a população que encontrou. Em 1204, osvenezianos conseguiram facilmente direcionar a QuartaCruzada para a conquista de Constantinopla, realizadacom o saque escandaloso de igrejas e objetos sagrados,seguido pela nomeação de um patriarca latino.12Choniate¯s também relatou esses acontecimentos,descrevendo os conquistadores como selvagens ebárbaros por natureza. Um dos mais reveladoresepisódios desse acontecimento extraordinário foi a açãodo abade cisterciense Gunther Martin, do mosteiro dePairis, na Alsácia, relatada pelo seu biógrafo. Martinirrompeu pela igreja do Pantocrátor, onde estavasepultada a mãe de Comneno, e obrigou o sacerdotegrego a lhe entregar as relíquias, depois de gritar:“Vamos, velho infiel, mostra-me onde tens as tuasrelíquias mais preciosas. Se não o fizeres, podes contarcom a morte”.13A violência contra a Igreja ortodoxa eclodiu em outrasocasiões. Logo em 1098, após a conquista de Antioquia,os líderes da Primeira Cruzada haviam enviado uma cartaao papa queixando-se de que as suas tropas tinhamconseguido derrotar os turcos e os pagãos, mas nãohereges como os gregos, os armênios, os siríacos e osjacobitas.14 As frequentes referências às Igrejas orientaispelos governantes e clérigos latinos como hereges ou“infiéis” é reveladora; a Igreja de Roma nunca descreverade tal forma a Igreja ortodoxa grega. A verdade era queentre os cristãos latinos existia um preconceito arraigadocontra os gregos, considerados cristãos de segundaclasse, fracos e de pouca confiança, e vítimas fáceis depilhagem, saque e massacre. A conquista deConstantinopla em 1204, que criou um Império Latino noOriente, o qual viria a ser suprimido em 1261 peloimperador bizantino Miguel Paleólogo, definiu as relaçõesentre as Igrejas cristãs latina e grega para os séculosvindouros: a Igreja grega considerava, com toda ajustiça, que poderia sobreviver sob o jugo turco, mas nãosob o latino. Foi por esse motivo que nunca seconcluíram as várias tentativas de unificar as Igrejas —por exemplo, o concílio de Ferrara-Florença, em 1438-9,em que o diálogo entre as duas instituições atingiu o seuauge. Com poucas exceções, a Igreja ortodoxa foraeliminada de todos os territórios conquistados pelosfrancos no sul da Itália, na Sicília, na Grécia e no OrienteMédio; a expansão normanda, veneziana e catalã nosterritórios bizantinos ocidentais levou à escravidão dosgregos cristãos (além dos albaneses e dos búlgaros),durante algum tempo vendidos na Europa Ocidental,acima de tudo na Itália e na Península Ibérica. Adiscriminação religiosa contra os “cristãos cismáticos”,como se referiam aos gregos em Roma, era usada parajustificar o domínio político e levou ao desprezo étnico,como se vê com essas práticas escravagistas.Figura 4.2. Afonso X, “o Sábio”, rei deCastela (1252-84), Cantigas de SantaMaria (1254-79), cantiga 46, cena 1,parte superior, lado esquerdo,segunda fileira. Iluminura empergaminho de pele representandomuçulmanos, cristãos, um africano eum judeu perto da imagem da VirgemMaria e de Jesus. Madri, RealBiblioteca del Monasterio de ElEscorial.A cor da pele foi obviamente importante para osvenezianos no episódio de vingança contra as tropasbizantinas, mas não é claro que esse critério tenha tido omesmo significado em outras regiões da Europa, ou emcircunstâncias diferentes. Os manuscritos iluminadosencomendados pelo rei castelhano Afonso, o Sábio(1221-84) —naturalda humanidade em subespécies dispostas de acordo comuma hierarquia.3 Segundo essa visão, a teoria das raçastornara-se uma ferramenta importante para criar ejustificar a discriminação e a segregação. Tal abordagematribui a responsabilidade de conflitos étnicos anterioresa antagonismos religiosos, e não a divisões modernas enaturais. Por fim, destaca o uso histórico do termo “raça”em contraste com a criação, no século XX, da palavra“racismo”.Na minha perspectiva, a classificação não antecede aação. Embora reconheça o impacto crítico da estruturacientífica veiculada pela teoria das raças, o preconceitoem relação à ascendência étnica combinado com a açãodiscriminatória sempre existiu em diversos períodos dahistória. Os conceitos de sangue e de ascendência jádesempenhavam um papel central nas formas medievaisde identificação coletiva, ao passo que o modernoantagonismo étnico e racial foi, em grande medida,inspirado nos conflitos religiosos tradicionais. A teoriadas raças sempre se viu permeada de pontos de vistadiversos, razão pela qual abordarei o tema no plural.Falar de raça antes de racismo implica seguir umaabordagem nominalista — há muitos anos, Lucien Febvrefrisou que o conteúdo pode existir antes do nome que oexpressa.4 Mais à frente analisarei a relevância dovocabulário e explicarei as minhas opções.O pressuposto de que o racismo é um fenômenomoderno foi posto recentemente em discussão.5Benjamin Isaac contesta a ideia comumente aceita deFrank Snowden, segundo a qual os gregos e os romanostinham preconceitos contra os bárbaros e contra osnegros, embora fossem culturais e não naturais.6 Osbárbaros não sabiam falar grego, portanto não tinhamnoção dos hábitos, das ideias e das regras decomportamento desenvolvidos pelos gregos. Os negroseram apelidados de “caras queimadas”, o significadooriginal da palavra “etíope” em grego, mas de acordocom Snowden os preconceitos contra a cor da pele nãose traduziam em políticas de exclusão social. A divisãoentre povos livres e escravos, ou entre os gregos e osbárbaros, era mais importante. Contra essa visão, Isaacdesenvolve uma defesa extremamente detalhada daexistência de racismo na Antiguidade. Para Isaac, ospreconceitos eram produzidos constantemente eestavam bastante disseminados, sendo prejudiciaisàqueles que eram suas vítimas. Tal abordagem prova aexistência de preconceitos enraizados em relação àdescendência coletiva, mas não prova a açãodiscriminatória consistente e sistemática — o segundoelemento essencial do racismo. No entanto, conseguenos mostrar a importância dos preconceitos, e algunsdeles antecipam ideias que os historiadores apontamcomo tendo nascido no século XVIII. Tais preconceitoseram também instáveis, já que foram aplicadossucessivamente a povos diferentes, acompanhando avariação das conjunturas políticas. Isaac explica comointeresses específicos dão forma aos preconceitos queagem ao seu serviço.A visão da história do racismo numa estruturahistoricista (ou compartimentada) foi desafiada porFredrickson com a sua primeira história geral do racismono mundo ocidental desde a Idade Média ao século XX,um estudo que, ao estabelecer ligações e evitaranacronismos, se afasta da abordagem que encara opassado em fatias.7 Fredrickson distingue o racismoinformal, praticado pelos grupos sociais na vidacotidiana, do racismo institucional, patrocinado peloEstado e assumindo a forma de política oficial, comoobservado no Sul dos Estados Unidos, na Alemanha e naÁfrica do Sul. O autor destaca corretamente o colapsodesse racismo institucionalizado entre 1945 e 1994,apesar da persistência do racismo informal. Fredricksonrealça ainda a visão racial medieval e do início da eramoderna, que colocava o sangue e a ascendência nocerne dos principais preconceitos e açõesdiscriminatórias, com base na informação genealógica.Contudo o autor aceita a ideia estabelecida de que areligião foi essencial para a criação dos preconceitosmedievais e do início da era moderna, além das açõesdiscriminatórias, enquanto a ideia de uma hierarquianatural de raças, legitimada cientificamente, veioinfluenciar as modernas ações políticas.A minha visão, por outro lado, é a de que asmanifestações modernas de racismo, em especial contraos armênios e os judeus, mostram que a separação entrehierarquias religiosas e naturais é muito menos clara doque se costuma afirmar. Além disso, Fredrickson nãocontestou de forma sistemática a divisão entre naturezae cultura. Claude Lévi-Strauss instalara formalmente essaseparação no centro do estudo antropológico, até mesmonos seus livros póstumos sobre o Japão.8 Para mim, essadivisão não é universal; o próprio Japão é um país ondesempre se defendeu a simbiose ideal entre natureza ecultura. Foi necessária a minuciosa e sólida exploraçãode raça e racismo na América Latina levada a cabo porPeter Wade para abalar ainda mais a separaçãotradicional entre natureza e cultura.9 Não obstante, essaabordagem está longe de ser unanimemente aceita.No livro de Fredrickson, as referências à históriamedieval e ao início da era moderna são derivativas, oque dá origem a uma estrutura esquemática e artificial.O contexto histórico dos preconceitos e das açõesdiscriminatórias não é apresentado de modoconvincente. A narrativa do livro salta da perseguiçãoaos judeus na Idade Média e aos cristãos-novos deascendência judaica na Península Ibérica para as teoriasdas raças no século XVIII. O trabalho concentra-seexclusivamente nas ações discriminatórias contra osjudeus e os negros, sem fazer referências aos armênios,por exemplo. Trata-se de um problema relevante, pois ospreconceitos centrados na ascendência étnicacombinados com ações discriminatórias deram origem ahierarquias de tipos de seres humanos. Segundo a minhaperspectiva, o racismo é relacional, colocando gruposespecíficos em hierarquias contextualizadas de acordocom objetivos concretos. Por fim, Fredrickson não abordao impacto do nacionalismo na teoria e nas práticasracistas, a não ser para declarar que, em geral, o racismodesenvolve-se no seio de uma estrutura nacional. Onacionalismo é um ponto crucial no longo período entreas décadas de 1840 e 1940, algo que cada vez mais levaa trocas produtivas entre os historiadores do racismo eos do nacionalismo. Como sabemos, o caso mais extremode fusão entre nacionalismo e racismo se deu naAlemanha nazista, que fez da exclusão dos judeuspolítica nacional, mas precisamos igualmente ter emconta os casos anteriores do Império Otomano, compolíticas que definiam a exclusão das minorias, ou daRússia, com pogroms regulares e deportações em massade populações étnico-religiosas durante os séculos XIX eXX.A discussão deve ser estendida à principal estruturainterpretativa aplicada ao racismo como fenômenohistórico. Explícita ou implicitamente, muitoshistoriadores consideram o racismo um fenômenopartilhado por toda a humanidade, que surge de formaesporádica em circunstâncias especiais e que temsubjacente o orgulho de pertencimento e uma rivalidadenatural entre adversários. Essa abordagem imanente vêo racismo como parte integrante da condição humana.Arthur Keith (1866-1955), o anatomista que foi reitor daUniversidade de Aberdeen e presidente do RoyalAnthropological Institute, equiparava raça e nação,atribuindo assim ao racismo um caráter essencialmentenacionalista — questão que debaterei no início da parteIII. Keith afirmava que o sentimento de raça era “parte damáquina evolutiva que salvaguarda a pureza da raça;normalmente, os preconceitos humanos têm significadobiológico”.10 Segundo essa visão, qualquer história teriade se limitar a uma abordagem fenomenológica, já que aestrutura seria fruto de instintos naturais e dacompetição que nascem da emergência ou da afirmaçãodas nações e raças.o Libro de Ajedrez e Cantigas de SantaMaria —, apresentavam diferenças visíveis entre oscristãos e os muçulmanos, mais baseadas nas vestes doque na aparência física.15 Os muçulmanos eramidentificados claramente pelos turbantes e pelas túnicaslargas, de mangas abertas na extremidade, o que lhesocultava a forma do corpo, tal como ordenado pelatradição islâmica. Os homens cristãos não tinham acabeça coberta e as túnicas colavam-se mais ao corpo,revelando a forma do tronco e das pernas. A cor da pelenão era irrelevante. A vasta gama de cores — branco,castanho-claro, castanho-escuro e preto — representadasem vários manuscritos indica a percepção das diferentescompleições. Embora os muçulmanos fossemhabitualmente representados como marrons e pretos,também eram apresentados como brancos. Acontecia ooposto com os cristãos.16 Essa tendência confirma-se nomanuscrito iluminado Fueros del reyno de Aragon,compilado durante o reinado de Jaime I (1213-76): osmuçulmanos eram representados como tendo tez escura.No entanto, o preconceito em relação à cor da pele nãoera óbvio. No Libro de Ajedrez, uma iluminurarepresentava um jogo entre um branco e um negro (nãomuçulmano): o negro, identificado pelos estereótiposhabituais — pele escura, cabelo crespo, lábios grossos enariz grande —, vencera o jogo e apontava o dedo comose mostrasse ter dado uma lição ao outro, enquanto obranco era representado numa posição defensiva,aceitando a derrota de mãos abertas. Nas Cantigas deSanta Maria, não era necessária uma cor da peleespecífica para identificar os judeus: eles eramrepresentados como brancos, mas com barba e narizadunco estereotipados.A relativa neutralidade da cor da pele nessasrepresentações não é consistente com a apresentação dapele no Lapidario, outro códice iluminado encomendadopor Afonso, o Sábio. Este contém a imagem perturbadorade um elefante com a cabeça de um negro, eprovavelmente é uma das primeiras representações denegros em que as feições se misturam com as deanimais africanos. É certo que o Lapidario é um volumecomplexo, claramente inspirado na alquimia, que definiaa gama de cores em sequências de transformação epurificação em que o preto, o vermelho e o brancoadquirem um sentido especial. Ainda assim, nesse casonão podemos ignorar a ligação com outras fontesescritas que falavam sobre africanos negros. IbnKhaldûn, escrevendo um século mais tarde, expressou osseguintes preconceitos contra os negros: “[Eles]prestam-se à escravidão porque têm pouco que seja(essencialmente) humano e possuem atributos muitosemelhantes aos dos animais irracionais, vivem emgrutas e matas, comem ervas, vivem num isolamentoselvagem e não se juntam, e comem-se uns aosoutros”.17 Ludolfo de Sudheim, que escreveu o relato dassuas viagens em meados do século XIV, mostrou o mesmodesprezo pelos “etíopes pretos”, entre os quais “homense mulheres têm cara de macaco e criam macacos deestimação como nós criamos cães e galinhas”.18CRITÉRIOS DE IDENTIFICAÇÃOO Atlas catalão, desenhado em Maiorca em 1375 pelocartógrafo judeu Abraão Cresques (ver figura 4.3),representa uma combinação fascinante de cartamarítima e mapa-múndi, indicando tipos humanos emdiferentes partes do mundo — uma inovação mais tardedesenvolvida pelos cartógrafos de Lisboa e de Dieppe. Oatlas representa o mundo tal como era conhecido peloseuropeus da época, desde as ilhas Canárias até a China.Mostra a área dos objetivos imperiais catalães (earagoneses) no Mediterrâneo, desde Barcelona eValência até o ducado de Atenas, incluindo as ilhasBaleares, a Sardenha e a Sicília. É óbvio que, nesseambiente politicamente definido, a descrição dosterritórios e a sua representação cartográfica apareciamjunto com a descrição dos povos. Não se veem fronteiras,mas as entidades políticas são representadas porcastelos e estandartes com os brasões dos governantes.Vários elementos identificam regiões específicas. EmMarrocos temos pavilhões reais e um muçulmanodescalço, de turbante e túnica larga, montado numcamelo. Perto de Tombuctu vemos um rei negro comcetro, coroa dourada e globo dourado. No Norte da África,um servo negro conduz um camelo, o soberanomuçulmano da Ifríquia é mostrado com um escudo e umagrande espada, segue-se um elefante, e o sultão do Cairoé representado com um pombo na mão. O sultão turco écolocado na Ásia Menor e a rainha de Sabá na Arábia.Temos um sultão na Pérsia, dois reis na Índia e umelefante com os três reis magos. Vemos uma caravanacom camelos e homens a cavalo na Ásia Central, acaminho de Cataio (China). Um rei branco é mostrado nailha de Java, e na ilha da “Taprobana” (mais tardeidentificada como Ceilão) está representado um reicastanho com um elefante. No Extremo Oriente, oAnticristo está rodeado por reis e é anunciado peloscorneteiros negros Gog e Magog. São mostrados todos ostipos de seres humanos reconhecidos à época, desdeAlexandre, o Grande, a selvagens.19Figura 4.3. Abraão Cresques, Atlas catalão, 1375. Detalhe doNorte da África, com um rei negro e um muçulmano montadonum camelo.As referências bíblicas são óbvias e principalmente asdo Antigo Testamento, mas também existem referênciasconcretas a acontecimentos e práticas contemporâneas.Vemos, por exemplo, a peregrinação a Meca feita em1340 pelo rei do Mali, Mansa Musa, famoso pelo luxo comque viajava, a expedição de Jacome Ferrer às ilhasCanárias, nesse mesmo ano, e a rede de comunicaçõesestabelecida através do Egito e da Palestina graças aouso de pombos-correio, bem documentada nas crônicasdas Cruzadas.20 A maioria dos soberanos muçulmanos érepresentada como branca, e parece que as vestes, ostoucados e os animais usados (camelos, cavalos eelefantes) eram de especial relevância para oscartógrafos como marcadores simbólicos da identidade— embora não fosse ignorada a cor da pele. No entanto,há indicações de que os europeus setentrionais viam ascoisas de modo diferente, o que confirma a visãoveneziana discutida anteriormente, já que os venezianosocupavam uma posição intermediária entre oMediterrâneo e a Europa Central. Guilherme de Rubruck,um agente enviado em 1253 à corte mongol pelo reifrancês Luís IX, descrevia os enviados dos povos de Langae Solanga que viu na corte de Caracórum como“homenzinhos castanhos, como os espanhóis”.21Guilherme de Rubruck era um excelente observador,equiparado a Marco Polo, e tentou identificar osdiferentes povos com que cruzou registrando detalhescomo os estilos de construção, os hábitos alimentares, ouso de animais, roupas, códigos de conduta e cerimôniasda corte.A gama de critérios para distinguir os diferentes povosia muito além da cor da pele. No entanto, em períodostransitórios, as linhas divisórias entre etnias com baseem crenças religiosas podem ser menos definidas do queimaginamos: em finais do século XIII, em Lérida, osmudéjares (ou seja, muçulmanos autorizados a ficar, doárabe mudağğan, ou, literalmente, domados) vestiam-secomo cristãos, enquanto em Valência os mouriscos(muçulmanos convertidos, ou mouros, como eramchamados na Península Ibérica) se trajavam comomudéjares, por exemplo nas suas festas de casamento.22Esses casos indicam claramente um conformismorelacionado com a diferente proporção de muçulmanosna população de cada cidade: enquanto em Lérida osmuçulmanos já não eram a maioria, em Valênciacontinuavam a predominar. Na região ocidental da ilhada Sicília, as cristãs aparentemente continuaram a seguiro código de vestuário das muçulmanas durante bastantetempo após a invasão normanda.DESPREZO ÉTNICOEra comum que os seguidores da mesma fé religiosaexpressassem desprezo uns pelos outros. Os normandoseram chamados “os novos sarracenos” pelosbizantinos.23 Os normandos consideravam os calabresescovardes e os lombardos, pérfidos.24 Os alemães eramtemidosna Itália como bárbaros, pois supostamenteexibiam um comportamento irracional e violento.25 Oscastelhanos eram considerados arrogantes pelosvizinhos. Poderíamos compilar uma lista bastante longa(e em alguns casos protonacional) de preconceitos desseperíodo — uma lista em grande medida estruturada peladisputa política e pela conquista. Em 977, Ibn Hawqal,um mercador de Bagdá, escreveu um livro sobre as suasviagens, numa época em que a Sicília se encontrava sobo domínio islâmico, mas dava seguimento a uma lutacontínua contra o Império Bizantino. Considerou ossicilianos pessoas de “capacidade limitada e fraco podermental”, ansiosos por fugir ao dever da guerra santa.26 Aideia de sicilianos como islâmicos de segunda classe foireforçada após a sua derrota e subordinação. Abd AllahYaqu¯ t, nascido em 1178, partilhava o desprezo de IbnHawqal, ao qual acrescentava o defeito da falsidade,devido ao mau hábito dos sicilianos de manteremdisputas constantes nas suas relações pessoais. Concluiuque “chegam a ultrapassar os judeus em imundície edesonestidade”, o que sublinha o fato de os preconceitosserem sempre relacionais.27No caso dos muçulmanos da Península Ibérica, aderrota também levou ao desprezo no mundo árabe. IbnKhaldûn, por exemplo, considerou-os “fracos de espírito”,um povo que perdera o sentimento de grupo, o instintoda cooperação e a capacidade de se impor comoresultado da aniquilação da sua Dinastia Árabe. Segundoas suas palavras, sem dúvida inspiradas nas ideias deCícero e de Tácito sobre a inevitável degeneração dospovos conquistados, os muçulmanos espanhóis haviamsido escravizados pela tirania e se acostumado àhumilhação. Ibn Khaldûn levou a sua análise mais longe:“Vemos que os espanhóis [muçulmanos] se assemelhamaos [cristãos] galegos nas vestes, nos símbolos e namaior parte dos costumes e usos. Chegam ao ponto dedesenhar imagens nas paredes e as têm em edifícios eem casas. O observador inteligente vai chegar àconclusão de que se trata de sinal de serem dominadospor outros”.28 Não seria possível definir melhor essapolítica de aparência do que por um autor que viveradois anos em Granada e visitou a cidade dos seusantepassados, Sevilha: falava por experiência própria.Contudo, o desprezo por aqueles que se haviamconvertido ao cristianismo era muito pior, pois teriamabandonado a pureza da fé.Encontramos sentimentos semelhantes expressos nosregistros das comunidades judaicas medievais, emboraas práticas locais mostrassem uma grande flexibilidadeentre os hebreus e os familiares convertidos aocristianismo. A concorrência entre as diferentes religiõesdo livro desenvolveu-se após a integração dos povosbárbaros recém-convertidos. No entanto, até essaintegração teve exceções: o rei ariano dos ostrogodos,Teodorico, o Grande (454-526), vice-rei do ImpérioBizantino na Europa Ocidental, excluiu os romanos doexército, proibiu o casamento entre romanos e godos emanteve dois sistemas de leis separados — um Estadodualista.29 Na Idade Média, não era rara a desconfiançaem relação aos muçulmanos e aos judeus recém-convertidos ao cristianismo. Em geral, considerava-seque partilhavam os valores, as atitudes e o caráter dosantepassados — um preconceito contra outros povos quese baseava na ideia de descendência coletiva. Nostumultos antimuçulmanos de 1275 em Valência, osmouriscos (cuja designação sublinhava obviamente assuas raízes étnicas) sofreram tanto quanto os mudéjares.Os muçulmanos convertidos eram até chamadostornadizos (vira-casacas) pelos cristãos, apesar de essaprática ter sido proibida pelas Partidas (legislaçãocompilada por Afonso, o Sábio).30 Os judeus convertidossofreram abusos semelhantes, sendo chamados demarranos (que provavelmente significava porcos),cristãos-novos e cristãos-lindos (usado com ironia). Essatroca de epítetos era imitada pelos muçulmanos: IbnJubayr, nascido em 1145 em Valência e que viajoubastante tanto na Sicília como no Oriente Médio, referia-se ao rei Balduíno IV de Jerusalém como o porco, e à suamãe como a marrã.31 Os cristãos eram chamados deadoradores da cruz (o que significava que eram idólatras)e politeístas (devido ao conceito teológico da Trindade),ambas as acusações comuns feitas pelos muçulmanoscontra os cristãos.32CONVERSÃO E ESTIGMAA suspeita contra os muçulmanos convertidos aocristianismo podia levar à perseguição. Filipe de Mahdia,que nasceu no Norte da África, converteu-se aocristianismo na Sicília e tornou-se camareiro do rei ealmirante da frota siciliana. Em 1153 conquistou Bone,na Ifríquia, porém mais tarde foi acusado de ter sidodemasiado benevolente para com os muçulmanossubjugados. A essa altura, o rei Rogério II alterara a suapolítica religiosa e favorecia uma Igreja mais militante.Aceitou as acusações de reincidência feitas contra Filipee outros antigos dignitários muçulmanos da corte real, eFilipe foi acusado de desrespeitar sistematicamente osjejuns cristãos, ao mesmo tempo que mantinha a práticadas orações islâmicas. Filipe confessou a apostasia epediu clemência, mas o monarca vingativo confirmou asentença proferida contra ele. Filipe foi executado porcometer um crime de lesa-majestade divina: foiarrastado por um cavalo pelas ruas de Palermo equeimado na fogueira com outros acusados.33Esse exemplo de tratamento duro para com umconvertido do islamismo para o cristianismo seriarepetido em períodos posteriores de agitação política,como o que se verificou na sequência da morte deGuilherme I da Sicília, durante a menoridade do filho,Guilherme II. Tal período assistiu à fuga escandalosa parao Norte da África de Gaito Pietro, eunuco do palácio,camareiro-mor e membro do conselho de regência, queprovavelmente teria pouca chance de sobreviver àsterríveis intrigas que o rodeavam.34 Nesse momento,vários cortesãos importantes foram acusados deregressar à fé islâmica. O alvo mais importante foiRoberto de Calataboiano, que trabalhara com Pietro.Roberto foi acusado de apostasia, violação, homicídio,adultério, roubo e financiamento da restauração damesquita de Castellamare. Seus familiares foramtorturados e morreram na prisão, e suas propriedadesforam confiscadas.35Contudo, na Sicília verificou-se uma significativaintegração de muçulmanos convertidos, com casosindividuais a serem enaltecidos: Al-Qāsim b. Hammūd, oúltimo soberano islâmico de Agrigento e Castrogiovanniantes da Conquista Normanda, rendeu-se a Rogério etornou-se cristão. Pediu terras na província de Melito, naCalábria, o que lhe foi concedido. Segundo o cronistaGeoffrey Malaterra: “Ele viveu muito tempo desde entãoe nunca dirigiu nenhuma má ação contra o nossopovo”.36 É óbvio que Hammūd foi submetido aoescrutínio constante.Os tumultos antimuçulmanos liderados peloslombardos em 1161 e 1189 expulsaram as vítimas doscentros urbanos da Sicília, em especial de cidadesgrandes como Palermo, onde havia muito mantinhamuma presença constante entre cristãos e judeus.37 Após1161, os bairros centrais de Galca e Cassaro foramreforçados como sedes de poder, com uma presençaexclusivamente cristã, enquanto nos bairros deAlbergaria e Chalcia, mais ao sul, muçulmanos, judeus egregos coexistiram por algum tempo. Contudo, duranteos tumultos de 1189, os muçulmanos que haviamsobrevivido ao massacre de 1161 viram-se obrigados aabandonar esses bairros de Palermo e a se refugiar nobairro mais a norte de Seralcaldi.38Mapa 4.1. Rotas da diáspora judaica após a expulsão daEspanha, em 1492. Fonte: Werner Hilgemann e Hermann Kinder (Orgs.), Atlashistorique. Trad. de Raymond Albeck. Paris: Perrin, 1997, p. 150.A segregação dos muçulmanos após a conquista cristãna Península Ibérica foi muito mais célere e explícita. Nopacto estabelecido entre Afonso I, rei de Navarra eAragão, e os muçulmanos de Tudela (uma povoaçãofortificada nasfronteiras de Navarra, Castela e Aragãoconquistada em 1119), o rei confirmou os magistradosislâmicos da cidade e aceitou que a comunidadepermanecesse nas suas casas durante um ano. Contudo,após esse prazo, o pacto impunha a remoção dosmuçulmanos para um bairro especial, a ser construídofora das muralhas. Os muçulmanos puderam manter asua propriedade, sobre a qual teriam de pagar umimposto de 10%; estavam autorizados a partir para umpaís muçulmano, caso o desejassem; não seriamobrigados a cumprir serviço militar nem a se converter;os judeus estavam proibidos de vender muçulmanoscomo escravos; e, por fim, foi introduzido um sistemajudicial dualista para muçulmanos e cristãos.39 Osmuçulmanos e os judeus na Península Ibérica cristãacabaram sistematicamente segregados em bairrosseparados, embora no caso dos primeiros ascomunidades tenham sobrevivido nas regiões mais aosul, Alentejo, Algarve, Granada, Valência e Aragão,enquanto no caso dos segundos as comunidades tenhamse espalhado pela Península Ibérica até a sua expulsãode Castela e Aragão, em 1492, e de Portugal, em 1496.Leis de segregação foram criadas para evitar acontaminação dos cristãos e para impedir que os novosconvertidos revertessem à sua antiga fé. O III (1179) e oIV (1215) Concílios de Latrão transformaram aexperiência de discriminação e exclusão na PenínsulaIbérica, na Sicília e no Oriente Médio em lei canônica, talcomo as Decretales compiladas pelo papa Gregório IX em1234. Esse corpo legal, que incluía o debate sobre osdireitos dos não cristãos e justificava as Cruzadas comoguerra defensiva, proibia o comércio de armas e demateriais estratégicos com países islâmicos, a prestaçãode serviços de cristãos a muçulmanos ou judeus (porexemplo, como capitães de navios ou escravos), ocasamento de cristãos com judeus ou muçulmanos e aconstrução de sinagogas. Os judeus e os muçulmanosficavam obrigados a usar emblemas e roupas distintivas;não podiam aparecer em público durante a SemanaSanta; eram obrigados a viver em bairros separados eestavam excluídos do sistema judicial central.40 Partedessa legislação — a que se ocupava dos escravoscristãos e da prestação de serviços a judeus — replicavauma antiga tradição, estabelecida pelo Império Romanocristianizado nos séculos IV e v.41O estigma associado aos muçulmanos e aos judeusviria a se alargar e a macular os seus protetores cristãos.O papa Inocêncio IV acusou o imperador Frederico II decumplicidade com os muçulmanos; acusou ainda oimperador de permitir a “veneração de Maomé”(referindo-se às orações islâmicas) em Jerusalém,embora isso fizesse parte do acordo celebrado com osultão do Egito para recuperar o controle político dacidade.42 Manfredo, filho ilegítimo de Frederico IIaclamado rei pelos sicilianos, foi escarnecido como sultãode Lucera depois de escolher a cidade muçulmana deApúlia como um dos seus baluartes, lá armazenar otesouro real e usar as tropas locais como sua guardaespecial. Pedro III, rei de Aragão, que derrotou Carlos deAnjou em 1282 e se tornou rei da Sicília comoconsequência da revolta contra os franceses conhecidacomo Vésperas Sicilianas, sentiu a força da ira papalquando foi excomungado e viu uma Cruzada lançadacontra ele. O papel das tropas muçulmanas valencianasna defesa de Gerona tornou-se lendário; elas tambémforneceram parte das almogávares (do árabe mugˇa¯wir,milícia), as forças especiais do exército aragonês quederrotou as tropas francesas. O cardeal enviado do papaque acompanhou a desastrosa Cruzada francesa acusouo rei aragonês de se juntar aos sarracenos contra ocristianismo.43Embora durante a Idade Média tenham florescido ospreconceitos entre povos da mesma fé, não há dúvida deque a disputa política e a guerra constantedesempenharam papel importante na criação de um ódioperene entre povos de religiões diferentes,especialmente entre cristãos e muçulmanos. Aproliferação de preconceitos entre os povos da Europa éimpressionante. Esse processo ganhou forma em razãodo desprezo sentido pelos não cristãos, mas tambémgraças aos projetos de domínio político, tal como vimosnos sentimentos dos alemães em relação aos eslavos,dos ingleses em relação aos irlandeses, dosescandinavos em relação aos lapões, e até dos povos daEuropa Setentrional em relação aos habitantes do Sul. Avirulência dos preconceitos entre os cristãos latinos egregos foi ainda mais forte, levando à substituiçãoforçada das estruturas religiosas após as conquistas, emesmo à escravização dos povos. Embora esses casosrepresentem discriminação, eles não revelampreconceitos contra a descendência: os gregos e oselementos das Igrejas orientais que se converteram aorito latino não foram estigmatizados. No seio do mundomuçulmano verificou-se uma tendência equivalente depreconceitos e discriminação, devido à mudança doscentros de poder e ao estabelecimento de novasperiferias num período que assistiu à integração de umagrande variedade de povos nômades ou seminômades.Contudo, não se verificou a estigmatização dos povosapós a sua conversão, o que revela a ausência depreconceito em relação à ascendência.O prolongado conflito entre cristãos e judeus (a destesfoi a única religião a sobreviver à cristianização doImpério Romano) também azedou com o tempo. Orespeito pelo povo judeu como testemunha das raízesreligiosas do cristianismo transformou-se em ódio pela“teimosia” na recusa a aceitar a natureza divina deCristo. A tensão entre a integração através da conversãoviolenta (embora isso fosse proibido pela lei canônica) ea exclusão ou a segregação era visível em várias partesdo Mediterrâneo. A desconfiança permanente em relaçãoaos judeus convertidos os tornou vítimas de preconceitosdesenvolvidos sobre a ideia de ascendência étnica:esperava-se que continuassem a exibir as “qualidades docaráter” dos antepassados, acabando inevitavelmentepor reverter à antiga fé. A guerra permanente entrecristãos e muçulmanos em várias frentes também criouum preconceito baseado na fé religiosa que aprofundou aideia de ascendência étnica. Os muçulmanosconvertidos, bem como os judeus convertidos, eram alvode suspeita.Embora tenham sido praticados pogroms, expulsões eescravização de judeus e de muçulmanos durante asCruzadas e como consequência das conquistas, foram osúltimos séculos da Idade Média, entre os séculos XIII e XV,que assistiram sistematicamente à segregação, àconversão violenta e à exclusão de comunidades deorigem religiosa diferente nas zonas cristãs latinas. Ospreconceitos contra os judeus e os muçulmanosbaseados nas diferenças religiosas associaram-se à ideiade ascendência. Essas duas comunidades religiosastambém se ligaram na legislação eclesiástica latina,através de um processo prático de discriminação e desegregação que as agrupava como “o inimigo interno”.44Ambas as comunidades foram submetidas a ações desegregação espacial, social e profissional, por vezesmesmo depois de terem se convertido ao cristianismo. Oconceito de sangue puro tornou-se particularmentearraigado na Península Ibérica, onde foi usado paradiscriminar e para segregar judeus e muçulmanosconvertidos, mostrando como a religião e a ascendênciaétnica tinham começado a se confundir. Esse foi o casocrucial de racismo nesse período, uma vez quecontradizia o ideal universalista da Igreja católica,baseado na igualdade entre crentes com diferentesorigens étnicas. Por fim, o preconceito contra os negrosestá documentado na região mediterrânica desde aAntiguidade Clássica. Os autores islâmicos e cristãosmedievais renovaram-no, antecipando o desprezogeneralizado desencadeado pelo aumento do comércioescravagista da África para a Europa, e depois para aAmérica, nos séculos seguintes.Parte II Exploração oceânicaEnquanto as Cruzadas instalaram simbolicamente acidade de Jerusalémno centro do mundo e reforçaram ospreconceitos étnicos com base na religião, a exploraçãooceânica mudou esse centro simbólico do mundo para aEuropa e desenvolveu a ideia da supremacia brancasobre os povos das outras partes do globo.1 Foi umprocesso longo, caracterizado por uma tensãopermanente entre a identificação de uma variedade cadavez maior de povos e a projeção de imagensestereotipadas nos povos africano, americano e asiático.No século VII, Isidoro de Sevilha afirmava, na sua sumaenciclopédica do conhecimento da época, que 73 povoseram descendentes de Noé, quinze de Jafé, 31 de Sem e27 de Cam.2 Tais genealogias míticas e de inspiraçãobíblica dos povos só foram contestadas pela experiênciarenascentista da navegação oceânica. Em 1512-5, numadas primeiras descrições econômicas e políticas daregião, Tomé Pires mencionou brevemente mais denoventa povos distintos no oceano Índico.3 Em 1526-57,Gonzalo Fernández de Oviedo identificou mais desessenta “nações” americanas, embora a sua referênciaambígua a “províncias” nativas (cerca de três centenas)tenha introduzido ainda mais diversidade.4 Em 1594,André Álvares de Almada descreveu, com uma precisãoconsiderável, 37 etnias diferentes na região dos “rios daGuiné” (de um modo geral, desde o atual Senegal atéSerra Leoa).5 Esses autores baseavam-se em observaçãode primeira mão ou serviam-se de informações obtidaslocalmente: Pires foi um boticário da família realportuguesa que trabalhou na Índia como feitor real edepois na China como embaixador do rei; Fernández deOviedo foi um cortesão, autor e agente do rei que passouquase quarenta anos nas Américas; Álvares de Almada,um mulato nascido na ilha de Santiago, em Cabo Verde,dedicou-se a uma vida militar na região que descreveu,tendo sido promovido a capitão e a membro da Ordemde Cristo. Na década de 1590, Giovanni Botero, autor deum dos primeiros relatos geográficos gerais fidedignosdo mundo, multiplicou exponencialmente o número dereferências étnicas usadas na época e afirmou existiruma infinidade de povos.6 A diversidade humana pareciaestar no cerne da Renascença e, tal como veremos, aclassificação das diferentes partes do mundo foi aresposta a esse caos aparente. O motivo para esseparadoxo será minha primeira linha de inquérito.A definição dos europeus como brancos é outraquestão importante do período, já que as migraçõespermanentes e a mistura entre povos, acima de tudo naregião mediterrânica, haviam dado origem a uma grandevariedade de fenótipos.7 Tal como vimos na parteanterior deste livro, os estereótipos étnicos europeusinternos, especialmente do norte “branco” em oposiçãoao sul “misto”, estavam já patentes na Idade Média. Aexpansão oceânica levou ao aumento dessespreconceitos internos, mas as ideias preconcebidas maisduras estavam, obviamente, reservadas para os povosde outros continentes. O comércio escravagista atlântico,que entre meados do século XV e finais do século XVIaumentou de maneira drástica o número de escravostransportados para o sul da Europa e depois, entre osséculos XVI e XIX, se dirigiu para as Américas, contribuiupara a alteração das percepções dos fenótipos doseuropeus tanto no seu continente como fora dele. Adefinição das etnias baseou-se cada vez mais na cor dapele, embora continuassem a ser usados outroselementos tradicionais de identificação, como penteadose barbas, roupas, calçados, ornamentos (joias etatuagens), materiais e formas usados na construção,hábitos alimentares e animais domesticados. A evoluçãodos critérios empregados para a identificação dos povosdo mundo será minha segunda linha de inquérito.Já vimos como, na Idade Média, a fé religiosa fora umcritério essencial para a identificação étnica. Mesmoquando uma pessoa mudava de religião, em razão deconquista política, pressão social, mudanças políticaslevadas a cabo pelas elites ou por opção pessoal, poderiaser alvo de suspeita, sendo acusada de dissimulação daantiga fé ou de reverter a ela às escondidas. Após oséculo XV na Península Ibérica, os cristãos-velhos, cujalinguagem discriminatória e políticas de exclusão criaramuma atmosfera de preconceito étnico que ignorava atradição de igualdade religiosa estabelecida pela água dobatismo, tiveram como alvo preferencial os cristãos-novos de origem judaica e os mouriscos com passadoislâmico. Nesse caso, a grande questão é perceber comoessa linha divisória baseada na ascendência ganhouforma no seio da comunidade cristã — em que contextosurgiu, com que objetivo, quanto tempo durou e quais assuas consequências no mundo fora da Europa. O papelda ascendência e da divisão entre castas será minhaterceira linha de inquérito.Usei a versão quinhentista das quatro partes do mundopara estruturar os capítulos que se seguem.Analisaremos a percepção europeia dos africanos, dosamericanos e dos asiáticos, seguida pelas percepções nointerior da Europa, pois a estereotipagem é essencialpara a compreensão da dinâmica dos preconceitosrelacionados com a ascendência étnica. A divisão míticados continentes já foi alvo de crítica,8 mas neste casolimito-me a seguir a estrutura das fontes principais, queinfluencia a divisão da humanidade em três ou quatrosubespécies durante o longo período das teorias dasraças.5. Hierarquias de continentes epovosPERSONIFICAÇÃO DOS CONTINENTESEm 1570, Abraão Ortélio publicou o primeiro atlasimpresso relevante do mundo, Theatrum Orbis Terrarum,uma das obras mais vendidas da época, apesar do custo,com 41 edições impressas até 1612.1 O frontispícioilustrado (ver figura 5.1) introduzia uma novidade nacartografia: personificava as quatro partes do mundo.2 Asfiguras alegóricas encontram-se claramente dispostassegundo uma hierarquia. A Europa, de coroa imperial,está no topo, sentada diante do frontão. Segura um cetrona mão direita e, na esquerda, qual um leme, tem umacruz assente no topo de um grande globo. Atrás delacrescem parras e uvas sobre uma treliça em arco,sublinhando-lhe a fertilidade e a riqueza. A figura daEuropa é a única sentada, totalmente vestida e calçada.A posição de domínio é ainda definida pelarepresentação de dois globos (celestial e terreno) emcada lado do frontão, com os símbolos da prodigalidade edo trabalho (o prato e a cabeça de boi) no entablamentoimediatamente abaixo.A Ásia ocupa a segunda posição, bastante abaixo, masà direita da Europa, de pé no pedestal de “mármore” doportal, à frente de uma coluna. Usa um toucadoelegante, está adornada com pedras preciosas e envergaroupas belas, embora semitransparentes, que lherevelam o corpo. Está descalça e tem um turíbulo na mãoesquerda.A terceira posição, à frente da coluna à esquerda daEuropa, é destinada à África, com uma posição simétricaà da Ásia. A África é representada como uma mulherquase nua, com uma fita na cabeça e um pedaço detecido largo transparente à volta das ancas que mal lhecobre o sexo. Os raios do sol rodeiam-lhe a cabeça,sublinhando a etimologia grega da palavra “etíope” comorosto queimado. Na mão direita segura um ramo demadeira perfumada — uma referência ao Egito retiradadiretamente da Cosmographia de Sebastian Münster.3 Oúnico fenótipo estereotipado é o nariz. A África estárepresentada de perfil, numa referência à tradiçãoromana de personificar o Egito como perfil de mulher emmoedas e medalhas. Nas versões coloridas dofrontispício, a África está representada em castanho-escuro.A quarta posição é ocupada pela América, na parte debaixo do portal, à frente do pedestal, deitada quase nua,com uma borduna estilizada na mão direita, enquantocom a esquerda exibe a cabeça decepada de uma vítimade canibalismo. A única “roupa” da América é uma fiadade penas em torno da cabeça. Apresenta ainda outrosdois ornamentos exóticos: pedras preciosas engastadasna testa e um anel de pequenossinos em volta de umaperna. Por baixo do corpo estão um arco e duas flechas,que a mostram como guerreira amazona. Ao seu ladoestá o busto nu de uma mulher no topo de uma colunaque mostra uma chama. Isso representa a Terra do Fogo,a mítica quinta parte australiana do mundo indicada nosmapas de Ortélio e inspirada no mapa-múndirevolucionário publicado em 1569 por Gerardo Mercator.4A cena exótica fica completa com a rede pendurada naparede atrás das figuras da América e da Austrália.O programa iconográfico dessa página de rosto éextraordinário: revela como, em pouco mais de umséculo de exploração oceânica europeia, os principaisestereótipos de outros continentes e povos do mundo secristalizaram de um modo visual poderosamente conciso.A invenção dessas figuras alegóricas foi de extremaimportância. Veremos como Ortélio se inspirou emdescrições e representações anteriores, mas aquilo queno longo prazo é mais marcante é o impacto que ofrontispício viria a ter, até o século XIX, nas subsequentespersonificações dos continentes. Essa página funcionoucomo a matriz que seria usada, com algumas variantes,em diferentes formas da cultura visual e performática —mapas, desenhos, gravuras, registros reais, pinturas,monumentos e esculturas públicas —, sem que ospressupostos patentes no simbolismo fossem desafiados.A razão para isso era simples: o frontispício sublinhava aposição superior da Europa.Figura 5.1. Abraão Ortélio, TheatrumOrbis Terrarum. Antuérpia: Apud Ægid.Coppenium Diesth, 1570. Frontispíciorepresentando os quatro continentes.Berlim, Staatsbibliothek.Se analisarmos com mais atenção a iconografia dofrontispício, veremos que a representação da Europaconcentra as ideias de sabedoria, justiça, ética etrabalho. As figuras alegóricas restantes carecemclaramente desses atributos. O contraste vertical entre aEuropa e a América, estando esta literalmente tão abaixoquanto possível dos pés da primeira, é o mais revelador.O cetro é um símbolo de autoridade real ou imperial queimplica o exercício legítimo da justiça. A América usauma borduna estilizada em vez de um cetro pararepresentar a total ausência de justiça ou de autoridademoral. A ideia de que depende unicamente da lei dabrutalidade, algo enfatizado pela cabeça da vítima, umidoso sábio barbado, acentua o contraste com a Europa.A oposição horizontal da Ásia em relação à Áfricatambém foi algo cuidadosamente encenado: a primeiracom belas roupas e um toucado elegante, que insinuamluxo e indolência; e a segunda mostrando dureza eselvageria ao surgir desnuda e com adornos descuidadosna cabeça. A oposição entre as duas figuras é reforçadapelo contraste entre o ramo de madeira perfumadaarrancado de uma árvore e o turíbulo que queimaprodutos aromáticos refinados. Existe uma derradeiraoposição diagonal entre Europa-Ásia e África-América,definida pelo vestido contra o despido, e pelo decorocontra a nudez. Mais uma vez, as roupas são umelemento de suma importância na identificação etransmissoras de preconceitos.No entanto, a oposição vai mais longe, já que a Europaé apresentada como exemplo do trabalho e da decência,com vestes e calçado sóbrio, num grande contraste coma Ásia sensual e indolente, descalça e de roupastransparentes. O significado simbólico dos quatroelementos também está em jogo nessa iconografia, emque cada pormenor foi escolhido a dedo: o fogo estájustaposto à figura da África e ligado à figura da Américapara representar a natureza extrema do clima e acorrespondente selvageria dos habitantes. Por fim, deve-se notar que, enquanto a Europa está cercada peloelemento terra (a videira), que significa raízes firmes eum ambiente equilibrado e frutuoso, a Ásia está cercadapelo elemento ar, destacado pelo incenso, o que significaleviandade ou, melhor ainda, falta de seriedade.Existia já uma longa tradição de personificação dascidades e províncias do Império Romano, da qual haviavestígios em alguns mapas sobreviventes (oureproduzidos), como o chamado mapa Peutinger, ondesurgem figuras alegóricas de Roma, Constantinopla eAntioquia.5 Também se apresentavam personificaçõesdas províncias do Império Romano em medalhas emoedas, acima de tudo do Norte da África, dominadopela imagem do Egito como mulher de perfil, com umelefante como toucado, e um escorpião e turíbulo, talcomo reproduzido por Antonio Agostini em 1592.6 Essetipo de imagética continuou a moldar a figura alegóricado antigo Egito no mapa correspondente publicado em1565 por Ortélio, que era conhecido como antiquário.7 Talcomo vimos, as referências ao modelo egípcio nãoestavam totalmente ausentes da imagem da África noTheatrum Orbis Terrarum, mas a escolha da figuraalegórica negra subsaariana para a África definiu umponto de virada com consequências duradouras. Emboraa imagem mítica da violação de Europa por Zeustransformado em touro fosse, obviamente, bemconhecida, a disposição alegórica das três partes domundo não fora personificada na arte medieval, havendoapenas referências simbólicas associadas aos três filhosde Noé ou aos três reis magos.Figura 5.2. Povo de “Calicute” em O triunfo do imperadorMaximiliano I, c. 1517-8, xilogravura de Hans Burgkmair. MuseuBritânico.A surpreendente representação dos continentes comofiguras femininas (e só ocasionalmente masculinas) teveinício nas cerimônias quinhentistas de marchas triunfais,tomadas de posse, casamentos e exéquias reais — acimade tudo, as ligadas ao imperador. Em 1516, em Bruxelas,as cerimônias fúnebres do rei Fernando de Aragão eCastela, organizadas pelo artista da corte habsburga JanGossaert, incluíram um desfile mascarado de mouros eíndios que representavam os povos conquistados deGranada e das ilhas caribenhas.8 Em 1517-8, asxilogravuras de Hans Burgkmair de diferentes povos domundo para a marcha triunfal do imperador Maximiliano Irenovaram a tradição, iniciada na Europa Ocidental porRogério II e desenvolvida por Frederico II, de representaros africanos e os asiáticos como povos derrotados paraelevar o status imperial.9 Em 1520, a entrada de Carlos Vem Antuérpia contou com a exibição de África e Ásiaajoelhadas perante o soberano, representado abraçandoa Europa. A imagem estava ladeada por troféus decabeças empaladas de muçulmanos e otomanos norte-africanos. Em 1526 construiu-se em Sevilha, para ascerimônias que assinalaram o casamento de Carlos Vcom Isabel de Portugal, um arco do triunfo querepresentava a Glória personificada a coroar o imperadore a imperatriz, com italianos, espanhóis, alemães,flamengos, mouros e índios a seus pés.10 Em 1539, emFlorença, Carlos V foi recebido com um arco triunfal quecelebrava a sua posição como imperador, com apersonificação de Espanha, México, Peru, Alemanha,Itália e África como seus vassalos. Dois anos depois, emMilão, Giulio Romano construiu um arco em que oimperador representava a Europa, com um índio (apersonificar o Novo Mundo), um mauritano (África) e umturco (Ásia) a seus pés. Foi uma das primeirasrepresentações públicas dos quatro continentes. Em1549, em Antuérpia, durante a entrada de Carlos V e doseu herdeiro, o príncipe Filipe, um cortejo representou astrês partes do mundo governadas pelo príncipe,personificadas por figuras femininas que apresentavamuma turca como a Ásia e uma egípcia como a África. Aíndia que simbolizava o Novo Mundo não foi apresentada,mas havia uma inscrição que a citava. A representaçãocontinuava, mostrando Filipe expulsando turcos, mouros,árabes, sarracenos, africanos e mamelucos do palco,tendo como objetivo explícito a libertação das provínciasda Grécia, do Norte da África e da Ásia Menor. Em 1558,em Alcalá de Henares, as exéquias de Carlos V contaramcom a personificação das quatro partes do mundo comoponto central de um programa iconográfico quepretendia reforçara ideologia imperial personificada pelocélebre soberano.11 Em 1564, mais uma vez emAntuérpia, o ommegangen (um espetáculo em quejovens executavam quadros vivos que representavam acidade, as províncias dos Países Baixos e as naçõesmercantes) incluiu pela primeira vez um carro com arepresentação alegórica das quatro partes do mundo(exibido novamente em 1566), denominado Teatro domundo.12Esse inventário de alegorias das várias partes domundo anteriores ao frontispício de Ortélio não éexaustivo, mas sugere que Antuérpia foi o principal palcodessa inovação iconográfica, embora as cidades italianas(e, em menor escala, as cidades espanholas) tenhamigualmente desempenhado um papel importante. Issonão surpreende, pois durante esse período Antuérpiadesfrutou três vantagens extraordinárias: foi o centro dosistema mundial europeu durante a maior parte doséculo XVI (aproximadamente 1500-85), aproveitando-sedas explorações oceânicas ibéricas.13 Foi um importantecentro de poder durante o reinado de Carlos V,desempenhando o papel fulcral de mediador entre aEuropa Austral e a Setentrional.14 E alguns dos seuscidadãos acumularam conhecimentos extraordinários emáreas cruciais, como a impressão, a gravação, aprodução de emblemas (imagens simbólicasacompanhadas por texto), a numismática (produção eestudo de moedas, medalhas e papel-moeda), ageografia, a cartografia e a matemática.15 Todos esseselementos aproveitaram a localização de Antuérpia naregião mais densamente urbanizada da Europa.16 Osrecursos intelectuais da cidade e a sua liberalidadepodem ser avaliados pela dimensão do círculo deamizades, colaboradores e correspondentes de Ortélio,entre os quais se contavam: o seu patrono, o cardealPerrenot de Granvelle; os artistas Pieter Brueghel, oVelho, Philip Galle, Cornelis Metsijs, Dirck Coornhert,Lucas de Heere, Joris Hoefnagel, Hubert Goltzius, FranzHogenberg e Jan Sadeler; os impressores AegidiusCoppen van Diest, Gerard de Jode e Christoph Plantin; opoeta Jan van der Noot; o jurista e político Adolphe vanMeetkerke; o orientalista Guillaume Postel; o filósofoJustus Lipsius; o geógrafo e cartógrafo Gerardo Mercator;o médico, historiador e colecionador Johannes Sambucus,que residia na corte de Viena; e o filólogo Benito AriasMontano, que residia na corte de Madri, entre muitosoutros.17As imagens dos povos do mundo conhecidorepresentados como súditos haviam sido produzidas aolongo dos séculos XI e XIII na Sicília e na Alemanha paraengrandecer os projetos imperiais (ver os capítulos 2 e3). As pretensões universais de tais projetos explicam oenvolvimento de povos de outros continentes. É por essemotivo que as imagens de africanos negros ou de povosamericanos nesse contexto são sempre ambíguas:selvagens mas poderosos, pois eram consideradossúditos ou potenciais súditos que poderiam sercristianizados. Uma vez que Ortélio vivia em Antuérpia,seria natural que absorvesse a crescente tendência depersonificação das quatro partes do mundo. Contudo,não há dúvida de que ele desempenhou um papelimportante na consolidação da alegoria da África, aindahesitante entre o egípcio e o africano negro, bem comona alegoria da Ásia, indecisa entre o turco otomano e oindiano. A alegoria da América desenvolveu-se desde asprimeiras representações de Burgkmair e Dürer até asexibições públicas em Milão e Antuérpia, mas aacumulação de referências escritas e visuais aocanibalismo dos nativos, desde as cartas impressas deColombo e de Américo Vespúcio ao relato de HansStaden do seu calvário como prisioneiro dos tupinambásbrasileiros, é essencial para explicar a sua representaçãocomo os mais bárbaros povos do mundo.18 Assim sendo,a publicação do frontispício de Ortélio pode serconsiderada um ato visual de grande significado, que deuforma a três séculos de estratégias visuais concebidaspara legitimar a supremacia europeia.As décadas imediatamente seguintes à página de rostode Ortélio foram cruciais para a difusão da personificaçãodas quatro partes do mundo. Entre 1572 e 1618, GeorgBraun e Franz Hogenberg produziram frontispíciosextraordinários para os seis volumes de Civitates OrbisTerrarum. Essas páginas continham um vasto programade celebrações arquitetônicas e urbanas das virtudescívicas e dos valores comunitários; o frontispício dovolume 5 reproduzia os principais elementos das figurasdos quatro continentes, embora de modo menosdifamante para os outros três do que acontecera emOrtélio, algo que talvez se deva aos valores da cortesiasublinhados no pé da página através da representaçãode seis sábios sentados, entre os quais se incluía umturco, envolvidos numa agradável conversa.19 Masexistiam alternativas à personificação alegórica dosquatro continentes promovida por Ortélio.O frontispício do primeiro volume exaustivo sobrevestuário, publicado por Hans Weigel, em Nuremberg em1577 (ver figura 5.3), apresentava um europeu nu, ruivo,branco e robusto com um enorme rolo de tecido porbaixo do braço direito, um pente debaixo do braçoesquerdo e uma tesoura na mão esquerda.20 Eleestabelece um grande contraste com as outras figuras,de um soldado otomano (Ásia), um soldado mameluco(África) e um índio coberto de penas com arco e flecha(América). Essas imagens acentuam os atributosguerreiros dos outros povos do mundo, por oposição àtendência europeia para a contínua inovação novestuário, um tema da literatura renascentista queretomava a preocupação romana quanto ao declínio dasqualidades do seu povo. As imagens sublinham o inversodas qualidades que venho assinalando aqui e servirampara reforçar a linha de pensamento contemporâneoacerca dos povos do mundo, mas não contestaram apersonificação dos continentes adiantada por Ortélio. Énatural que já no século XVI o tema da moda suscitasse aquestão ambígua da mudança por oposição àsqualidades atemporais, e que a Europa inovadoracontrastasse com a Ásia, a África e a América imutáveis— sendo este um tema perene que foi posto em xequepor investigações recentes.21 O problema é que noséculo XVI a inovação não era considerada uma qualidadepositiva, já que se valorizava a constância. De igualforma, à época, as qualidades bélicas definiam amasculinidade.Figura 5.3. Hans Weigel, Habitus praecipuorum populorum […]Trachtenbuch (Nuremberg, 1577), frontispício pintado por JoostAmman, com alegoria dos quatro continentes.O segundo livro exaustivo sobre vestuário, publicadoem 1581 por Abraão de Bruyn, reproduzia as principaisideias do frontispício de Ortélio e acrescentavaelementos relevantes que viriam a ter uma vida bastantelonga.22 A folha de rosto está concebida como uma fontede mármore com o emblema de um cavaleiro tentandoapanhar uma mulher voadora, com as palavras “c’est envain” no topo. Não poderia haver melhor símbolo para anatureza volúvel da moda. No lado superior direito (àesquerda do leitor), a Ásia enverga um traje rico e umtoucado magnífico, mas está descalça. Tem um papagaioempoleirado na mão esquerda e vê-se um camelo notopo da coluna seguinte. A seus pés, a África recosta-sesobre dois mares, o Mediterrâneo e o Atlântico; estáquase nua, apenas com uma túnica larga em volta docorpo. Calça sandálias, tem um leque de penas na mãoesquerda e na direita uma romã (uma ligação comCartago, tal como sugerido por Valeriano). A África estáadornada com um colar elaborado, enquanto o toucado éfeito de milho. Tem como símbolo o elefante. No cantosuperior esquerdo da fonte está a América, uma mulherrobusta quase nua, com penas magníficas no toucado euma túnica aos ombros, que segura uma flecha na mãodireita e um arco na esquerda. Tem um belo colar aopescoço e um bracelete de sinos no braço esquerdo.Sobre a coluna ao lado da América está representado umgambá. A Europa surge no canto inferior esquerdo,montada num touro;usa sandálias e um toucado deflores e segura um dos chifres do touro na mão esquerdae louro na direita — um gesto duplo, que representadomesticação e glória. O símbolo ao seu lado é umcavalo. Em primeiro plano, ao centro da imagem, estáum globo.Nessa imagem, a tradição clássica foi a responsávelpela representação mítica da Europa e pela escolha doNorte da África fértil, com a figura representada nua, massem nenhum sinal de estereótipos físicos negros. Taltradição não desapareceria completamente na imagéticaposterior. A hierarquia dos continentes era um poucomenos óbvia nesse frontispício de Bruyn quandocomparado com o de Ortélio, mas nele constava umoutro elemento crucial: a representação de animaisassociados às diferentes partes do mundo (o camelo àÁsia, o gambá à América, o elefante à África e o cavalo àEuropa). A ligação entre humano e animal correspondia auma outra tradição antiga, embora algo que se haviafragmentado, que destacava o ambiente dos diferentestipos de seres humanos e sugeria que os animais quepartilhavam esse ambiente apresentavam atributossemelhantes. Agora, essa ligação tornava-se sistemática,destinada a ter um efeito duradouro. A ligação entre apersonificação dos continentes e os mapas do mundoexpandiu-se, através das vestes, para se tornar umelemento importante para a identificação de povos,cidades, províncias e países. Contudo, devemos observarcom mais atenção o impacto representado pelofrontispício de Ortélio para o Theatrum Orbis Terrarum,pois as alegorias viriam a se tornar bastante autônomas,transformando-se num gênero visual específico.A personificação dos continentes desenhada porMarten de Vos e gravada por Adriaen Coollaert por voltade 1589 desenvolveu as alegorias femininas vistas notrabalho de Ortélio, inserindo-as num contexto maisvasto. A Europa é definida segundo os mesmos atributos(coroa imperial, cetro, vestes e vinha), e o fundo mostra,de um lado, agricultura e criação de gado (vacas, cavalose ovelhas) pacíficas e prósperas, enquanto, do outrolado, um par de ursos com lanças e mosquetesrepresenta a guerra constante, mas ordeira. A Ásia estámontada num camelo, com vestes tão ricas como as daEuropa, mas não usa coroa e tem um incensário no lugardo cetro. Repete-se a simetria de ambas as imagens, deum lado com camelos, girafas e elefantes, e do outrocom guerra. A África é mais uma vez uma negra nua comos estereótipos físicos habituais, e que segura um ramode madeira perfumada numa mão. Está sentada numcrocodilo — um elemento crucial que em geralrepresenta a voracidade e a destruição. As cenas aofundo mostram um misto de referências egípcias(obelisco e aquedutos), predadores selvagens e pessoasvivendo em grutas. A América (ver figura 5.4) é maisuma vez representada como uma guerreira amazonaquase nua, com penas na cabeça e segurando ummachado, além de arco e flechas. Está sentada num tatu— muito mais impressionante e exótico do que o gambá.Atrás dela veem-se cenas de guerra desordenada contraeuropeus e de canibalismo.23Figura 5.4. Ilustração da América da série de personificações doscontinentes, 1589, de Marten de Vos. Darmstadt, HessischesLandesmuseum, n. inv. ae440.Essas imagens influenciaram durante mais de umséculo a personificação dos continentes nos mapas-múndi, especialmente os impressos nos Países Baixos.Em 1652, o mapa-múndi de Claes Janszoon Visschercontinuava a usar as imagens quase inalteradas de DeVos, salvo pelo fundo simplificado. Claro que nunca sedeixou de experimentar outros elementos simbólicos,que viriam a aumentar a abrangência das alegorias. Porexemplo, o mapa de 1594 da autoria de Petrus Planciusbaseava-se no mesmo esquema, incluindo símbolos dasartes liberais ao lado da Europa, a Ásia sentada numrinoceronte, e uma América dividida em mexicana,peruana e magalânica. Este último elemento era umaimagem nova e totalmente isolada de uma mulhervestida liderando uma guerra travada com elefantes,enquanto as outras imagens reciclavam representaçõesanteriores de astecas, incas e índios canibais.24 Ainspiração de Plancius para a associação da Europa àsartes liberais continua incógnita, mas é de extremaimportância para o tema aqui debatido: o novo elementoexpressava a ideia, que viria a ter uma longa vida, desuperioridade dos conhecimentos europeus.As alegorias dos continentes seriam consolidadastambém por Cesare Ripa, cuja Iconologia, publicada pelaprimeira vez em 1593, seria amplamente usada nosséculos seguintes por pintores, escultores e gravadoresde toda a Europa como guia para o simbolismo, tendo aobra, a partir da edição de 1603, a vantagem de juntartextos explicativos e imagens em cada entrada.25 Ripaapresentava uma síntese dos continentes não europeus,com as seguintes características básicas: a Ásia comflores e frutos na cabeça, roupas suntuosas e toucado,um turíbulo fumegante numa mão, além de um ramo demadeira perfumada, pimenta ou cravo-da-índia na outra,e um camelo ao fundo; a África com vestes simples elargas, um colar de coral, cabeça de elefante comochapéu, uma cornucópia cheia de cereais e um escorpiãonas mãos, e atrás dela um leão e cobras (numarepresentação da África “moura”, tal como sublinhadopelo texto, embora indique pele escura e cabelo pretoencaracolado); e a América com uma túnica larga quemal lhe cobre o sexo, pele amarelada, de arco e flechasnas mãos, uma cabeça trespassada com uma flechadebaixo dos pés, sinal de canibalismo, e atrás dela umlagarto enorme. Não se tratava de inovaçõesiconográficas, embora a figura da África revele umaespécie de mistura entre o Norte da África fértil (algobaseado na imagem clássica do Egito) e a África negra. Afigura da Europa, no entanto, é muito mais complexa doque as anteriores, concentrando mais características, ecorrigindo algumas delas, numa pequena vinheta. Emprimeiro lugar, na mão direita exibe um templo: supõe-seque a “verdadeira religião” a diferencie dos outroscontinentes. Em segundo lugar, tem o conhecimentodestacado aos seus pés, com a representação de umacoruja sobre os instrumentos das artes liberais:esquadro, pincéis e um cinzel. Em terceiro lugar, envergatrajes sóbrios, sem joias ou ornamentos, o que mostra oimpacto das reformas protestantes e católicas, com a suaênfase no decoro. Os outros elementos são jásobejamente conhecidos: a coroa, dessa vez multiplicadapara mostrar a concentração de poder no mundo,incluindo o do imperador e o do papa; os chapéuscardinalício e episcopal; as cornucópias cheias decereais; e o cavalo com troféus militares. A superioridadeda Europa é aqui sublinhada com a reunião dos símbolosda religião, da sabedoria, do poder político e do poderiomilitar.A representação das quatro partes do mundorapidamente foi transferida para a pintura: em 1572-4,Giovanni di Vecchio executou um afresco notável para asala dos mapas-múndi do Palazzo Farnese, em Caprarola(Turim), cujas margens apresentavam alegorias dosquatro continentes (aqui, a africana negra érepresentada com um macaco aos pés); em 1584-6,Paolo Fiammingo utilizou-as numa série de pinturasencomendadas por Hans Fugger para o seu castelo emKirchheim; em 1595, Paolo Farinetti pintou um afresco domesmo tema para o conde Alvise della Torre, emMezzane del Soto (Verona); e, por volta dessa data,Prospero Fontana (1512-97) pintou em Roma um afrescocom o mesmo tema para a Saletta Pompeiana do PalazzoFirenze. Esses são apenas alguns exemplos relevantes.Na década que se seguiu, o tema arraigou-se ainda maisna pintura e passou para a escultura: Peter Paul Rubenspintou uma tela importante sobre o tema por volta de1615; Frans Francken pintou Homenagem da terra e domar a Apolo (1629) e Alegoria da abdicação de Carlos V(1636), e Gian Lorenzo Bernini esculpiu a Fonte dosQuatro Rios no centro da Piazza Navona, emRoma(1648-51).26 As possibilidades da pintura proporcionaramuma representação mais complexa, mas os temasobrigavam também a uma certa disciplina. Por exemplo,os quadros de Francken centravam-se na riqueza, nostributos e nas oferendas. O esplêndido complexoescultural da Piazza Navona expressava as possibilidadesgarantidas pela personificação dos “principais rios domundo” (mais uma vez, quatro) como mais um veículoimportante para a alegoria dos continentes. A obraorganizava-se em torno do Danúbio, do Ganges, do Nilo edo rio da Prata, cada um ligado a animais(respectivamente um cavalo, uma cobra, um leão e umcrocodilo), mais importantes do que as figuras humanaspara definir, de forma metonímica, as características decada continente.Durante o século XVII, a tradição de associar mapas domundo (continentes ou regiões) a imagens das cidadesmais importantes e dos povos mais “típicos”, em geralrepresentadas em pares nas margens, enraizou-se notrabalho dos principais cartógrafos neerlandeses (JodocusHondius, Pieter van den Keere, Visscher, Willem Blaue eFrederik de Wit, seguindo Braun e Hogenberg). Osvolumes sobre vestuário aproveitavam, ao mesmo tempoque também criavam, muitas das imagens usadas emmapas, atlas e panoramas de cidades do mundo. Nolongo prazo assistimos à invenção de gêneros de livrosque juntam quase à perfeição a representação decidades e a imagem de povos específicos. Não voudiscutir a cristalização das imagens estereotipadas dospovos através do vestuário, bastando chamar a atençãopara o uso dos fenótipos, dos toucados e do vestuáriocomo critérios de identificação. O livro publicado porCarel Allard por volta de 1695, Orbis habitabilis oppida etvestitus, dá um bom exemplo dessas inovações, já quenele se combinaram sistematicamente imagenstopográficas com imagens de vestuário para representarum número semelhante (cerca de vinte) de cidades decada continente.27 O seu frontispício estabelece umdiálogo interessante com a tradição estabelecida porOrtélio: os quatro continentes são representados porpares, segundo a tradição do livro de vestuário, com asimbologia habitual. A novidade é o fato de a mulhereuropeia ser representada como uma “femme savante”,que facilmente podemos imaginar num dos salõesparisienses, já tão essenciais para o mundo letrado daépoca. Ela não ostenta nenhum símbolo de poder, mas éa única figura que permanece sentada e sobre a qualconvergem os movimentos e os olhares das restantes,que lhe levam ofertas ou tributos, como o casal africanonegro, com a mulher acorrentada transportando umatartaruga e o homem ajoelhado aos pés da Europaoferecendo marfim. Trata-se de uma variante dasuperioridade da Europa, em que a hierarquia doscontinentes é sublinhada pela postura, pelas vestes ouaté por correntes.Figura 5.5. Afresco dos quatro continentes, seção sobre a Ásia,teto Salão da Escadaria na Residenz de Würzburg, 1752-3, deGiambattista Tiepolo. Detalhe de um escravo agrilhoado, ao ladode um elefante, e representação da Ásia, literalmentedesequilibrada.Entre 1570 e 1790 foram executadas muitas obras dearte (desenhos, gravuras, pinturas e esculturas) que seserviram da personificação dos continentes. SabinePoeschel compilou 112 exemplos: 21 no século XVI, 34 noXVII e 57 no XVIII, com a grande maioria tendo sido criadana Itália (42) e na Alemanha (39), seguidas pelos PaísesBaixos (15), França (12) e Espanha (4).28 É impossívelanalisar aqui a maior parte desses trabalhos, masdestaco o significado simbólico da obra-prima deGiambattista Tiepolo, o afresco pintado em 1752-3 noteto do Salão da Escadaria na Residenz de Würzburg (verfigura 5.5), considerado a mais vasta e uma das maisimponentes pinturas da Europa.29 A posição subalternada Ásia, da África e da América perante a Europa éclaramente indicada pela escolha de posições em relaçãoàs escadas e pela representação das figuras: a Europa éo único continente coroado, e as figuras restantes olhamdiretamente o espectador. Os elementos iconográficosestabelecidos são usados na composição: a Europa, comvestes ricas mas com cores e ornamentos sóbrios, érepresentada com os símbolos da sua origem (o mito daviolação por Zeus), da natureza domesticada (o cavalo),da verdadeira religião (o templo, a mitra e a cruz, e acrossa do príncipe-bispo), das artes liberais (música,geografia, arquitetura, pintura e escultura, com retratosde Tiepolo e dos seus colaboradores, Neumann e Bossi) eda capacidade bélica (um canhão e um oficial).Entretanto, a África quase nua monta um camelo, comum macaco, um avestruz e um pelicano representadosno mesmo friso, completado pela figura do Nilo, ao ladode várias cenas que exibem mercadores orientais eeuropeus, e homens locais fumando cachimbo. A Ásia, deturbante, está sentada num elefante, cercada por umgrupo de escravos, um criado com um turíbulo, caça atigres e leões, e temos uma seção que indica a falsareligião, representada por um obelisco e um ídolo. AAmérica nua, com um toucado de penas, está sentadanum crocodilo, num cenário amplo com músicos, frutos eum criado com um pote de chocolate, e é contrastadacom uma caça a um aligátor e com uma cena decanibalismo observada de modo um tanto bizarro peloautor europeu com o seu quê de deturpado. Alpers eBaxandall sugerem que, na cena asiática, o escravo coma grilheta no pulso direito está agarrando o pulsoesquerdo, o que pode significar que está acorrentando asi próprio — uma inovação iconográfica que vai aoencontro da ideia europeia de despotismo e falta deliberdade oriental, algo também sublinhado pelas mãosem posição de súplica ao lado do escravo manietado. Émarcante a oposição entre a Europa e os continentesexóticos, representados com vida selvagem, caça ecanibalismo, mas também repletos de elementoscomerciais (barris, fardos, troncos), para-sóis, turbantes,chapéus cônicos e estranhos toucados, que criam umaatmosfera orientalizada no friso, mesmo na África e naAmérica.Nessa história das bases ideológicas da supremaciaeuropeia, o exotismo é o elemento crucial no contrasteentre a Europa e os demais continentes. A produção doexótico foi um elemento inerente à expansão europeia,que redefiniu os parâmetros culturais e os critérios dacivilização (tal como seriam chamados no século XVIII),menosprezando as outras culturas e justificando odomínio político onde quer que fosse estabelecido.30 Oorientalismo desempenhou um papel essencial nessaconstrução do exotismo, tal como vinha acontecendodesde a Antiguidade Clássica, sendo renovado ao longoda Idade Média e da Renascença; deu corpo a umprimeiro contraste com a Europa Ocidental e definiu asprincipais características da “estranheza” que seriadesenvolvida em relação aos outros continentes.31 Nãoobstante, a expansão europeia trouxe consigo novostópicos que se cristalizaram nas alegorias dos quatrocontinentes, amplamente usados até as primeirasdécadas do século XX.Não posso acompanhar todos os passos desseprocesso, que se renovou continuamente sem grandesinterrupções. Jean-Baptiste Carpeaux (1827-75) esculpiua sua mais famosa representação no período final; oprefeito de Paris, o barão Haussmann, encomendou-lhe acriação de uma fonte para os Jardins do Luxemburgo(1867-74).32 A estátua pública baseava-se nagraciosidade de movimentos, com quatro figurasfemininas dispostas em círculo, rodando e segurandouma esfera celestial entre elas (ver figura 5.6). Trata-sede uma das imagens mais “igualitárias” dos quatrocontinentes: todas estão nuas (ou quase desnudas). Noentanto, temos uma certa hierarquia expressa porelementos discretos, como o penteado, ou diferentesposições em relação ao observador. A Europa, de cabelocomprido, está representada numa posição frontal. AÁsia é vista quase de costas, com um longo rabo decavalo que acentua o estiloexótico dos penteados daChina (mostrando como o país assumira destaque namente europeia). A América usa um toucado com penas.A África tem uma grilheta com uma corrente partida notornozelo direito e usa um pedaço comprido de tecidogrosseiro como toucado, dentro do qual se encontra umacobra. É óbvio que Carpeaux foi beber numa tradição derepresentação, introduzindo elementos novos, como acorrente partida, para simbolizar a abolição daescravatura (em 1848, nas colônias francesas). Areferência ao canibalismo desapareceu, embora a Áfricacontinue a exibir alguns dos antigos símbolos, sendo ofragmento de corrente um elemento ambíguo, que aomesmo tempo que celebra a abolição da escravaturarecorda a quem olha a condição inferior do continente.As boas intenções por parte do escultor foramacentuadas por um busto separado que Carpeaux fez daÁfrica, exposto com o título “Por que nascer escravo?”.Ainda assim, a supremacia da Europa é reafirmada numnovo contexto: menos hierárquica, supostamente maishumanitária, mas muito mais eficiente, segundo o pontode vista imperialista. A mudança de tom antecipava anova era colonial que seria inaugurada na década de1880 e que levaria ao controle europeu, direto ouindireto, de quase toda a África e de parte da Ásia.33 Aessa altura, a Europa não precisava de escravos, mas simde súditos diligentes.Figura 5.6. Escultura em bronze noalto de uma fonte nos Jardins deLuxemburgo, Paris, 1867-74, de Jean-Baptiste Carpeaux. Grupo alegóricode quatro continentes segurando oglobo.HIERARQUIA DOS POVOSA cultura visual expressava ou até antecipava osgrandes desenvolvimentos intelectuais. A personificaçãodos continentes teve uma longa vida, desde o século XVIao XX, enquadrando a ideia de supremacia europeia e deuma hierarquia dos povos do mundo de uma formaextremamente simplificada e estereotipada. Segundouma perspectiva europeia, a vantagem dessas alegoriasera óbvia: elas sintetizavam os principais preconceitoscontra os outros povos. Todavia, essa não era a únicarepresentação possível dos outros povos do mundo.Desde o início da expansão oceânica europeia existiuuma hierarquia alternativa — ou melhor, complementar—, baseada numa classificação mais complexa dos povosdo mundo. Essa classificação não coincidia com oscontinentes, baseando-se em critérios que enfatizavamos diferentes estágios da humanidade, atravessando asquatro partes do mundo. No entanto, podemosconsiderá-la um complemento à personificação doscontinentes, pois contribuiu para justificar de formaelaborada os princípios hierárquicos da supremaciaeuropeia. Baseava-se num programa inteligente deetnologia comparativa, formulado pela primeira vez demodo sistemático pelo jesuíta José de Acosta (1540-1600).34Acosta nasceu numa família de mercadores cristãos-novos de Medina del Campo. Estudou na universidadejesuíta da sua cidade, bem como nas universidades deSalamanca, Plasencia, Lisboa, Coimbra, Valladolid eSegóvia. Completou sua formação em teologia, direito,direito canônico e ciências naturais na Universidade deAlcalá de Henares. Acosta viveu em Roma e lecionou nasuniversidades de Ocaña e Plasencia. Em 1571, apósvários anos de pedidos sucessivos, foi incluído numamissão às Américas. Viveu no Peru entre 1572 e 1586,servindo como reitor da universidade de Lima, calificador(consultor de teologia) da Inquisição e provincial jesuíta.Visitou extensivamente as universidades jesuítas dointerior (Cuzco, Arequipa, La Paz, Potosí e Chuquisaca),teve contato com as línguas dos quíchua e dos aimará, efoi um dos fundadores da primeira “redução” — umaaldeia indígena criada pelos jesuítas em Juli, no lagoTiticaca, em 1578. Na sua viagem de regresso à Europa,Acosta permaneceu um ano no México, recolhendodurante esse período informações sobre os nativos daNova Espanha, bem como sobre os chineses e osjaponeses. Conheceu vários missionários queregressavam do Extremo Oriente — especialmente P.Alonso Sánchez —, e os chineses com quem entrou emcontato explicaram-lhe o seu sistema de escrita. Oâmbito da sua pesquisa tornou-se comparativo. Noentanto, Acosta não foi o único missionário interessadona recuperação dos conhecimentos ameríndios após asua destruição deliberada por toda uma geração deconquistadores. O franciscano Bernardino de Sahagún(1499-1590) foi um grande e extraordinário exemplo decoleta persistente de conhecimentos etnográficos,linguísticos e históricos sobre a cultura nauatle, tendocomo base os inquéritos sistemáticos entre os sábiosidosos da elite nativa.35 Acosta estava certamentepreparado para produzir a série de livros que compilouexplicitamente para provar a engenhosidade indígena.Acosta foi influenciado por Bartolomé de Las Casas(1484-1566), que a partir da década de 1510 condenoucom persistência a ilegitimidade da conquista espanhola,a usurpação dos domínios indígenas e a iniquidade dasencomiendas (os trabalhos forçados a que eramobrigados os nativos americanos sob o controle dosconquistadores), defendendo os direitos dos índios àpropriedade e à autonomia.36 Essas reivindicaçõestiveram um impacto surpreendente nas políticas deCarlos V, dando origem a uma nova legislação que tinhacomo objetivo proteger os interesses dos índios econtrolar a tirania dos colonos. As consequênciaspolíticas da visão de Las Casas podem ter sidodemasiado radicais para serem levadassistematicamente a cabo pelo rei ou pelas elites, quelucravam com o sistema colonial, mas suas reflexõesteológicas (e filosóficas) sobre o status dos índios teveuma influência muito mais profunda através da “escolade Salamanca”, criada pelos dominicanos Francisco deVitoria (c. 1492-1546), Domingo de Soto (1494-1560) eMelchior Cano (1509-60), entre outros, que moldou asideias de uma segunda geração de jesuítas, entre osquais se encontravam Luis de Molina (1535-1600) eFrancisco Suárez (1548-1617). Essa escola depensamento afirmava a natureza humana dosameríndios, rejeitava que lhes fosse aplicada a noçãoaristotélica de escravidão natural, contestava a justiça daguerra que era travada contra eles, defendia a sualiberdade e apoiava a ideia da capacidade de melhoria,devido à sua natureza infantil.37 Contudo, eles tambémdefiniram os critérios para o comportamento cívico, combase na existência de um ambiente urbano, decomunicações, comércio, capacidade tecnológica,linguagem e escrita, contrastando-o com o sacrifíciohumano, o canibalismo e os hábitos nômades selvagens(especialmente no que dizia respeito ao parentesco e àalimentação). Os diferentes graus de barbarismobaseados no ambiente, nos costumes e numa supostanatureza infantil tornaram-se tópicos de debate. LasCasas e a escola de Salamanca apontaramcaracterísticas partilhadas pelos índios, pelos antigoshabitantes da Europa e pelos camponeses europeuscontemporâneos — tema desenvolvido por missionáriosna Itália, na Espanha e em Portugal.38Era esse o contexto do empreendimento de Acosta. Aclassificação de bárbaros não cristãos feita por Acosta éa que mais nos interessa, já que abrangia praticamentetodo o mundo conhecido. No prólogo do livro Deprocuranda Indorum salute, publicado em 1588, Acostadistinguia três tipos de bárbaros. O primeiro eram ospovos racionais, com sistemas estáveis de governo,direito público, cidades fortificadas, magistradosprestigiosos, comércio próspero organizado e uso deletras. Os chineses, os japoneses e alguns dos povos daÍndia pertenciam a essa categoria. Acosta chega amencionar uma cultura eurasiática comum, referindo-sea princípios, instituições, usos e costumes. Tais povosencontram-se no nível mais elevado em todos osaspectos, salvo no que diz respeito a questões religiosas.A conversão desses povos deveria ser obtidaexclusivamente através da persuasão; a violência ou astentativas de conquistairiam afastá-los da lei cristã.A segunda categoria de bárbaros eram os povos semuso regular de letras, leis escritas, ou estudos filosóficosou civis, embora dispusessem de um regime de governo,magistrados, colônias permanentes, administraçãopolítica, organização militar, formas de culto religioso enormas de comportamento. Acosta incluía nessacategoria os mexicanos e os peruanos, cujos sistemas degoverno, leis e instituições eram consideradosadmiráveis. Compensavam a falta de letras com umsistema engenhoso de símbolos (os quipos) pararegistrar a história, os ritos e as leis, usando-os aindacom a mesma competência que os europeus pararealizar operações matemáticas. Incluíam-se nessacategoria reinos menores, principados ou repúblicas quecriavam os seus próprios magistrados, por exemplo osaraucanos, os tucapalenses e outros chilenos, poisviviam em colônias permanentes e tinham noção dedireitos, embora se acreditasse que dispunham de umacapacidade muito menor de raciocínio intelectual ehabilidades práticas. Esses povos deviam ser livres e terdireito a usar a sua propriedade e as partes das leis quenão fossem contra a natureza ou o Evangelho. Noentanto, devido aos seus costumes monstruosos (ossacrifícios humanos), eles teriam de ser convertidos comum misto de violência e de persuasão, e submetidos àautoridade de príncipes e de magistrados cristãos.A terceira categoria incluía os selvagens, consideradossemelhantes aos animais, que tinham sentimentoshumanos, mas não dispunham de leis, monarcas,convenções, magistrados ou regimes permanentes degoverno, e que se deslocavam constantemente comoanimais. Viviam quase sem roupa, eram cruéis comquem passava pelas suas regiões e alimentavam-se decarne humana. Acosta afirmava que no Novo Mundoexistiam inúmeras “manadas”, segundo as suaspalavras: caribes, chunchos, chiriguanas, moxos,iscaicingas (no Peru), moscas (em Nova Granada), algunsdos povos do Brasil e os povos do rio Paraguai, doextremo Sul, e da maior parte da Flórida. Incluía aindanessa categoria os habitantes das ilhas das ÍndiasOrientais, como as Molucas e as ilhas Salomão.Declarava que todos esses povos precisavam deeducação para que, como crianças, pudessem aprender aser humanos. Tinham de ser obrigados a viver emcolônias e a receber o Evangelho.39 Na Historia natural ymoral de las Indias, publicada em 1590, Acostaacrescentou à segunda categoria alguns dos otomitas doMéxico, e à terceira categoria os pilcozones, do Peru, e oschichimecos, do México.40 Nesses critérios básicos declassificação podemos ver a importância da ideologia davida sedentária e o preconceito contra o estilo de vidanômade.Acosta atribuía os diferentes graus de barbarismo aoambiente, ao isolamento relativo e aos costumes,reafirmando o princípio de que a educação de cada um ea evolução cultural eram promovidas pelacomunicação.41 Foi o primeiro a sugerir que a populaçãoameríndia poderia ter migrado desde a Ásia por umaligação terrestre antiga entre essas duas partes domundo.42 Essa teoria levava à conclusão de que osameríndios eram descendentes de Adão e Eva — algoessencial para as narrativas posteriores sobre a criaçãomonogenética da humanidade — e que eram o resultadode sucessivas migrações asiáticas. Acosta tambémapresentou um modelo de estágios de diferentes tipos deidolatria, baseado na veneração de fenômenos naturais,animais e imagens antropomórficas, tal como jáacontecera na Europa, onde os selvagens haviam dadolugar aos gregos e aos romanos, acabando por setornarem aptos para receber a mensagem cristã.43 Porfim, Acosta formulou uma história ordenada da escrita:primeiro surgiam os pictogramas baseados em imagens,sinais e mnemônicos (mexicanos e peruanos); depois,caracteres e cifras baseados na representação elaboradade motivos, com sinais adicionais, como os elementos deum alfabeto (chinês e japonês); e, por fim, os alfabetos,baseados na fonologia. Esta última forma de escrita eraconsiderada superior, já que supostamente seria a únicacapaz de reproduzir todas as palavras de umadeterminada língua (invocavam-se de forma implícita asescritas grega e latina, mas Acosta poderia também terincluído o hebraico ou o árabe). Descreveu o enormeesforço, por parte dos chineses, de memorizar ummínimo de 85 mil caracteres (com os eruditos precisandode 125 mil para se expressar, segundo afirmou demaneira equivocada), mas menosprezou aspossibilidades dessa escrita: “para eles, escrever épintar”; “eles escrevem com pincéis”; “a impressão nãoestá bem alinhada”; e eram incapazes de escrever“corretamente” nomes estrangeiros como o dele.44O mais marcante em relação a esse sistemaespantosamente exaustivo de classificação dos povos domundo é a justaposição de critérios de hierarquiapolíticos, econômicos e tecnológicos com modelosestruturados segundo a religião e a linguagem. Las Casasfornecera uma tipologia tripartite para odesenvolvimento, baseada no ambiente urbano, nocomportamento civilizado e no uso de comunicação e deleis escritas. Equiparara os selvagens aos invasoresbárbaros do Império Romano, mas recusou-se a incluir osameríndios nessa categoria.45 A classificação de Acostaera muito mais complexa. Incluía todo o conhecimentodisponível em diversos campos e podia ser aplicada aquase todos os povos do mundo. Sugeria de maneiraclara uma série de estágios do desenvolvimento culturalcom a qual, de alguma maneira, todos os povos domundo podiam identificar-se. Quando comparada com apersonificação dos continentes, implicava uma definiçãomuito mais sofisticada da superioridade europeia.Embora sempre julgada pelos critérios europeus deengenhosidade, a valorização sistemática das culturasmexicana e inca introduziu uma percepção niveladanaturalmente ausente da personificação alegórica doscontinentes. Por outro lado, a análise de Acosta dosprimeiros relatos sobre a excelência das culturas chinesae japonesa, que iam ao encontro de todos os principaiscritérios europeus, destacava os supostos limites dossistemas de escrita. O resultado dessa crítica foi a ênfasenas deficiências das melhores culturas asiáticas,tornando-as vulneráveis às competências europeias, paratodos os efeitos superiores. No entanto, a principalintenção de Acosta era sublinhar a natureza humana detodos os povos do mundo, além das suas possibilidadesde melhoria e das condições diversas para a conversão.O modelo precoce de melhoria cultural por trás dessaabordagem baseava-se na ideia de superioridadeeuropeia, motivo pelo qual os critérios de classificação deAcosta viriam a ser tão utilizados até o século XIX.Essas hierarquias estruturaram os estereótipos étnicoseuropeus no período da expansão oceânica. Noscapítulos seguintes veremos como os critérios europeus— a administração política de territórios importantes, ocorpo de leis, o registro de julgamentos, a organizaçãomilitar, o planejamento urbano, a competênciaarquitetônica, a construção com materiais “dignos”, acapacidade industrial e agrícola, a confecção dealimentos e o uso de cereais, os ornamentos e ovestuário “decentes” e as formas “superiores” de religião— moldaram a visão europeia dos outros povos,justificando diferentes formas de discriminação esegregação. É ainda importante reconhecer os detalhesda dinâmica interétnica em diferentes continentes, quelevaram ao conflito ou a alianças com os europeus. Atensão resultante da tentativa de assimilar ou dedistanciar outros povos serviu aos diferentes objetivoseuropeus no tempo e no espaço, o que nos lembra queos preconceitos podem ser ocultados ou ativados, deacordo com conjunturas específicas determinadas pelocomércio, pela evangelização ou pelos projetos imperiais.6. AfricanosDA ASSIMILAÇÃO AO DISTANCIAMENTOEm 1488, o príncipe jalofo Bemoim foi deposto.Bemoim governava um territórioRejeito essa visão imanente, que nãose baseia nem em dados científicos nem em indícioshistóricos. Defendo que precisamos investigar ascircunstâncias específicas da emergência das práticassociais de exclusão de determinados grupos e das teoriasraciais. Essas práticas e teorias não são universais e nãoapresentam a mesma configuração ao longo do espaço edo tempo, tal como veremos com a extensão da minhaanálise a China, Japão e Índia.11A interpretação marxista associa o racismo às relaçõesde produção, considerando os preconceitos quanto àascendência étnica e as ações discriminatórias comoprincípios básicos ideológicos e políticos da acumulaçãode capital, que servem para manter os salários baixos epara justificar a exploração dos tipos de seres humanosconsiderados inferiores.12 Trata-se de uma atualizaçãointeligente para os tempos modernos da noçãoaristotélica de escravidão natural, que justificava e criavaum contexto natural para a existência do trabalhoescravo. A vantagem dessa interpretação — a suaclareza — acaba por ser exatamente o seu grandeproblema: um âmbito limitado e um poder explicativoreduzido. Está exclusivamente associada às relaçõeseconômicas, contribuindo para a compreensão dosaspectos coloniais e pós-coloniais da divisão do trabalhointernacional, que maximizava os lucros ao mesmotempo que minimizava os custos tanto da produçãocomo da perturbação política; contudo, não fornece umaexplicação em nível global. Immanuel Wallerstein, porexemplo, considera irracionais as políticas nazistas deextermínio dos judeus, pois não se encaixam no modelode divisão racional de trabalho. É óbvio, porém, queexistem níveis de racionalidade além dos estritamenteeconômicos.As abordagens políticas e sociais sugerem melhoresmodelos interpretativos. Nos Estados Unidos, o racismofoi analisado como um projeto político que criava oureproduzia estruturas de domínio baseadas emcategorias raciais, aceitas sem discussão para aorganização de instituições e de identidades até osnossos dias.13 Há um século, Max Weber abordou oproblema de maneira sutil: associou o racismo e asteorias raciais à monopolização do poder social e dahonra, ao mesmo tempo que desempenhava um papelimportante na revelação da arbitrariedade daclassificação racial no seu tempo.14 É a luta pelomonopólio do poder social que está em jogo com oracismo e com a teoria racial. Os preconceitos quanto àascendência étnica combinados com açõesdiscriminatórias são assim associados a projetospolíticos, mesmo que nem sempre sejam integrados einstitucionalizados pelo Estado. Essas interpretaçõesinspiraram a hipótese de que o racismo é desencadeadopor projetos políticos e está ligado a condiçõeseconômicas específicas. O racismo pode ser alimentadoou desencorajado pelos poderes instituídos, canalizadopor uma rede complexa de memórias coletivas e depossibilidades repentinas — uma rede que pode alterar aforma e os objetivos do racismo.SEMÂNTICAOs conceitos usados para analisar o racismo são, elespróprios, produtos da história, razão pela qual é essencialque os contextualizemos. Os termos “racista” e“racismo” foram criados recentemente, em finais doséculo XIX, início do XX, para designar aqueles quepromoviam a teoria racial combinada com a hierarquiade raças. A divisão da humanidade em grupos dedescendência que supostamente partilhariam os mesmostraços físicos e mentais foi reduzida para se enquadrarem contextos políticos específicos, com tais gruposdispostos numa relação de superioridade ou deinferioridade. Nas décadas de 1920 e 1930, os termos“racista” e “racismo” assumiram o sentido de hostilidadecontra grupos raciais. Essas inovações linguísticasrefletiam as políticas de segregação no Sul dos EstadosUnidos e o desenvolvimento, na Europa, de movimentosnacionalistas baseados em teorias raciais —concretamente, a ascensão dos nazistas ao poder naAlemanha. Os antônimos “antirracista” e “antirracismo”foram cunhados nas décadas de 1930 e 1950,respectivamente, para manifestar o protesto políticocontra os preconceitos, a discriminação e a segregaçãoraciais.15 A derrota da Alemanha nazista na SegundaGuerra Mundial revelou que os preconceitos raciaishaviam sido transformados em ações políticas numaescala sem precedentes, resultando em milhões demortes. A descoberta do ponto a que tinham sido levadasas políticas de extermínio racial conduziu à adoção doantirracismo, que é agora a norma.Se por um lado o substantivo “racismo” adquiriu deimediato um conteúdo específico, o significado do termo“raça” é extremamente instável. A palavra começou aser usada na Idade Média como sinônimo de casta,aplicada à cultura de plantas e à criação de animais. Nofim do período medieval, era usada como definição delinhagem nobre na Itália e na França. Durante a longacontenda ibérica entre muçulmanos e cristãos, seguidada expansão ultramarina, o termo “raça” adquiriu umsentido étnico — originalmente aplicado aosdescendentes de judeus e de muçulmanos, referindo-se àimpureza do sangue, e foi depois usado para nativosafricanos e americanos. Portanto, no contexto ibérico, oconteúdo semântico do termo desenvolveu-se através deum sistema hierárquico de classificação étnica. No séculoXVIII, o termo “raça” era usado na Europa para referir ogênero feminino e, de um modo geral, para indicarvariedades de seres humanos. No seio das teorias dasraças, o termo adquiriu um papel ambíguo nacatalogação de subespécies, praticamente transformadasem espécies pelo racialismo científico de meados doséculo XIX. Em finais do século XIX, início do XX, o triunfodo nacionalismo por todo o mundo ocidental fez com queo termo “raça” fosse equiparado a nação.16A devastação extraordinária deixada pela SegundaGuerra Mundial, em grande medida motivada pelasteorias raciais, pôs em discussão a base científica de taisteorias, bem como o próprio conceito de raça. O debatedesencadeado no fim da década de 1940 pela Unesconão chegou ao fim com o mapeamento e osequenciamento do genoma humano no ano 2000.17Hoje em dia, os cientistas contestam a base biológica daraça, pois a variação genética dentro das raçasconsideradas nos parâmetros tradicionais é maior do queentre raças distintas, embora aceitem a existência deaglomerados específicos étnicos com predisposiçõesclínicas em termos de imunidade e vulnerabilidade adoenças.18 Entretanto, e como já referi, o termo “raça”foi usado pelos afro-americanos para expressar a suaidentidade coletiva e subverter o uso pejorativo originalda palavra. A questão do “desejo” de raça foi examinadanesse contexto político e cultural.19 É necessária areavaliação do conceito de identidade como percepçãorelacional de pertencimento que afeta indivíduos, grupose comunidades ao longo do tempo bem como nosdiversos locais, num processo sistemático de construçãoe reconstrução.20 O racismo certamente desempenhouum papel relevante entre os grupos-alvo, dando origem arelações complexas de identidades resistentes.A ligação exclusiva do racismo à Europa foi contestadapor vários estudos sobre a China, o Japão e a Índia.21 Osconflitos entre etnias tuaregues e africanas na região doSahel, na África Ocidental, foram recentementeinterpretados à luz dos conceitos de raça e de hierarquiaracial, considerados anteriores à herança colonial.22 Sepor um lado a expansão muçulmana trouxe consigoconceitos de ascendência partilhados com os povoslatinos cristãos, a extensão dessa abordagem àinvestigação do genocídio contra os tútsis obriga a umaanálise mais profunda das tradições locais. Mais umavez, corremos o risco de reificar a noção de raça.A instabilidade do termo “raça” prova que a suaclassificação reflete o contexto histórico, em vez dedefini-lo. O problema é que o termo acabou por se tornardemasiado contaminado pelas práticaspróximo da foz do rioSenegal, onde os portugueses comerciavam escravos eouro. Anteriormente enviara presentes e um embaixadorao rei português, d. João II. Após a sua deposiçãorefugiou-se numa caravela lusitana, acompanhado porvários apoiadores, e partiu para Lisboa, em busca daajuda militar do soberano português. D. João II recebeu-ocom honras de Estado: ofereceu a Bemoim roupas dostecidos mais finos, ordenou que lhe servissem comidanuma salva de prata e recebeu-o de pé, a três passos dotrono, com o toucado erguido da cabeça, tal como fariacom um príncipe europeu. Bemoim e os seus seguidoreslançaram-se ao chão para beijar os pés do monarca edepois pegaram um punhado de terra, que deitaramsobre a cabeça em sinal de submissão. O rei disse-lhesque se levantassem e escutou o discurso do príncipe,traduzido simultaneamente por intérpretes reaisafricanos. Rui de Pina, o cronista que registrou oacontecido, elogiou as palavras do soberano jalofo, “quenão pareciam [proferidas] por um bárbaro preto, mas simpor um príncipe grego educado em Atenas”. D. João IIfalou várias vezes com o príncipe, prometeu a assistênciamilitar solicitada e organizou grandes festins em suahonra, além de entretenimento com teatro e dança.Bemoim era muçulmano, e decidiu-se que seriaconvertido ao cristianismo (“tratou-se de convertê-lo”,segundo as palavras do cronista). Foi prontamentebatizado, junto com seis dos seus seguidores, nosaposentos da rainha, com o rei e a rainha, o príncipe, oduque de Bragança, o núncio papal e o bispo de Tângercomo padrinhos. Bemoim recebeu o nome dom João(dom era a forma de tratamento ibérica que indicavauma origem nobre), foi armado cavaleiro pelo rei erecebeu um brasão, uma cruz dourada em campovermelho com as armas de Portugal. Bemoim declarou asua obediência e vassalagem, tendo sido enviado paraRoma o relato da sua conversão. Nos dias que seseguiram foram convertidos mais 24 dos seusseguidores. Bemoim partiu então para recuperar o seudomínio, com vinte caravelas comandadas por Pero Vazda Cunha — um vasto empreendimento militar queenvolveu pelo menos mil soldados. Além das tropas, osportugueses levaram madeira e pedra esculpida paraconstruir um forte e igrejas. Ao chegarem à foz do rioSenegal, o capitão português e seus oficiais ficaramdesconfiados de Bemoim, matando-o antes deregressarem a Lisboa com os navios e os soldados. D.João II ficou indignado com o gesto do capitão e oreprovou com veemência, acreditando que o príncipejalofo deveria ter sido levado para interrogatório.Contudo, não se atreveu a castigar o capitão.1Essa história é extremamente reveladora: o monarcadeposto foi recebido com honras de Estado comoqualquer príncipe europeu; o seu status de nobre esoberano foi reconhecido; foi aceito como vassalo do reiportuguês e recebeu uma nova identidade comocavaleiro cristão, tendo a sua conversão sido levada acabo pelo rei português como ato de propaganda paraimpressionar Roma. O episódio revela a tensão entre aatribuição do status europeu de cavaleiro a Bemoim e ospreconceitos étnicos contra os africanos negros. Pinaelogiou o discurso “grego” de Bemoim, mas o capitão daexpedição não confiava no governante jalofo. É provávelque o capitão receasse uma armadilha em territórioinimigo, ou que se tivesse dado conta da dissidêncianatural contra o projeto de construção de um forte e deigrejas. A força do preconceito étnico na corte realportuguesa pode explicar a impotência do rei paracastigar o capitão. Deve-se notar, contudo, que d. João IIfoi o mais temido rei da história portuguesa, nãohesitando em matar os mais poderosos rivais nobres,entre os quais um cunhado. O caso revela ainda a tensãoexistente entre os projetos reais de reconhecimento esubsequente assimilação dos príncipes nativos e aspráticas dos cavaleiros-mercadores portugueses emmissão.2 Os cavaleiros-mercadores tinham noção dacomplexidade das estruturas da África Ocidental e dasfrequentes alterações nas relações de poder locais, quejustificavam uma política mista de saque e comércio. Porfim, conceder um status nobre em estilo europeu aosoberano africano negro parece surpreendente, levandoem conta o contexto de comércio escravagista marítimoorganizado a partir da década de 1440, algo quecontribuiu bastante para a imagem depreciativa dosafricanos negros como pessoas que venderiam ospróprios filhos e familiares — um dos pressupostosusados para justificar a pilhagem feita pelos europeus naregião.3 Claro que esse reconhecimento de nobreza faziaparte de um projeto político que necessitava de aliançasna África para garantir uma presença constante e parapreparar futuras operações militares. Foi exatamente issoo que aconteceu no Congo.Os primeiros contatos dos portugueses com o reino doCongo ocorreram durante o mesmo período, em finais dadécada de 1480, início da de 1490. Verificou-se umatroca de ofertas e de embaixadores que levou a umapresença portuguesa estável na região, para a qualcontribuiu a existência de um poder regional estruturadoe importante. A conversão dos soberanos locais foi desdeo primeiro momento um objetivo explícito: pediu-se aorei congolês que rejeitasse os seus ídolos e feitiçarias,“tudo isso dito com gentileza [recomendou o reiportuguês] para evitar escândalo devido ao primitivismoe à idolatria em que ele vivia”.4 Em 1491, a expediçãoportuguesa obteve autorização para construir uma igrejana sede do poder congolês, a cidade de Mbanza-Congo,mais tarde chamada São Salvador. Converteram o rei,Nzinga a Nkuwu (batizado d. João), a maioria da famíliareal e parte da nobreza. A isso seguiu-se a destruiçãoritual de “ídolos”, levada a cabo pelos franciscanos econsagrada por uma expedição militar vitoriosa, apoiadapelos portugueses, contra vassalos rebeldes, os bateke,perto do rio Zaire. Contudo, os últimos anos do reinadode Nkuwu foram repletos de conflitos: regressou àscrenças anteriores, provavelmente pelo fato de aimposição de monogamia ter criado enormes problemassociais e políticos, devido à tradição da criação dealianças entre linhagens através de casamentossucessivos — problemas esses repetidos entre a nobreza;e entrou em conflito com o filho mais velho, Mvemba aNzinga, batizado Afonso, que se arraigara à fé cristã e foieLivros por Nkuwu para a província de Nsundi. Quando orei morreu, o seu filho Mpanzu a Kitima, que não eracristão, recebeu o apoio da vasta maioria da população eprovavelmente foi escolhido pelos nobres do reino compoder de eleição. Afonso contestou essa escolha,entrincheirou-se na capital, São Salvador, mobilizou anobreza cristã e deu início a uma batalha com a ajudados portugueses. Kitima foi morto e Afonso subiu aotrono, vindo a ter um longo reinado (1509-40), quefavoreceu a disseminação da fé cristã no Congo.5Mapa 6.1. Entidades políticas,enclaves e movimentos populacionaisna África, 1500-1800. Fonte: Geoffrey Barraclough (Org.),The Times Atlas of World History.Londres: Times Books, 1990, pp. 166-7.Os reis portugueses mandaram ao reino do Congo umfluxo constante de missionários, soldados, comerciantes,professores, livros cristãos, toalhas e colgaduraslitúrgicas, tecidos europeus, armas, cavalos, ferramentasagrícolas e até artesãos (os pedreiros e os carpinteiroseram especialmente apreciados). O fracasso portuguêsno reino do Benim, para onde se enviou uma expediçãosemelhante em finais da década de 1480, início da de1490, levou ao aumento do investimento no Congo. Osportugueses garantiram um fluxo constante de pessoaspara a região, recebendo em troca, acima de tudo graçasa acordos especiais estabelecidos durante o reinado deAfonso, dezenas de nobres congoleses, entre eleselementos da família real, que em Lisboa seriameducados na fé cristã e aprenderiam os hábitos do reino.6Os portugueses começarampor projetar a imagem dasua corte na corte congolesa, conseguindo depois vir aalterá-la segundo as suas funções e cargosadministrativos. O rei congolês recebeu um brasão dePortugal e pôde conceder títulos de nobreza (duque,marquês e conde) à maneira europeia. Foi atribuída aosportugueses a segunda melhor localização em SãoSalvador para edificar o seu bairro muralhado, ao lado daprincipal igreja e do palácio real fortificado, cercado pelascasas dos nobres congoleses na capital. Essas elitesvizinhas privilegiadas, africana e portuguesa, tinhamacesso às principais fontes de água potável.7 Embora orei português tenha estabelecido a tradição de se referirao monarca congolês como seu “irmão”, esteencontrava-se sob uma espécie de protetorado, umasituação incomum na África, onde em geral os europeustiveram de pagar tributos regulares pela sua presençaem várias regiões até o século XIX. O rei portuguêsaconselhou o soberano congolês a declarar a suaobediência ao papa e a enviar uma embaixada a Roma,algo que foi feito, com o apoio lusitano. Numa conclusãoextraordinária do episódio, em 1518, o rei portuguêsconseguiu convencer o papa a nomear o filho de Afonsocomo bispo Henrique.8Esses primeiros desenvolvimentos parecem sugerir umlongo processo de difusão da religião cristã na ÁfricaCentral, mas não foi exatamente o caso. Na parte III vouanalisar o impacto devastador na África provocado pelacriação na América de sociedades coloniais baseadas nocomércio escravagista. Vou ainda explorar a estratégiaportuguesa na África Central, que contribuiu para adeterioração de um início tão auspicioso (de um ponto devista missionário). Mas é preciso esclarecer que o casoespecial da evangelização no Congo não teve umimpacto significativo ou perene na percepção europeiados negros. O infante Henrique foi o único africano negroa ser eleito bispo até o século XX. Foram poucos osafricanos negros ou os indivíduos mestiços quealcançaram o estatuto de clérigos, sendo em geralordenados como padres seculares, sem acesso às ordensreligiosas mais prestigiadas. Conviviam com o constanteabuso da sua condição por parte dos europeus, sendoregularmente acusados de possuir conhecimentosinferiores, de carecer de moral e de estar envolvidos nocomércio de escravos.9 Durante o primeiro século deinteração, os relatos europeus evitaram (com umaexceção italiana, aparentemente censurada peloscronistas portugueses) referências ao canibalismo noCongo.10 O projeto de evangelização partia dopressuposto da boa natureza dos nativos. A erosão dapresença europeia e cristã no Congo veio alterar essaperspectiva. Se compararmos os primeiros relatos, definais do século XV, com relatos publicados um século emeio depois, é notória a mudança profunda daproximidade para a distância, de uma imagem espelhadapara uma estranheza incontornável.Giovanni Antonio Cavazzi, um frade capuchinho quenas décadas de 1650 e de 1660 trabalhou comomissionário em Angola e no Congo, escreveu uminfluente relato sobre a região, originalmente publicadoem italiano em 1687. Num capítulo dedicado aos“defeitos naturais e morais dos habitantes”, Cavazziproclamava estar prestes a descrever “coisas estranhas”,as quais “o barbarismo torna abomináveis” e que “a totaldiferença de costumes em relação aos nossos tornaincríveis”.11 Segue-se a listagem desses defeitos:arrogância, despudor, preguiça, inaptidão, recusa aotrabalho, falta de iniciativa, incapacidade de inventarcoisas, concupiscência, ausência do conceito de filhoslegítimos, uso da procriação como forma de poder,autorização do roubo, malícia, mendicidade constante,prática comum de difamação, incapacidade de estudo,falta de amor pelos familiares, abandono de recém-nascidos e a prática regular de vender pais, filhos eirmãos como escravos. Essa descrição era moderadapela referência aos hábitos cristãos de parte dapopulação. Os habitantes urbanos eram criticados commais frequência do que os do campo, enquanto oshomens eram considerados muito mais preguiçosos doque as mulheres, que trabalhavam as terras. A descriçãonegativa de Cavazzi era agravada pelos extensos relatosde sacrifícios humanos e canibalismo atribuídos aosjagas, uma confederação de guerreiros de diferentesorigens étnicas que controlavam parte da atual Angola eque se dedicavam à guerra com as diversas entidadespolíticas que com eles faziam fronteira, especialmente oreino do Congo.12 Essa listagem de defeitos resumia osestereótipos cristãos em relação aos africanos negros,que durariam até o século XX e que foram usados parajustificar três séculos e meio de comércio escravagistaatlântico e a partilha da África na década de 1880.O relato sobre a África escrito por Olfert Dapper em1668 apresentava uma visão abrangente do continente.Foi amplamente lido e, de um modo geral, transmitiauma visão complexa que tentava distanciar-se deestereótipos anteriores. Serviu-se de todos os textoslatinos, gregos, portugueses, holandeses, ingleses,italianos, franceses e espanhóis disponíveis sobre aÁfrica para produzir uma nova síntese histórica,etnográfica e geográfica. Reconhecia a diversidade depovos, aparências físicas, vestuário, cor de pele ehábitos, por vezes numa mesma área. O Norte da Áfricae Madagascar eram identificados, respectivamente, compovos brancos e negros, enquanto diversos tons de pelepreta, castanha e avermelhada eram associados adiferentes países, por exemplo a Etiópia. Em certoscasos, como no Egito e Marrocos, as característicasfísicas eram associadas a um habitat específico: a tezclara dos indivíduos mais corpulentos e de melhorsituação que viviam nas cidades ou no litoral era postaem contraste com a pele escura dos “árabes” (beduínos)ou dos camponeses (berberes) nômades magros queviviam no interior.13 No Norte da África, as cores dosturbantes definiam a fé, distinguindo os muçulmanos doscristãos e dos judeus. Segundo Dapper, no Egito osmuçulmanos usavam um turbante branco, os cristãosazul ou vermelho, os judeus amarelo, e os descendentesdo Profeta envergavam um turbante verde.14O reconhecimento da diversidade levou a uma escalamais graduada de estereótipos, mas não a alterouradicalmente. Os habitantes do Loango eramconsiderados selvagens que comiam uns aos outros,como os feiticeiros ainda faziam.15 Os habitantes doCongo eram “negros como a noite”, com cabeloencaracolado e uma altura pouco impressionante, masbem constituídos, de olhos azuis e pretos, e lábios maisfinos do que os dos povos da Guiné, que Dapperconsiderava os mais feios de todos. Os congoleses eramvistos como arrogantes com os vizinhos, mas civilizadose honestos com os estrangeiros (referindo-se aoseuropeus). Supostamente teriam tendência para seembriagar fácil com vinho espanhol e aguardente, eeram bem falantes, mas não muito habilidosos com asmãos. Eram considerados soldados medíocres,indisciplinados e dados ao roubo e à impunidade. Osembaixadores congoleses de Maurício de Nassau,governador holandês do Brasil, e nos Estados Gerais naHolanda eram reconhecidos como fortes e ágeis, mas aomesmo tempo ridicularizados como bailarinos egladiadores capazes de saltar e de esgrimir de formasextraordinárias. Também foi descrito que imitavam aforma como o rei do Congo se sentava no trono durantelongos períodos de silêncio, nos quais era adorado pelossúditos “de acordo com antigas superstições pagãs”.16No entanto, segundo Dapper, a educação cristã e arecente presença dos holandeses haviam contribuídopara uma certa melhoria, além da introdução de leis.A percepção de Dapper dos povos das regiões austraisda África era igualmente complexa, sendo definida pelavisão europeia tradicional: os hotentotes eram magros efeios, embora altos, com pele de tons entre o claro e oescuro, como os mulatos e os japoneses. O cabelo eraencaracoladoe grosso como lã, os olhos belos, pretos ebrilhantes, os dentes brancos como marfim e tinhamboas mãos, “mas infelizmente têm nariz achatado elábios grossos, especialmente o superior”, “a barrigapende [é inchada] e o traseiro extremamente grande”,“deixam crescer as unhas, pelo que podem serconfundidas com as garras de uma águia” e as“mulheres casadas têm seios tão grandes que dão demamar por cima do ombro aos filhos que transportam àscostas”.17 Os hotentotes conheciam as leis das nações eda natureza, eram elogiados pela falta de ganância epelo sentido de honra, e considerava-se que tinham sebeneficiado com o contato com os holandeses. Oshabitantes de Madagascar, alvo de um longo relatodevido às recentes explorações, eram vistos sob uma luzmenos positiva, catalogados como enganadores,dissimulados, bajuladores e mentirosos.18 A costaoriental da África era avaliada de forma mais positiva, jáque os habitantes de Sofala eram considerados maiscivilizados do que os “cafres” do cabo da BoaEsperança.19 Sem grande surpresa, os abissínios cristãoseram tidos como pacíficos, defensores da justiça e daigualdade, espertos, curiosos e interessados emaprender. Eram supostamente mais bem constituídos doque os africanos negros, tinham vida mais longa e partosmais fáceis, não apresentavam nariz achatado nemlábios grossos, e eram em tudo semelhantes aoseuropeus, salvo na cor da pele, que era castanha ou corde azeitona. A conclusão a tirar desse elogio eraobviamente que “os melhores escravos são da Abissínia”.Claro que eles tinham alguns defeitos: eramconsiderados covardes; o país tinha mais sacerdotes emonges do que soldados; e, por fim, não dispunham deportos, pois os mamelucos e os turcos haviam capturadoa costa.20Figura 6.1. Olfert Dapper, Descrição da África. Amsterdam:Wolfgang, Waesberge, Boom, e Van Sommeren, 1686. Gravurade uma cerimônia real no Benim.As imagens no livro de Dapper eram mais explícitas. Aextraordinária quantidade de mapas e de panoramas decidades, e as imagens que ilustravam os principais rituaise a vida diária nos diferentes países reforçavam asensação de exotismo. Os temas centrais eram animaisselvagens, presas de marfim, escravos (incluindo torturade escravos), caravanas para Meca, pirâmides, obeliscos,esfinges, reis vestidos com peles de leopardo, monarcassendo venerados, soberanos recebendo embaixadores,cerimônias reais no Benim com dança, música, anões eleopardos acorrentados, funerais nobres, corpos comtatuagens ou escarificação, vestuário e ornamentos,banquetes, danças e sacrifícios humanos. O contrastecom a aparência europeia contemporânea era marcante.A população do Norte da África podia ter mantido atúnica clássica, e a elite estava habituada aos melhorestecidos, incluindo a seda, mas na segunda metade doséculo XVII a tradição norte-africana parecia retrógradaaos olhos dos europeus: as camisas compridas eramduplicadas no inverno, os vestidos eram estreitos no topoe largos embaixo, e as mangas estreitas prendiam-se aospulsos — tudo isso foi criticado.21 A superioridade dascomplexas modas europeias estava implícita nesse tipode afirmação, que relegava conscientemente a modaislâmica para as periferias, a favor do orgulho (ouvaidade) na constante mudança que por fim se espalharada França e da Holanda para países mais austeros, comoAlemanha e Espanha.22 Na África subsaariana, comexceção da Abissínia, as partes do corpo eramrepresentadas mais ou menos despidas, embora adisseminação dos tecidos europeus já fosse umarealidade em muitas áreas, onde os materiais seadaptavam às tradições locais, ao mesmo tempo quetambém davam origem a novas formas de identidade.VIDAS AFRICANAS NA EUROPAA percepção europeia dos povos da África tem de sercontrastada com a realidade dos africanos que viviam etrabalhavam na Europa. Na parte I assinalei o grandenúmero de escravos africanos levados para o sul daEuropa, alguns dos quais foram parar em outras partesdo continente, mas havia outras rotas de escravos,especialmente através do Império Otomano e do LesteEuropeu. A vasta maioria dos escravos era usada comocriados e agricultores, mas também havia soldados,músicos, artesãos qualificados e cortesãos. O mais bem-sucedido talvez tenha sido Abram Petrovitch Gannibal(1696-1781), comprado quando criança emConstantinopla, que se tornou afilhado do tsar russoPedro, o Grande, comandante militar de êxito, filósofo(que se correspondeu com Voltaire [1694-1778]),diplomata, engenheiro e arquiteto, além de confidente econselheiro do tsar. A sua linhagem distinta incluiu opoeta nacional russo Aleksandr Púchkin.23 O caso queaqui vamos destacar se relaciona com um períodoanterior, a primeira metade do século XVI, e com um paísdiretamente envolvido no comércio de escravos,Portugal. Mostraremos as ambiguidades que Dapper maistarde relataria.A figura ambivalente de João de Sá Panasco (a alcunhasignificava grosseria revelada pelas roupas e/ou pelosmodos), que serviu de escravo negro do infante d. Luís ede bobo do rei português d. João III (1521-57),desempenhou um papel duplo, sendo alvo de troçadosnobres da corte real e troçando de todos eles.24 Naprincipal antologia de anedotas registradas durante operíodo, cerca de sessenta eram sobre negros emulatos.25 João de Sá é o protagonista de muitas delas,sendo constantemente alvo de comentários racistasquanto à cor da pele, cheiro “repugnante” e supostaincompatibilidade com uma mourisca branca com quemfora casado. Ele, por sua vez, respondia e invertia ascríticas. João de Sá troçava da sua própria posição.Quando o rei perguntou quem eram os seus privadospreferidos, ele respondeu: “Os Castanho entre osfidalgos, os Carvalho entre os escudeiros, e eu entre ospretos!”. Mas quando Baltasar de Morais, camareiro doduque de Bragança, lamentou a morte do “seu” jovemnegro em Vila Viçosa, João de Sá respondeu que osbrancos não eram capazes de viver sem negros. Acondição inferior de João de Sá, maculada pelo statusinicial de escravo, era constantemente invocada eatirada à sua cara através de piadas.Figura 6.2. d’el Rey em Alfama, c. 1560-80, pintura flamenga,óleo sobre madeira de autor desconhecido, 93 × 163 cm. Lisboa,Coleção Berardo. A pintura inclui um cavaleiro negro com ohábito da Ordem de Santiago.Ainda assim, ele gozava da proteção do rei e podiafazer o que não era permitido a mais ninguém: troçarimpunemente dos cortesãos. As anedotas que chegaramaos nossos dias mostram que João de Sá era confidentedo rei. D. João III era obviamente um grande apreciadorde mexericos e gostava de manter uma atmosfera detroça entre os colaboradores mais chegados. Precisavade alguém que não dependesse de mais ninguém paramantê-lo informado do que de fato se passava entre oscortesãos. João de Sá era o único capaz de desempenharo papel misto de bisbilhoteiro, informante e bobo. Sendoum antigo escravo e bobo da corte, tornou-se ummembro intocável da corte real, forçando os limites doque significava ser a um tempo estranho e íntimo. Eramais perigoso para os nobres da corte do que estes paraele. A confiança do rei reflete-se na posição excepcionalalcançada por João de Sá: não só se casou graças aosfavores reais, como obteve o privilégio de envergar ohábito da Ordem Militar de Santiago, tornando-se famosopor ser o único negro de Lisboa a montar a cavalo com aprestigiada toga da ordem (ver figura 6.2). A capacidadede João de Sá de exercer transgressões humorísticasrendeu os seus lucros.João de Sá não foi um caso único de êxito ou demobilidade social por parte de africanos negros nascortes reais europeias. Nos séculos XVII e XVIIIencontramos numerosos exemplos nas cortes da EuropaSetentrional e do Leste Europeu, não estando associadosà tradicional função de bobo. No entanto, o estereótipomoderno do negrofeliz e bem-disposto já fora criado, talcomo mostra uma das anedotas portuguesas. Segundoela, quando um núncio papal não identificado regressoua Roma vindo de Portugal, declarou que chegava de umpaís onde os escravos se riam, enquanto os homenslivres choravam. João de Sá obteve o seu êxitomanipulando habilmente as palavras e as expressõesfísicas para provocar risos. O seu comportamentocorrespondia ao estereótipo do africano alegre edespreocupado, mesmo com os exemplos diários decomportamento inteligente e talentoso.No entanto, é necessário abordarmos um conceito maisarraigado dos africanos como selvagens. Desde ostempos gregos e romanos o continente fora identificadocomo a fronteira entre as sociedades policiadas e asbárbaras, exposto a ermos e a regiões quentes inóspitas.As condições supostamente extremas de clima e de solosustentavam a ideia europeia de monstros e selvagensusada para refletir sobre as fronteiras entre a cultura e anatureza, o humano e o animal, as sociedadescontroladas e a selvageria. O caso de um suposto“homem selvagem” também surge na sociedade cortesãeuropeia do século XVI. Envolve um guanche, um nativodas ilhas Canárias, certamente não negro, mas aindaassim ligado à África segundo a percepção europeia.Pedro Gonzalez, nascido por volta de 1537 em Tenerife,nas ilhas Canárias, afirmava ser de ascendênciaprincipesca. Sofria de um distúrbio genético particular,hypertrichosis universalis congenita, que o destacou aolongo de toda a vida: tinha pelos que lhe cresciam portodo o rosto, orelhas, costas, peito, braços, mãos, dedos,coxas e pernas. Só a palma das mãos, a planta dos pés eos lábios não eram cobertos de pelos.26 A aparência deGonzalez correspondia à imagem mítica do homemselvagem (homo silvestris ou silvaticus, a origemetimológica de selvagem) criada na Antiguidade Clássicapara servir de apoio à reflexão sobre a diferença entrecultura e natureza, seres humanos que viviam emcomunidade e humanos que viviam nas regiõesselvagens.27 A imagem do selvagem nu, de corpocoberto de pelos compridos, o espírito entregue aosinstintos e sentimentos mais básicos, uma figura próximado estereótipo medieval do gigante, fora renovada noséculo XV, por coincidência, quando da conquista dasilhas Canárias. A recuperação do tema foi claramenteexpressa pelas enormes esculturas colocadas na entradada faculdade de San Gregorio, em Valladolid.A aparência de Gonzalez suscitou uma enormecuriosidade na corte real francesa, quando ele foioferecido a Henrique II, com dez anos de idade. Foiexaminado especialmente por Julius Caesar Scaliger, queem 1557 publicou um tratado sobre o caso. A issoseguiu-se uma referência ambígua a Gonzalez em DesMonstres et prodiges (1573), de Ambroise Paré. “Pierresauvage”, como era conhecido à época, foi educado.Aprendeu latim, provando que os selvagens podiamtornar-se sofisticados. Saiu-se tão bem que alcançou umaboa posição na corte como escanção (perito em vinho).Após a morte infeliz de Henrique II, Gonzalezprovavelmente passou para a casa de Catarina deMédici. Por volta de 1573 casou-se com uma francesa,Catarina, com quem teve pelo menos cinco filhos, Henri,Madeleine, Françoise, Antoinette e Paul, os quais (talvezcom a exceção do último) herdaram o seu problemagenético.28 Em 1589, a morte de Catarina de Médiciobrigou-o a procurar outro patrono. Alessandro Farnese,duque de Parma, acolheu a família Gonzalez sob a suaproteção e enviou-a para a Itália. Gonzalez foi registradocomo “Don Pietro Gonzales Selvaggio” na corte deParma, o que significou que, a partir daí, o tratamentoaristocrático espanhol “don” ficaria associado à vida deGonzalez junto com a palavra “selvagem”, como setivesse encontrado maneira de compensar a sua posição“naturalmente” inferior. O sexto filho, batizado Orazio (etambém ele peludo), nasceu em 1592 na corte de Parma.Gonzalez tentou manter-se discreto, porém mais uma vezfoi exibido como caso curioso e valioso, resgatado deuma condição quase animalesca. A sua filha Antoinette(agora Antonietta) entrou para a corte da marquesa deSoragna, sendo examinada em Bolonha pelo naturalistaUlisse Aldrovandi, que escreveu um longo relatório maistarde usado por Bartolomeo Ambrosini no seuMonstrorum historia, publicado em 1642. Aldrovandideixou um retrato e uma referência manuscrita a umamoça “com uma cabeça peluda como a de um macaco eum corpo glabro [desprovido de pelos]”. A comparação éinteressante para os nossos objetivos: na cadeia dosseres de Aldrovandi, o camponês pertencia ao nível maisbaixo de seres humanos europeus; o macaco eraconsiderado o animal mais próximo do ser humano; ajovem peluda foi colocada quase ao mesmo nível que omacaco. Em 1592, Henri (agora Arrigo), o primogênito deGonzalez, foi enviado para Roma a pedido do cardealOdoardo Farnese, que fez dele assistente dos seusaposentos.Figura 6.3. Arrigo peloso, Pietro matto e Amon nano, 1598-9, óleosobre tela de Agostino Carracci, 97 × 130 cm. Nápoles, Museo diCapodimonte, n. inv. Q369.O interesse social, intelectual e científico pela famíliaGonzalez está documentado nos sucessivos retratos dafamília produzidos a partir da década de 1580: quadrosde Dirck de Quade van Ravesteyn e de Lavinia Fontana; egravuras de Joris Hoefnagel, Dominik Custos e StefanoDella Bella. Curiosamente, a família tornou-se uma dasmais representadas na Europa de finais do século XVI. Noentanto, o extraordinário quadro de Agostino Carracci,executado em 1598-9 e intitulado Arrigo peloso, Pietromatto, Amon nano (Henrique peludo, Pedro louco, Amonanão) no inventário de 1644 (ver figura 6.3), explicava afunção do “selvagem” peludo na corte: Arrigo erarepresentado com um tamarco (um sobretudo de pele decabra usado nas ilhas Canárias), junto com um anão, umbobo, dois macacos, dois cães e um papagaio.29Resumidamente, surgia ao lado de seres humanosidentificados (e troçados) pelas suas “deformidades”mentais e físicas — todos usados como acessórios deluxo na corte e exibidos como fenômenos bizarros domundo natural. Deve-se notar, contudo, que os Farnesecumpriram as suas obrigações, e a inteligente famíliaGonzalez negociou bem a sua posição: Arrigo, destacadopara Capodimonte, no lago Bolsena, Lazio, comofuncionário superior no castelo do cardeal, tornou-se umnotável personagem local poderoso ligado ao comércio;em 1608 pôde mandar buscar a família em Parma (ospais e três irmãos, Madalena, Francesca e Orazio); Arrigocasou-se quatro vezes e teve filhos; e a maioria dos seusirmãos também se casou e teve descendência.PERCEPÇÕES VISUAISEsses casos especiais da sociedade cortesã definem-sepela ambivalência entre preconceito e paternalismo,posição inferior e feitos sociais, valores sociais etransgressão. Já vimos como a cultura visual nos ajuda aaprofundar o significado de tais casos, razão pela qualtenho de estender às obras de arte minha análise dapercepção europeia dos povos africanos. A primeira sériede xilogravuras com a representação de indivíduosafricanos e asiáticos foi produzida em 1508 por HansBurgkmair para ilustrar o relato da viagem de BalthasarSpringer, agente da família Welser em Portugal, quenavegou até a Índia com o exército do primeiro vice-reiFrancisco de Almeida.30 Nessas xilogravurasencontramos uma família de africanos da Guinérepresentados nus, com pulseiras e brincos nos braços enas orelhas, o homem adulto atirando uma lança demadeira e um dos filhos dançando — encontram-se todosem plena mata, sem nenhuma casa à vista. Foi usado omesmo cenário para os hotentotes da baía da Lagoa(sudeste africano), representados semidespidos compeles de leopardo, toucados de pele grosseira esandálias, com as crianças nuas junto ao corpo da mãeseguras por faixas de tecido largo. Quando Burgkmairdecidiu reciclar essas imagens e incluí-lasno seu projetopara a marcha triunfal de Maximiliano I (1517-8), ospreconceitos tornaram-se mais claros: os povos nãoeuropeus não só eram representados nus ou quasedespidos, como também se encontravam rodeados poranimais — cabras, ovelhas, vacas, touros, papagaios emacacos —, numa confusão deliberada que dificultava adistinção entre macacos e as crianças transportadas deforma negligente pelas mulheres (ver figura 6.4). Oobjetivo geral era incluir os africanos na natureza.Figura 6.4. Africanos na Guiné, 1511, de Hans Burgkmair,xilogravura executada por Georg Glockendon. Berlim,Staatsbibliothek.Figura 6.5. Retrato de Catarina aos 21anos, 1521, ponta de prata sobrepapel de Albrecht Dürer, 20 × 14 cm.Florença, Gabinetto dei Disegni eStampe degli Uffizi, n. inv. dis. 1060E.Essa mesma mensagem está implícita no Atlas Miller,criado em 1519 pelos cartógrafos portugueses LopoHomem, Pedro Reinel e Jorge Reinel: no mapa querepresenta a África, especialmente na África Ocidental,vemos duas figuras castanho-escuras, presumivelmentemacacos, mas que nos lembram seres humanos, numaambiguidade sugestiva. A intenção do autor,provavelmente o iluminador António de Holanda, podeter sido apenas a representação de macacos, mas a ideiados africanos colocados na natureza e misturados comanimais já se encontrava disseminada pela Europa.31 Ohumanista flamengo Nicolau Clenardo, que viveu emPortugal entre 1533 e 1538, comprou três jovens negros,ensinou-lhes latim e usou-os como assistentes de ensino,mas referia-se a eles como “macacos” na suacorrespondência, inferindo serem capazes de imitar, masnão de criar.32 Mais à frente veremos como essa ideia foicontestada pela realidade. Deve-se notar, contudo, quemesmo nessa fase inicial havia já tentativas bem-sucedidas de representar africanos negros comsentimentos e emoções próprias. Por exemplo, AlbrechtDürer criou dois desenhos esplêndidos de um jovem(1508) e de uma jovem identificada como Catarina(1521).33 É bem conhecido o fascínio de Dürer porartefatos e obras de arte não europeias, portanto nãosurpreende que tenha tratado esses dois sujeitos comose fossem europeus: tentou representar corretamente asproporções e as características físicas, ao mesmo tempoque deixava entrever o seu temperamento. O jovemafricano sugere serenidade e decisão, enquanto Catarinamostra melancolia.Figura 6.6. Sileno embriagado, c.1619-20, óleo sobre tela de Antoinevan Dyck, 107 × 91,5 cm. A pinturainclui um negro mostrando a língua auma branca. Dresden,Gemäldegalerie Alter Meister,Staatliche Kunstsammlungen, n. inv.1017.O desenvolvimento da pesquisa iconográfica nosséculos XVII e XVIII revela uma maioria de negrosrepresentados nas suas tarefas habituais no contextoeuropeu, como criados, soldados, músicos etrabalhadores manuais. Houve um número significativode santos negros representados de acordo com os seusatributos. Porém, existiam também estereótiposdepreciativos, alimentados provavelmente pelossentimentos de superioridade em relação aos escravosafricanos. Citarei aqui alguns casos em que os negrosforam usados para representar sentimentos básicos,emoções incontroláveis e subordinação ao domíniopolítico. Pietro Tacca esculpiu quatro escravos para abase da estátua de mármore de Fernando I em Livorno(1607-26), de autoria de Giovanni Bandini, tendo comoúnico objetivo simbolizar submissão e poder político.34Num quadro de Sileno, c. 1620 (ver figura 6.6), Antoinevan Dyck (1599-1641) representou um negro mostrandoa língua a uma beldade branca e com a mão no ombrodela, expressando uma lascívia desenfreada.35 Van Dycktambém representou um negro durante o martírio de sãoSebastião numa escandalosa expressão de alegria,mostrando irreverência e falta de compaixão; erepresentou um negro com um olhar de troça irônicacobrindo o tronco desnudo de Cristo com um casaco,depois de Pilatos tê-lo oferecido à multidão com aspalavras “Ecce homo”.36 Em 1630, Jacob Jordaens (1593-1678) representou um negro com um papagaio rindocom indiferença da cura de um possuído por sãoMartinho (ver figura 6.7); em 1660, Abraham vanDiepenbeeck (1596-1675) mostrou o rei etíopeGinmaghel com olhos esbugalhados, minando aseriedade da realeza africana (e, nesse caso, cristã); eTheodore Thulden (1606-69) representou um criadonegro rindo enquanto transportava a cabeça de são JoãoBatista numa bandeja. Portanto, os negros eram usadospara expressar grosseria, imbecilidade, indiferença,lascívia, malícia, troça e crueldade. Essa tendênciaiconográfica surgiu nos Países Baixos seiscentistas eespalhou-se pela Europa durante o século XVIII,especialmente na Alemanha e na Itália.Não podemos limitar a presente análise a imagens comum significado predominantemente negativo: o uso denegros para personificar emoções negativas sempre foicontraposto pela sua representação numa forma humanaintrépida ou elevada. Tal como nos mostra o trabalho deDiego Velázquez, os artistas elogiavam negros emestiços. Velázquez deixou um retrato bastante digno doseu escravo (ver figura 6.8), o pintor Juan de Pareja (c.1650), cujo olhar impunha respeito como ser humano(viria a ser alforriado).37 Um esplêndido retrato anônimode uma negra em Bolonha representa-a com uma jaula,mostrando compaixão e sentimentos ambivalentesquanto ao cativeiro e à liberdade. Antonio Verrio (c.1639-1707) representou dois anjos negros em O triunfomarítimo de Carlos II em Hampton Court, Londres. Oséculo XVII também assistiu ao surgimento de santosnegros na iconografia e na literatura.Por outro lado, podemos ver o desenvolvimentoparalelo dos temas de príncipes africanos abusivos,negros de boca aberta expressando falta de autocontrolee imagens de negros em posições submissas. Asilustrações, de autoria de Charles Monnet (1732-1808),para La Princesse de Babylone, de Voltaire, ou deClément-Pierre Marillier (1740-1808) para Oroonoko, deAphra Behn, sublinhavam a violação e o abuso.38 Existeainda a imagem insidiosa de africanos negrosrepresentados como canecas, candeeiros, pernas decadeira, sofás e suportes de objetos como colunas evasos, como se a condição de escravo houvesseinspirado tais inovações nas artes decorativas. Um dosprimeiros exemplos do uso da cabeça grotesca de umnegro como caneca, ou talvez como candelabro, é deautoria de Jan Brueghel I (1568-1625), no contexto dogabinete de curiosidades.39 A tradição do uso de negroscomo apoios de túmulos e mesas (ou cariátides naarquitetura) foi recriada, por exemplo, por AndreaBrustolon (1662-1732), ao esculpir uma série decadeirões enormes com os braços e as pernas frontaisdecorados com crianças e jovens negros. Também seespecializou na escultura em tamanho natural deescravos negros acorrentados transportando vasos (verfigura 6.9).40Figura 6.7. São Martinho curando umpossesso, 1630, óleo sobre tela doateliê de Jacob Jordaens, 432 × 269cm. A pintura representa um negrosegurando um papagaio e rindo aofundo.Figura 6.8. Retrato de Juan de Pareja,1650, óleo sobre tela de DiegoVelázquez, 81,3 × 69,9 cm. Nova York,Metropolitan Museum of Art, n. inv.1971.86.Obviamente, os retratos de africanos em ocupaçõesnormais continuavam a ser produzidos, junto com asvisões compassivas da condição africana. Em 1774, naScuola Grande dei Carmini de Veneza, GiambattistaTiepolo pintou uma alegoria da penitência, da inocência eda castidade em que a penitência era representada poruma negra segurando uma cruz. A segunda metade doséculo XVIII, em geral considerada o período de origem dateoria das raças, assistiu também ao desenvolvimento dareflexão sobre a condição humana e dos valoresuniversais que levaram ao movimento abolicionista. Em1798, Daniel Nikolaus Chodowiecki (1726-1801), quetrabalhava na Alemanha como ilustrador de livros — porexemplo, em Beitrage zur Naturgeschichte, de J. F.Blumenbach —, representou uma espantosa história deamor entre um branco e uma negra que terminou com obranco atirando ao fogo o seu livro sobre o “sistema dasraças humanas”.41Figura 6.9. Cativo negrotransportando o suporte de um vaso,escultura de madeira de AndreaBrustolon, 90 cm de altura. Veneza,Palazzo Ca’Rezzonico, Museo delSettecento.COMÊDIAS DE NEGROSEssa tensão permanente entre a curiosidadeetnográfica e um olhar debilitante, entre a representaçãonormal em retratos e o uso de negros para expressarcrueldade ou idiotia, também se encontra na literatura. Avisão compassiva dos africanos negros (quer escravos,quer homens livres) encontrou um lar improvável naliteratura do Século de Ouro ibérico, especificamente nogênero conhecido como comédias de negros.42 Com opersonagem Filipo, protagonista de El prodigio de Etiopia,Lope de Vega (1562-1635) transformou o negro africanoescravo, ladrão e líder de quadrilha em guerreiro e rei,capaz de aventuras audazes, que por fim se reconciliacom Deus.43 A peça foi tão bem-sucedida que essemesmo protagonista viria a ser usado como tema deoutra, dessa vez de autoria de Juan Bautista Diamante(1625-87), El negro más prodigioso.44 Esse novo tipo deafricano altaneiro foi reforçado pelo personagem Antioboda peça El negro del mejor amo, também da autoria deLope de Vega. Antiobo era um novo Alexandre negro,nascido príncipe muçulmano, mas convertido aocristianismo graças à escrava branca que fora sua amade leite. Combateu ao lado dos sardenhos contra osturcos e morreu santo, fazendo milagres após a morte elevando ao arrependimento da pecadora branca, donaJoana, que declarou: “Sou eu a preta, tu já és branco”.45Na peça El valiente negro en Flandes, Andrés deClaramonte (1580-1626) apresentou o estereótipo dosoldado negro corajoso e forte no personagem Juan deMérida, que chega ao topo da sociedade espanholaquando o rei lhe concede o hábito da Ordem Militar deSantiago e a patente de general em reconhecimento dosseus feitos marciais, podendo assim casar-se com umaaristocrata branca. O herói declara que “só a região ou oclima os diferencia; se os brancos ultrapassam osinfelizes pretos em perfeição, isso é porque aqueles têmjurisdição sobre estes; da mesma forma, os brancosseriam oprimidos e imperfeitos se vivessem submetidosaos pretos”.46 A peça abordava e criticava abertamenteos preconceitos contra os negros. O soldado negro eramostrado como próximo da tipologia de marginais dasociedade que contrastavam a virtude ao sangue, omérito aos privilégios herdados e a masculinidade aosmaneirismos. Juan de Mérida (rebatizado Juan de Albapelo duque de Alba, seu comandante) chegava acondenar os judeus e os mouros, gabando-se do seu“sangue limpo” — um tópico crucial entre os cristãosnegros, que se sentiam superiores aos convertidos dasoutras duas religiões do livro por não terem um estigmareligioso anterior; eram simplesmente consideradosignorantes. Houve, contudo, muitos casos depersonagens negros maus ou ambíguos nesse gêneroespanhol. Vale a pena citar a bizarra peça Las misas deSan Vicente Ferrer, escrita pelo cristão-novo AntonioEnríquez Gómez (1600-63) sob o pseudônimo Fernandode Zárate. Enríquez Gómez apresentou um escravo negrosinistro, Muley, a quem o diabo ajudou a seduzir a irmãde são Vicente Ferrer (1350-1419), o pregadordominicano que desenvolveu campanhas para converterjudeus ao cristianismo.47As dúvidas tradicionais quanto às crenças religiosasdos povos africanos foram invertidas em outra peça deLope de Vega, El santo negro Rosambuco de la ciudad dePalermo, em que o autor apresentou um novo heróinegro escolhido por Deus para provar a sinceridade e opoder da conversão religiosa.48 Baseava-se no casorecente de um franciscano de origem escrava, SanBenito, que no seu convento em Palermo recebeu visitasregulares de nobres e até do vice-rei, e que morreu em1589 com a reputação de santo. A peça foi escrita porvolta de 1604, o que significa que os pormenores do casode são Benedito tinham se tornado rapidamenteconhecidos. O processo de beatificação teve início em1594, mas só foi concluído pelo Vaticano em 1743. Lopede Vega representou o santo como pirata muçulmanoderrotado e escravizado por cristãos, que se converteu emostrou uma capacidade espantosa para suportarabusos, e conseguiu interceder junto de Deus em nomedos enfermos. Esse santo também influenciou Luis Vélezde Guevara (1579-1644) ao escrever El negro del Serafín,enquanto frei Rodrigo Álvares Pacheco seguiu o exemplode santo Antônio de Noto na peça homônima queescreveu em 1641.49 Esses dois santos foram veneradospor fraternidades de negros, não só na Europa mastambém na América, o que confirma a relaçãopermanente entre o teatro e a realidade.Portanto, os negros podiam ser heróis e santos naliteratura espanhola. Nesse ambiente literário em quetodos os negros bons eram homens, havia um derradeiropreconceito a ser desafiado: a suposta estupidez dosafricanos. Isso foi contestado pelo escravo e professor delatim Juan de Sesa, também conhecido como Juan Latino,que nos seus poemas inverteu o significado simbólico dobranco e do preto atribuído aos santos e aos demônios,frisando que a pele branca era desprezada na Etiópia.Diego Jiménez de Enciso (c. 1585-1634) escreveu umapeça intitulada Juan Latino (impressa em 1652), em quese serviu da figura histórica para ridicularizar osestereótipos mais comuns em relação aos negros.50 Noentanto, embora a comédia de negros desafiasse osestereótipos tradicionais, temos de ter em mente que obom negro era aquele que assumia os valores dosbrancos (ou dos europeus) — se possível, o espírito doscavaleiros e dos clérigos brancos, e junto com ospersonagens principais surgia habitualmente a caricaturade um negro ou de um mouro mau. Os personagensnegros bons eram usados como expediente literário paramostrar a reversibilidade da fortuna, os crimes dosbrancos, a possível alteração de papéis e a redenção doscriminosos negros através da fé, num contraste com asreincidências sistemáticas dos cristãos brancos. Mesmocruzando as barreiras étnicas, o objetivo das comédiasde negros era reforçar o sistema central de valores.Ainda assim, é digno de nota que a sociedade ibérica, emgrande medida definida pela noção da pureza do sangue,permitisse a promoção dos indivíduos negros, expressa edefendida na literatura.Embora menos envolvidas na interação étnica doperíodo, as sociedades da Europa Setentrional nãoestiveram ausentes desse movimento literário.Chegaram mesmo a ir mais longe em alguns casosexcepcionais, invertendo o simbolismo das cores, juntocom a hierarquia social. O príncipe africano Oroonoko foirepresentado por Aphra Behn (1640-89) como umhomem educado, galante e bem-apessoado, com umapele de ébano, como azeviche polido, não como um“castanho enferrujado”. As mulheres negras, como aVênus Imoinda, amante de Oroonoko, eram tambémelogiadas como belezas espantosas. Esse romance,porém, era especial: Behn imaginou a escravidão deOroonoko como consequência da traição por parte docapitão inglês do navio negreiro, apresentando umhomem inteligente, orgulhoso e corajoso injustamenterelegado à margem da sociedade colonial do Suriname.Rebatizado César, o príncipe africano consegueestabelecer a reputação de sábio. É o seu envolvimentona luta pela liberdade que acarreta o seu sacrifício final.A condenação por parte de Oroonoko da condição deescravo é das mais poderosas da literatura europeiaseiscentista: “Somos comprados e vendidos comomacacos, para diversão de mulheres, tolos e covardes; epara acompanhar trapaceiros, renegados queabandonaram os seus países devido a violação,assassínio, roubo e vilanias”.51 A difamação europeia dosafricanos negros é aquiinvertida para condenar o infamecomércio escravagista, mas não a escravidão em si.Embora o livro de Behn se afaste da corrente dominanteda literatura do norte da Europa, as ambiguidades deOroonoko e dos valores brancos por ele personificadosnão estavam muito distantes da literatura e da artebritânicas ligadas ao império.527. AmericanosCANIBALISMOFoi Cristóvão Colombo (1451-1506) quem cunhou otermo “canibal”. No diário da sua primeira viagem àsAntilhas (1492-3), Colombo referia que os nativos dasilhas principais (Cuba e Hispaniola) receavam certastribos que comiam carne humana e que supostamentecaçavam a partir das ilhas austrais (ver figura 7.1). Essesantropófagos eram identificados como caribes, oucanibes, tal como eram designados em Hispaniola, numcontraste com os nativos pacíficos das ilhas principais, edizia-se que envergavam longas extensões de cabelopresas a um toucado de penas, e que andavam armadoscom arcos e flechas.1 Numa carta a Luis de Santángeldatada de 15 de fevereiro de 1493, Colombo declaravaque os antropófagos vinham de uma ilha chamadaCaribe.2 Fizeram-se cópias impressas da carta, e a obratornou-se um sucesso de vendas, com duas edições emespanhol, nove em latim, três em italiano e uma emalemão, tudo no espaço de quatro anos (1493-7). Areferência aos comedores de carne humana não passoudespercebida.3 No relato da segunda viagem (1493-6),Colombo referiu os canibais (canibales, em espanhol),transformando a palavra no que viria a se tornar umsubstantivo aceito, o qual repetiu em todos os seusrelatos e correspondência com os reis europeus.4Figura 7.1. André Thevet, La Cosmographie universelle. Paris,1575. Gravura representando o canibalismo.Quando Colombo chegou às Antilhas, os caribesestavam instalados como agricultores, pescadores,caçadores e bons navegadores que tinham se espalhadodesde a costa nordeste da América do Sul até as ilhascaribenhas, e estavam expulsando os aruaques,colonizadores anteriores. Colombo pode ter reproduzidoo receio aruaque dos caribes como sendo mais bemequipados e determinados de um ponto de vista militar.Embora Colombo elogiasse a placidez desses povos,supostamente os recipientes perfeitos para o Evangelho,também ficou chocado com a “covardia” de algumascomunidades aruaques. No entanto, a ideia da prática deantropofagia serviu bem aos interesses de Colombo,expressos claramente no relato da segunda viagem.Sugeria que os “canibais” deveriam ser escravizados poiseram em número infinito, sendo que cada um delesvaleria, em força e engenho, três negros da Guiné (uma“amostra” de caribes acompanhava a carta).5 Em 1494,Colombo enviou uma missiva aos reis católicos na qualsugeria que um investimento feito em caravelas, pessoal,gado e ferramentas seria pago pela escravidão decanibais resultante. Argumentava que, livres “dessainumanidade”, os canibais seriam os melhores escravos;a sua competência como remadores poderia ser usadanas galés que Colombo pretendia construir para as suasviagens no mar do Caribe.6 Em 1495, Colombo sugeria,numa epístola enviada aos reis, a escravização de todosos índios. Embora admitisse que as mulheres deHispaniola não dariam boas escravas domésticas, frisavaque seriam excelentes como trabalhadoras agrícolas e naprodução de tecidos de algodão.7 A afirmação de que osnativos eram extremamente preguiçosos (perezosos engrandisima manera) foi feita pela primeira vez numaoutra carta desse mesmo ano, sem que Colombopercebesse que isso contradizia o seu projeto deescravização.8Colombo estava familiarizado com o modelo portuguêsde viagens de exploração da costa ocidental da Áfricafinanciadas pelo comércio escravagista, acabando ofornecimento de escravos por vir a ser o principalobjetivo de tais expedições. Colombo vivera em Lisboa ena ilha da Madeira entre 1476 e 1486, mantendo laçoscom a elite local através do seu casamento com FilipaMoniz, filha de um capitão português de Porto Santo.Colombo afirmou por várias vezes nos seus relatos, e aténas anotações nas margens dos seus livros, que estiverano forte português da Mina, no golfo da Guiné. O forte daMina, edificado em 1482, era um centro comercial deouro e escravos, que Colombo tentava reproduzir naregião caribenha.9 Em 1495, o mesmo ano em queColombo deixou explícito seu projeto, enviou deHispaniola um carregamento de quinhentos escravos,recebidos e vendidos em Sevilha pelos feitores GiannottoBerardi e Américo Vespúcio.10 A rainha Isabel suspendeutemporariamente o leilão, receosa das suasconsequências teológicas e políticas — compunção jámanifestada pelos soberanos na resposta dada a umamissiva anterior. Em 1498-1500, Colombo insistiu que oprojeto deveria avançar, juntando o pau-brasil que virana costa da América do Sul à lista de artigos a seremcomercializados. Chamou a atenção para o fato deCastela, Portugal, Aragão, Itália, Sicília, as Canárias eoutras ilhas “gastarem” muito em escravos; os obtidosnaquela nova fonte valeriam 1500 maravedis cada.Colombo argumentava que a elevada mortalidade entreos caribes escravizados era normal, tendo acontecido omesmo com os primeiros africanos negros e canários(guanches) enviados para a Península Ibérica.11 O projetode escravização dos caribes nunca chegou a serimplementado por três motivos essenciais: as dúvidasteológicas e políticas dos reis (afinal de contas, aquelesnativos eram os seus novos vassalos); a ausência dainstituição da escravatura na região, o que significou queos nativos recusaram a opressão e, em muitos casos,preferiram morrer; e a existência de um mercadoescravagista já estabelecido com a África Ocidental (maistarde com a África Central) que podia ser dirigido daPenínsula Ibérica para as Antilhas. Entretanto, osaruaques e os caribes foram dizimados pela guerra, pelodeslocamento e pelas doenças levadas pelos europeus, oque inviabilizou o projeto de Colombo.A descrição feita por Colombo dos povos queencontrou nas explorações das Antilhas, bem como dascostas da América do Sul e Central, foi tambémimportante para a ideia que os europeus tinham dosnativos: destacava a sua nudez, a ausência de pudor, asroupas de algodão rudimentares e os toucados rituais depenas, as pinturas corporais para a guerra, as tatuagense os piercings, bem como os colares e as pulseiras.Deixava claro que aquelas pessoas não eram negras,apesar do fato de viverem na mesma latitude que ospovos da Guiné. Descreveu-os como sendo altos, comcabelo liso e pele quase branca.12 A referênciapersistente à cor da pele sugere que, à época, o brancoera considerado como norma no sul da Europa. Osaruaques tinham ferramentas feitas de pedra, casas demadeira e palmeira e camas de rede. Cultivavam a terrae produziam tecidos de algodão. Eram celebrados comoengenhosos e curiosos, apesar do aspecto selvagem.Além dos antropófagos clássicos, Colombo tambémconseguiu localizar amazonas nas Antilhas (na ilha deMatinino, a futura Martinica) e referiu-se à existência depessoas com caudas. Chegou mesmo a reproduzir umapiada local cubana contra as pessoas que usavamroupas, pois estas teriam algum defeito físico queprecisariam ocultar, como caudas.13As cartas de Américo Vespúcio (1454-1512)reafirmaram a existência de canibais e de canibalismo naAmérica. Mundus Novus, impresso em 1503,transformou-se num sucesso de vendas imediato, comedições em Veneza, Paris, Augsburgo, Nuremberg,Antuérpia, Estrasburgo e Rostock. Foi traduzido para oitaliano, alemão, flamengo e francês e incluído em todasas compilações de relatos de viagens publicadas noséculo XVI, com destaque para as organizadas porFrancanzano da Montalboddo, Simon Grynaeus eGiovanni Battista Ramusio. O texto mais longo eelaborado de Vespúcio, Lettera delle isole nuovamentetrovate (1504), foi integrado em CosmographiaIntroductio, publicadoem 1507, numa versão em latimde Martin Waldseemüller. Foi este quem batizou o NovoMundo como América.14Vespúcio foi um antigo parceiro de Colombo, que viajoupor duas vezes até a América: em 1499-1500, com osespanhóis, e em 1501-2, com os portugueses. Nessasviagens explorou uma longa seção da costa oriental daAmérica do Sul. Quando do regresso da sua primeiraviagem, Vespúcio levou consigo prisioneiros nativosamericanos para serem vendidos em Sevilha15 edeclarou que uma comunidade específica vivia de carnehumana (vivono di carne umana). Ao descrever os povosda costa em geral, afirmou que a maior parte da carneconsumida coletivamente era humana (la carne chemangiano, massime la commune, è carne umana). Disseter vivido 27 dias numa aldeia nativa, onde viu pedaçosde corpos humanos pendurados em traves nas casas, àsemelhança da forma como na Europa se penduravampresuntos para ser defumados. Um homem dissera aosvisitantes, provavelmente através de gestos, que jácomera mais de duas centenas de seres humanos (essenúmero seria inflacionado para trezentos em MundusNovus). Os nativos elogiavam a carne humana pela suaqualidade superior e ficaram espantados quando oseuropeus recusaram juntar-se ao banquete. Num outroponto da narrativa das suas viagens, Vespúcio afirmouter assistido a um jovem europeu autoconfiante sendocercado por mulheres locais que o espancaram e oassaram na praia, para desespero dos companheiros,incapazes de ajudá-lo por a cena ter sido protegida porcentenas de guerreiros locais.16As ideias de Vespúcio sobre os nativos americanostiveram um impacto ainda maior na Europa do que asdifundidas pelos textos de Colombo. Isso deveu-se a trêsmotivos: Vespúcio conseguiu organizar um argumentoconvincente e articulado; relatou o canibalismo com aautoridade de uma testemunha ocular; e, por fim,algumas das edições incluíram imagensextraordinariamente eloquentes. Deve-se notar que asprimeiras edições dos principais textos de Vespúcio,tanto em latim como em italiano, não contaram comimagens relevantes, representando apenas naviosancorados e indivíduos desnudos nas praias. Astraduções alemãs dos textos, no entanto, publicadasimediatamente a seguir, apresentaram uma coleçãoextraordinária de imagens sobre o assassinato do joveme o cozimento de corpos humanos. Tais imagenstornaram-se poderosos instrumentos visuais que sefundiam com o texto, dando-lhe ainda mais pungência.Viriam a ser reproduzidas e adaptadas nos séculos XVI eXVII, em especial nos onze volumes de Theodor de Brysobre a América.A narrativa de Vespúcio e tais ferramentas visuaiscontribuíram para a concepção europeia negativa dosnativos americanos. Embora considerados sereshumanos racionais, os nativos americanos eramdescritos como despidos e indolentes, vivendo segundoas leis da natureza, sem ordem ou fé, templos ou religião(nem sequer uma errada veneração de ídolos,lamentava-se Vespúcio), sem conceitos de propriedade,território, fronteiras ou governantes, sem comércio oudinheiro, e supostamente ignorantes da imortalidade daalma. Viviam em casas comunais, dormiam em redes,sentavam-se no chão para comer, sem um horáriodefinido para refeições, ignoravam a instituição docasamento e a proibição do incesto, copulavam sempudor em público como animais selvagens, urinavamdiante dos convidados, contavam o tempo através dasfases da Lua, ignoravam as leis da guerra, matavam edevoravam os inimigos, não eram capazes de secomunicar com as outras tribos devido à multiplicidadede línguas usadas, e abandonavam os doentes e osidosos. Os nativos americanos eram acusados de umacrueldade monstruosa e bestial. As suas guerras nemsequer tinham o objetivo da conquista ou do lucro: asúnicas motivações eram a vingança de ofensasancestrais e a emoção cega. Os rostos masculinos eramconsiderados horríveis, pois as faces, o maxilar, o nariz,os lábios e as orelhas haviam sido perfurados para nelesserem colocados pedras ou ossos de animais. Asmulheres libidinosas davam sucos vegetais aos homenspara lhes inflamarem o pênis ou (melhor ainda)colocavam animais venenosos que lhes mordiam o órgãogenital, correndo os homens o risco de “perderem ostestículos e se tornarem eunucos”. Vespúcio concluíaresumidamente que se tratava de uma “liberdade atrozde viver” (scelerata libertà di vivere, na versão italianade Mundus Novus). Como atributos mais positivosapontavam-se a cor da pele, uma tez um pouco escura eavermelhada, como a do leão, que provavelmentepassaria por branca quando estavam vestidos; acapacidade de nadar, bem como de produzir arcos eflechas engenhosos (mas sem ferro, já que nãodispunham de conhecimentos metalúrgicos); e a supostafacilidade com que as mulheres davam à luz, os corpossaudáveis e o hábito de se lavarem frequentemente nosrios.17 Esta última característica terá naturalmenteimpressionado Vespúcio, habituado aos baixos padrõesde higiene europeus. Como veremos, a maior parte dasafirmações de Vespúcio era infundada, especificamente asuposta falta de religião dos nativos americanos.O relato de Hans Staden (c. 1525-c. 1579) sobre ocativeiro com os tupinambás, no Brasil, publicado em1557 em Marburgo, estabeleceu definitivamente areputação de canibalismo generalizado entre aspopulações do Novo Mundo.18 O livro foi reimpresso emsucessivas edições alemãs, sendo alvo de umadistribuição mais vasta graças às traduções para oflamengo e o latim. O autor participara de umaexpedição espanhola ao rio da Prata que naufragou aolargo da costa do Brasil. Salvo pelos portugueses, Stadentornou-se oficial de artilharia no pequeno forte da ilha deSão Vicente, uma das principais colônias, célebre pelosengenhos de açúcar. Capturado pelos tupinambás,inimigos dos portugueses e aliados dos franceses,afirmou ter vivido entre os “selvagens” durante dezmeses e meio, sob a ameaça constante de que seriamorto e comido, até que foi salvo pelos franceses eenviado de regresso à Europa.Staden apresentou descrições extensas da vida diáriana comunidade índia, corrigindo Vespúcio em váriosaspectos: acrescentou novas informações sobre aestrutura familiar, a vida sexual, a cultura material, ascrenças espirituais e as formas de identificação atravésdos nomes de animais, flores e frutos.19 Tambémdescreveu como negociara a sua sobrevivência —começando por frisar que não era português e depoisjogando com as “superstições” nativas, levando-os aacreditar que era um feiticeiro (ao contrário de Vespúcio,Staden afirmava que os nativos tinham crençasreligiosas, guias espirituais e ídolos). Aproveitou umaepidemia que matou parte da comunidade paraestabelecer uma relação precária com os captores, quelhe solicitavam constantemente que levasse o seu Deuspoderoso a intervir em favor deles. Staden narrou váriascerimônias em que prisioneiros índios e cristãos erammortos ritualmente, frisando que o consumo de carnehumana era generalizado e fazia parte do dia a dia (osíndios levavam carne humana consigo nas suasexpedições). Os tupinambás troçavam constantementedos seus prisioneiros e indicavam-lhes o que osesperava, simulando o consumo de partes do corpo ealimentando os prisioneiros para que ficassem saborosos.O fato de Staden conhecer a língua tupi foi-lheextremamente útil. A inserção de frases em tupi(devidamente traduzidas) no relato criava umextraordinário efeito de veracidade. Citemos duas frasescruciais. Primeiro, quando foi levado até os índios, estesobrigaram-no a dizer, em tupi: “Aqui chego [ou aquiestou] como vosso alimento!” (a junesche been ermivramme, ou então, em tupi restaurado, ayu ichebe eneremiurama). A segunda frase em tupi estava relacionadacom uma discussão com o chefe, que comia carnehumana e convidou Staden a juntar-se a ele. QuandoStaden recusou, dizendo que apenas um animalirracional o faria,o chefe deu uma dentada na carne ereplicou: “Sou um jaguar!” (articulado em tupi como jauware sche, ou então, yauara inche). A relação totêmicacom o mundo natural surge acentuada nesse caso, semque se exclua a possibilidade de deboche, mas frisando,ainda assim, a facilidade com que a fronteira entre ascondições animal e humana era atravessada. Asilustrações de Staden contribuíram para o sucesso dolivro. O autor incluiu mais de cinco dezenas dexilogravuras que garantiram a expressão visual deelementos específicos da narrativa. As xilogravurasrealçavam a cultura material dos índios. O ritual docanibalismo era apresentado nas suas fases sucessivas,seguindo de perto o texto, e incluía a imagem de umaborduna usada para matar a vítima.BONS SELVAGENSA experiência da “França Antártica”, a colônia que osfranceses tentaram desenvolver na baía de Guanabara(atual Rio de Janeiro) na década de 1550, coincidentecom o período em que Staden vivia as suas desventurasno Brasil, teve como resultado dois textos extraordinários— um publicado em 1557 por André Thevet (1516-90),outro em 1578, por Jean de Léry (1536-1613) —, queforneceram material de reflexão filosófica e antropológicapara os quatro séculos e meio que se seguiram.20 Thevete De Léry tinham confissões diferentes — o primeiro eracatólico e o segundo, protestante —, mas serviram-se deimagens semelhantes para descrever o mesmo ritual decanibalismo, com De Léry afirmando ter sido testemunhae referindo-se a casos específicos. Ambos defendiam queos nativos americanos não eram motivados pela fome,mas sim por um extraordinário espírito de vingançacontra os seus inimigos ancestrais. A única diferençaentre os relatos tinha a ver com a “conclusão moral”. DeLéry foi o primeiro a contestar a suposta superioridademoral europeia, frisando a existência de muitos casos decristãos que assassinavam cruelmente os seus inimigosreligiosos. Por exemplo, durante os massacres da noitede São Bartolomeu, na França, partes de corposhumanos haviam sido vendidas, assadas e comidas.Michel de Montaigne (1533-92) integrou essacomparação no seu ensaio sobre canibais, em que odesprezo do europeu comum pela selvageria dos nativosamericanos era dirigido aos provocadores:O que entristece é que, embora avaliemos corretamente os erros deles,sejamos tão cegos com os nossos. Acho que é mais bárbaro comer umhomem vivo do que comê-lo morto; há mais barbarismo na roda e natortura de um corpo ainda sensível, em assá-lo pouco a pouco e deixá-loser magoado e mordido por cães e porcos (tal como não só lemos, comotambém vimos bem recentemente, não entre os inimigos na Antiguidade,mas entre os nossos concidadãos e vizinhos — e, pior ainda, em nome dodever e da religião), do que em assá-lo e comê-lo depois de morto.21Figura 7.2. Adoração dos reis magos,retábulo da Sé de Viseu, 1501-6, óleosobre madeira de Vasco Fernandes eFrancisco Henriques, 131 × 81 cm, n.inv. 2145; P23. Um dos reis magosestá representado como um índiobrasileiro. Viseu, Museu Nacional GrãoVasco.Foi ainda mais longe, declarando que: “Todosconsideram bárbaro aquilo a que não estão habituados;não temos quaisquer outros critérios para a verdade epara a justiça além dos exemplos e da forma dasopiniões e dos costumes do nosso país. Nelesencontramos sempre a religião perfeita, a políticaperfeita, o modo mais desenvolvido e perfeito de fazer ascoisas!”. Montaigne lamentava o gosto corrompido pelasofisticação artificial e elogiava os hábitos naturais dosselvagens:Esses povos não dispõem de nenhum tipo de comércio, não conhecem aescrita, não conhecem os números, não têm termos para governador oupara superior político, não praticam a subordinação, não sabem o que ériqueza ou pobreza, não têm contratos, heranças, propriedades divididas,a única ocupação é o prazer, e não se preocupam com o parentesco —salvo o comum a todos —, não usam roupas, agricultura, metais, vinho oucereais. Entre eles não ouvimos termos para traição, mentira, engano,avareza, inveja, calúnia ou perdão. Como Platão consideraria tão distanteda perfeição a República que imaginou.Tinha assim início uma tradição crítica de relativismocultural, mas ao mesmo tempo renovava-se a ideiamedieval da idade de ouro e do bom selvagem.22A tensão entre a imagem do bom selvagem e a donativo vítima do diabo ficou definida nos primeirosrelatos e representações dos índios em trabalhosportugueses. A carta escrita ao rei por Pero Vaz deCaminha em 1500, sobre os primeiros contatos entre osportugueses e os tupi na costa do atual estado deEspírito Santo, no Brasil, não poderia apresentar umencontro mais idílico: os nativos americanos eramdescritos como inocentes, confiantes e generosos,capazes de se comunicar através da música e dadança.23 Embora fossem “seres bestiais de parcosconhecimentos”, eram considerados adequados àevangelização. Uma Adoração dos reis magos, pintadaem 1501-6 como parte do retábulo da sé de Viseu (verfigura 7.2), chegou mesmo a apresentar um dos reismagos como um índio brasileiro, com penas na cabeça,em volta do pescoço e da cintura, quebrando a tradiçãode finais da Idade Média do rei africano negro.24 Apintura reforçava a imagem do índio inocente que dealguma forma fora separado de um ambiente civilizado(ou policiado), estando apto a receber o Evangelho.Poucos anos depois, provavelmente em 1505-30, outrapintura portuguesa representando o inferno (ver figura7.3) mostrava Lúcifer como índio brasileiro com penas nacabeça.25 Nesse caso, o índio demonizado estavarelacionado com a suposta anarquia do seu país, onde oEvangelho não fora disseminado e os nativos eramvítimas do diabo. É óbvio que nesse breve períodointermédio teriam se espalhado relatos sobrecanibalismo. Os nativos tinham agora a supostatendência natural para perseverarem numa vida semordem — sem fé, lei ou rei —, algo que os relatos dasegunda metade do século XVI viriam a reiterar.Figura 7.3. Inferno, 1505-30, óleo sobre madeira de autordesconhecido, 119 × 217,5 cm, n. inv. 432 pint. Lúcifer estárepresentado como um índio brasileiro. Lisboa, Museu Nacionalde Arte Antiga.Como é óbvio, os europeus inventaram o termo“canibalismo”, e não a sua prática. As narrativaseuropeias clássicas sobre antropófagos e as narrativasamericanas nativas sobre caçadores que comiam outrospovos cruzavam-se. É possível que os aruaquesestivessem tentando atrair os europeus para o conflitodesigual que mantinham com os caribes, demonizandoos agressores e manipulando os europeus contra eles.Nesse caso, em breve descobriram que as verdadeirasintenções dos europeus — ficar com suas terras —inutilizavam quaisquer manipulações. Porém, tambémsabemos que o canibalismo ritual era um elementoestrutural da mitologia tupi-guarani na América do Sul. Aderrota dos inimigos da tribo fazia parte das obrigaçõesde um guerreiro, um papel encorajado por Tupichauriya,uma carismática figura humana deificada. A morte ritualdos inimigos capturados e o consumo ritual dos seuscorpos cozidos eram tidos como passos importantes napassagem do guerreiro para a “Terra sem Mal”, umparaíso além da morte, uma terra de felicidade eternaonde os guerreiros seriam recompensados e os idosospodiam recuperar a juventude. O canibalismo era umconceito crucial da tradição europeia: explorava oslimites da natureza humana, as regras mais básicasquanto ao que podia ou não ser consumido, o que eraconsiderado digno e o que era abjeto, o que engrandeciaa condição humana e aquilo que a degradava. O tabu emrelação ao consumo de carne humana era partilhado pormuitas culturas do mundo. Mesmo assim, em muitasdelas, especialmente na Grécia antiga, a transgressãodessas regras básicas fazia parte de uma estrutura quepermitiria feitos extraordinários. Na mitologia tupi-guarani, a difícil passagempara a Terra sem Mal tambémexigia feitos extraordinários: a absorção da força e dasubstância dos inimigos era considerada um gestonecessário para alcançar essa terra profetizada — algoque deveria ser repetido para obter melhoresresultados.26 Isso capturou a atenção dos primeiroseuropeus, que não encontrariam melhor justificação paraas suas pretensões de conquista e de desalojamento. Seos nativos americanos eram propensos aos mais baixosinstintos e a um comportamento antinatural, nãopoderiam ter acesso à independência e à autonomia.Para o meu argumento, o canibalismo tal comoformulado pelos europeus foi a base de um desprezoétnico pelos nativos americanos que durou até o séculoXX, vindo a se tornar um símbolo marcante dasrepresentações da América como continente.SACRIFÍCIO HUMANOEnquanto as descrições de canibalismo definiram asideias sobre os primeiros encontros europeus comnativos americanos, especialmente nas Antilhas e naszonas orientais da América do Sul, o sacrifício humanotornou-se uma questão importante na conquista europeiado México. O fenômeno foi relatado na primeira carta deHernán Cortés (1485-1547) a Carlos V: descrevia o ritualde abrir o peito das vítimas, com estas ainda vivas, pararetirar o coração e as entranhas, depois queimá-los.Cortés calculou que fossem sacrificadas entre 3 mil e 4mil pessoas por ano — cerca de cinquenta em cadatemplo. Referia a imposição anual a cada povoconquistado de um determinado número de vítimas aserem oferecidas em sacrifício. Durante a guerra entreespanhóis e nauatles, vários prisioneiros espanhóisteriam sido sacrificados “aos ídolos”, tal como erarealizado em Zultepec e Tenochtitlán. A cabeça dasvítimas foi depois exposta ritualmente. Cortés afirmou terprotestado contra a prática e tentado destruir os ídolosde Tenochtitlán enquanto Montezuma era soberano.27Segundo o estudioso Anthony Pagden, o ritual erarelativamente recente, tendo, ao que parece, tido inícioem 1483, quando os tzinacantepeca se rebelaram contraa confederação dos mexica. O ritual era mais complicadodo que parecia nos primeiros relatos: após o sacrifício, ocorpo seria atirado pelos degraus do templo, depois eraesfolado, esquartejado e as partes eram oferecidas aoimperador e ao captor (se existisse), para seu consumoritual.A identificação dos ídolos dos nativos como demônios,justificada pela prática generalizada dos sacrifícioshumanos, desempenhou um papel importante nasupressão cristã das religiões locais mexicanas.28Sabemos que os franciscanos, seguidos de imediatopelos dominicanos, formaram bandos de jovensconvertidos, essenciais nas campanhas para erradicartemplos e ídolos; apenas seis anos depois da conquista,quinhentos templos haviam sido destruídos e 20 mil“figuras do demo” despedaçadas ou queimadas.29 Essemovimento rápido para suprimir os monumentosreligiosos locais é definido pelo historiador Robert Ricardcomo uma “conquista espiritual”. Outro historiador,James Lockhart, critica a abordagem, considerando queenfatiza excessivamente uma visão hierarquizada deaculturação planejada e orientada pelos mongescatólicos.30 Por outro lado, concentra a sua análise nopapel da altepetl, a comunidade local pré-conquista, naqual o cristianismo foi integrado e usado de uma maneiraum tanto diferente da intenção do clero espanhol, dandomargem a muitas formas de adaptação. Um terceirohistoriador, Serge Gruzinski, também reconhece aimportância das estratégias indígenas para asobrevivência diante do jugo cristão, mas frisa a enormemudança imposta pelo empreendimento colonialreligioso e ideológico.31 É preciso contextualizar estasúltimas duas visões. A tradição do sacrifício humanoconfrontou-se, obviamente, com a mensagemcristológica de salvação: o sacrifício do filho de Deusredimira toda a humanidade, tornando inúteis quaisqueroutras formas de sacrifício. Isso assinalava novoafastamento e libertação da anterior servidão. De umavez só, os monges podiam estabelecer um novo padrãoreligioso e oferecer a perspectiva superior da suaconcepção quanto à salvação após a morte. Recusavamassim a religião local como retrógrada, demoníaca ehumanamente inaceitável, arrasando a autoimagem dapopulação conquistada.Figura 7.4A. Cidade de Tenochtitlán, Praeclara Fernandi de NovaMaris Oceani Hispania Narratio. Nuremberg, 1524. Xilogravura.Berlim, Staatliche Museen, n. inv. Mex-d dno 1.Figura 7.4B. Detalhe da figura 7.4A. Representação do templocentral e dos sacrifícios humanos.O sacrifício humano era assim um fundo crítico sobre oqual se impôs a visão cristã do mundo, numa região ondeas competências artesanais, a atividade agrícola, oplanejamento urbano e a organização estatal haviamsido reconhecidos por Cortés e elevados ao mesmo nívelda Antiguidade Clássica.32 O tema iria repetir-se nasociedade maia, embora a escala de sacrifícios humanosnessa sociedade fosse muito mais reduzida e o fervorcatólico após a conquista, menos intenso.33 No outrocaso americano de Tahuantinsuyo, conhecido comoImpério Inca, encontramos um desprezo europeusemelhante pela religião local como idolatria — umdesprezo reforçado pela prática (ligeiramente distinta) dosacrifício humano. Os principais ritos de iniciação e deenterro dos incas, bem como o festival do Sol (Inti Raimi),envolviam o sacrifício (capacocha) de vítimas jovensenviadas de diversas partes do império para serementerradas vivas em Cuzco ou na sua própria localidade,depois de terem sido purificadas no centro político.Supostamente, as vítimas deveriam servir às deidades emanter o equilíbrio entre os vivos e os mortos, o centro eas periferias do império. Em vários locais também sesacrificavam crianças aos deuses, e o sacrifício humanoera realizado em momentos cruciais do ciclo de vida daselites nativas. A celebração de exéquias podia incluir osacrifício de viúvas, mulheres jovens e criados, queseriam enterrados vivos (ou mortos) com o notável —uma prática registrada mesmo depois da conquistaespanhola quando envolvia povos convertidos.34 Osespanhóis ficaram espantados quando executaram oúltimo imperador inca, Atahualpa: todas as suas esposasse suicidaram, enforcando-se.35A idolatria e o sacrifício humano adequavam-se bem àideia cristã de religião falsa e ilusão demoníaca,tornando-se um importante indicador para a expressãode preconceito étnico e de desprezo para com aquelesque eram considerados presa fácil do diabo, bem comosuspeitos de reverterem às crenças anteriores. Essepreconceito étnico garantiu o enquadramento doprocesso de evangelização na América, permitindoestratégias de adaptação e a sobrevivência de aspectosdas religiões pré-colombianas sob a fachada de ritos e desantos cristãos, e chegando mesmo a permitir formas deveneração privadas ou familiares, identificando-as comosuperstições, mas interrompendo de modo irremediável aestrutura tradicional de crenças como demoníacas,inferiores e desumanas.36 O melhor exemplo decolonização espiritual é Guamán Poma de Ayala (1534-c.1617), considerado um grande representante dopensamento político alternativo.37 Os primeiros capítulosdo seu extraordinário trabalho Nueva crónica y buengobierno foram dedicados à afirmação da sua fé cristã,além de elogiar o cristianismo e a genealogia principescado seu pai e do meio-irmão, Don Martín Ayala, que eramestiço, o primeiro filho da mãe de Guamán Poma deAyala e do capitão espanhol Luis de Avalos de Ayala, eque se tornou monge, dedicando a vida aos doentes noshospitais de Cuzco e de Guamanga.38 Guamán Poma deAyala era índio de ambos os lados da família, mas areivindicação de ascendência nobre através dos YarolvicaAllauca Huánuco e dos incas nunca chegou a serconfirmada. Criticou a idolatria dos incas como umfenômeno recente e corrupto na região e louvou areligião tradicional localpolíticas desegregação e de extermínio para que possa ser usado demodo neutro pelos pesquisadores. Isso explica o motivopor que antropólogos e historiadores começaram aprocurar termos alternativos que designem gruposcoletivos fora dos limites ideológicos e anacrônicos daclassificação racial. O termo “étnico” serviu de escolhaóbvia, já que foi cunhado no século XIII a partir do latimcristão ethnicus (pagão ou gentil), tendo este origem nadesignação grega para povo, ethnos (nação ou raça).23Esse termo trazia a promessa de combinar os conceitosde identidade coletiva e de “diferença” sem a carga dospreconceitos raciais. O problema levantado pelosantropólogos prende-se ao risco de unificação de gruposcom fronteiras fluidas, e que passaram por processos defragmentação e de reorganização. A cunhagem do termo“etnicidade” tentou captar o conceito de fluidez. Vou mevaler das noções de étnico e etnicidade para designargrupos que se identificam através de uma ascendênciacomum, realçando a fluidez e a recomposição por meiodo termo “etnicidade”. Em certos casos, sempre que ospesquisadores recentes o considerem apropriado, vouempregar o termo “linhagem”, como na África Ocidental,onde o parentesco desempenhou um papel relevante naestruturação de grupos profissionais e de políticastradicionais.O conceito de racismo que usarei neste trabalhoresulta de uma reflexão sobre a semântica histórica, bemcomo sobre os desenvolvimentos conceituais verificadosnas ciências sociais. O racismo atribui um único conjuntode traços físicos e/ou mentais reais ou imaginários agrupos étnicos específicos, com base na crença de queessas características são transmitidas de geração parageração. Os grupos étnicos são considerados inferioresou divergentes da norma representada pelo grupo dereferência, justificando assim a discriminação ou asegregação. O racismo tem como alvo não só os gruposétnicos considerados inferiores, mas também osconsiderados concorrentes, como os judeus, osmuçulmanos ou os armênios. Vamos encontrar nopassado os elementos centrais da ascendência, dopreconceito e da ação discriminatória não só em práticas,mas também em percepções: os termos “inferior”,“preconceito”, “exclusão” e “separação” eram usados emfinais da Idade Média, ao passo que os termos“inferioridade”, “estigma”, “segregação” e“discriminação” foram cunhados nos séculos XVI e XVII.24Permanece ainda a questão de que o preconceitoassociado à ascendência étnica não identificacabalmente o racismo, que exige a presença de açõesdiscriminatórias.O racismo distingue-se do etnocentrismo por não sereferir de forma abstrata a bairros ou comunidadesdistantes desprezadas ou temidas; em geral, aplica-se agrupos com quem a comunidade de referência convive —grupos esses associados a regras de sangue ou dedescendência. O etnocentrismo pode expressar desprezopor outra comunidade, mas aceita a inclusão deindivíduos dessa comunidade, ao passo que o racismoconsidera que o sangue afeta todos os elementos dacomunidade em questão. O conceito de etnocentrismopode ser alargado, abrangendo a rivalidade entrereligiões, confissões ou nacionalidades, embora emcertos casos o conceito de ascendência esteja bastanteentranhado na forma como os grupos se veem.O termo mais recente usado neste trabalho é“genocídio”, referindo-se ao extermínio (ou à tentativa deeliminação) deliberado e sistemático de um grupo étnicoou nacional. A Convenção para a Prevenção e Repressãodo Crime de Genocídio das Nações Unidas, aprovada em1948, definiu o fenômeno como “os atos cometidos coma intenção de destruir, no todo ou em parte, um gruponacional, étnico, racial ou religioso”. Esses atos são oassassinato de membros do grupo, o atentado grave àsua integridade física e mental, a submissão deliberadado grupo a condições de existência que acarretarão a suadestruição física, a imposição de medidas destinadas aimpedir os nascimentos dentro do grupo e atransferência forçada das crianças de um grupo paraoutro.25 Veremos como essa definição abrange diversoscasos referidos na parte V deste livro.ABRANGÂNCIAA expansão europeia proporciona o contexto da minhapesquisa no tempo e no espaço. O âmbito dospreconceitos referentes à ascendência étnicacombinados com ações discriminatórias foiprofundamente alargado com a exploração de outroscontinentes; a expansão ultramarina e a colonizaçãoestimularam a classificação das variedades de sereshumanos, essencial para a definição e a justificação dehierarquias. Esse vasto movimento de populações levoua uma nova geografia, a uma nova cartografia e a umanova percepção dos povos de todo o mundo — tudo issoavaliado segundo os parâmetros e as necessidadeseuropeias.26 A expansão da Europa latina renovou-secom as Cruzadas, um enorme processo de conquista e demigração que teve como alvo a Terra Santa, associado àrecristianização da Sicília e da Península Ibérica. Aintegração dos territórios conquistados exigia a inclusãoou a segregação e discriminação das populações locais,processo que trouxe consigo novas e velhas percepçõesde diferentes povos, que viriam a dar forma àsclassificações e às hierarquias. A parte I do livro tratadesse processo, abrangendo o contexto histórico maisvasto da Antiguidade Clássica, das invasões bárbaras eda expansão muçulmana, pois muitos preconceitos têmraízes bem antigas. No âmago dessa seção está a tensãoentre o universalismo da Igreja ou do império e osconflitos de interesses locais com a subjugação daspopulações; nela incluo as periferias europeias,associando o colonialismo interno e externo.A expansão ultramarina europeia, marcada pelasviagens de Cristóvão Colombo (1451-1506) à América ede Vasco da Gama (1469-1524) à Índia na última décadado século XV representou um processo longo, quepermitiu a exploração de novos mares, terras evariedades de seres humanos. A cartografia mudou o seucentro, de Jerusalém para a Europa, simbolizando assima afirmação do Velho Continente em relação à Ásia e àÁfrica, bem como ao Novo Mundo. O mito doscontinentes, já desenvolvido nos mundos grego eromano, foi seguido pela personificação desses mesmoscontinentes, concedendo-lhes atributos queconfiguravam a hierarquia global dos povos. Essaextraordinária afirmação da Europa durante o século XVIviria a ter consequências profundas no longo prazo, poisestabeleceria o modelo para a coleta de dados sobregeografia, economia e história natural. A parte II analisa avisão europeia dos povos e da humanidade no início daera moderna, mostrando a importância do conceito depureza do sangue na Península Ibérica que sucedeu àpercepção medieval dos judeus e dos muçulmanos.Analisa ainda as percepções e os estereótipos associadosaos africanos, aos asiáticos, aos americanos e aoseuropeus, já que expressavam os projetos políticos deexpansão e influenciavam as classificações usadas nasteorias das raças.A parte III discute as sociedades coloniais desde oséculo XVI até o XIX, analisando os processos concretos deconquista, transferência de populações e construção denovas sociedades, definidos pela supremacia branca.Estuda a classificação de povos a partir das condiçõeslocais e regionais, em que o aviltamento das castasinferiores no mundo ibérico chegava ao ponto dadesumanização através de metáforas animais, adotadastambém pelas culturas coloniais da Europa Setentrional.Associarei formas de classificação e de estruturaçãoétnica para mostrar a dinâmica interdependente entre aprática social e a taxonomia. Essa seção explora o papeldos projetos políticos, as políticas centrais e locais, adiscriminação e a segregação institucionalizadas, alémda convergência e divergência de práticas entre asprincipais potências coloniais europeias: Portugal,Espanha, Grã-Bretanha, França e Holanda. No centro daanálise estãoos delesem perfeição”, ao mesmo tempo que insiste que essaspessoas devem “desejar a nossa amizade e amor, tendoo maior respeito para nos agradar e obedecer. Assimesperamos que, caso se empregue um bom governo, embreve serão trazidos para a civilidade e abraçarão averdadeira religião”.49 Tratava-se de um claro programade aculturação, que em breve se veria confrontado coma realidade. O texto fornecia uma visão muito maispormenorizada do modo de vida nativo, abrangendocaça, pesca, tipos sociais, feiticeiros, construção naval,preparo e consumo de alimentos, banquetes, rituais,aldeias, agricultura, ídolos, túmulos de chefes eescarificação — tudo isso sublinhado por uma segundaparte que consistia em grandes gravuras explicadas porlegendas longas.A grande novidade do relato centrava-se nas imagensda última seção, que representavam pictos da Escóciapara mostrar que “os habitantes da Grã-Bretanha jáforam, no passado, tão selvagens como os da Virgínia”.Tal abordagem não era completamente nova. Relatosespanhóis anteriores haviam com frequênciaestabelecido comparações entre os nauatles ou osquíchuas e os povos descritos por autores gregos eromanos. No entanto, nesse caso, a comparação eraestabelecida diretamente com os antepassados dosbritânicos e, pela primeira vez, era ilustrada, o que davaum peso novo ao argumento. Os pictos eram imaginadoscomo caçadores de cabeças que decepavam a cabeçados inimigos em combate, levando-as consigo (ver figura7.6). Os homens eram representados completamentenus, com o corpo pintado com animais, e empunhandolança, escudo e espada. As mulheres eram vistas comoguerreiras amazonas, segurando o mesmo tipo de arma eexibindo o corpo pintado com padrões, figuras e imagensdo sol e da lua. Os “vizinhos” dos pictos eram retratadoscom algum tipo de roupa, meio despidos, mas sempinturas corporais, o que indicava um passo a caminhoda civilização. Embora os nativos americanos fossemrepresentados como selvagens e idólatras, difamadosatravés desses rótulos gerais, a comparação com osantepassados europeus aventava a possibilidade demelhorias futuras, sem mostrar preconceitos baseadosnas características atribuídas permanentemente a povosespecíficos. Isso era crucial nas primeiras fases de umprojeto colonial que precisava promover a América emostrar os seus habitantes sob uma luz favorável, paraque se pudesse atrair potenciais colonos. Não há dúvidade que teve um impacto no longo prazo. Em 1724, porexemplo, o jesuíta Joseph-François Lafitau viria a publicarum tratado em que comparava os hábitos dos selvagensamericanos com os dos europeus antigos.50 O autordefendia que os primeiros relatos sobre os europeusprimitivos podiam lançar uma nova luz sobre os nativosamericanos, e que a observação dos índios poderia servirpara elucidar as primeiras fases desconhecidas da vidahumana na Europa.Os nativos americanos foram submetidos apreconceitos étnicos e a gestos discriminatórios desde oinício da expansão ultramarina europeia, mas tambémconvém salientar que a imagem do nativo americanoinocente ou do selvagem nobre foi comparadafavoravelmente com a dos europeus traiçoeiros — umaideia já presente no século XVI e difundida na Europadurante o Iluminismo. Em 1711, o Spectator reproduziuuma história incluída havia mais de meio século emHistory of Barbados, de Richard Ligon, sobre um britâniconaufragado ao largo da costa da América que é ajudadopor uma jovem índia sincera e compassiva. A moçaesconde-o e alimenta-o até que ele possa embarcar numnavio europeu, mas depois é vendida como escrava pelohomem que salvou.51 Essa história pode ser associada àabordagem de Behn em Oroonoko.A ideia literária da inocência dos selvagens foidesenvolvida na reflexão filosófica como sendo aignorância do vício. A ideia, já formulada por Montaigne eGrócio, fora usada por Richard Cumberland, Samuel vonPufendorf e Montesquieu (1689-1755) contra ThomasHobbes e a ideia de um homem natural rebeldedominado pelas paixões. No entanto, foi Jean-JacquesRousseau (1712-78) quem desenvolveu a visão do serhumano selvagem em paz com a natureza, podendo, porisso mesmo, passar sem a lei positiva devido à ausênciade servidão e de domínio.52 O selvagem inocente ounobre era, em geral, situado na América. Em L’Ingénu(1767), Voltaire usou um huroniano sincero, identificadomais à frente na história como descendente de colonosnascidos na América e salvo pelos índios, para pôr emxeque os hábitos (especialmente as práticas religiosas)dos europeus.53 Robert Bage, que defendeu os direitosdas mulheres e expressou uma crítica precocementelibertária do governo e da educação, usou o seupersonagem Hermsprong (1796) para elogiar o modo devida “selvagem”.54 No início do século XIX, Chateaubriand(1768-1848), que se declarou discípulo de Rousseau,desenvolveu em sucessivos romances e em um longorelato de viagens a ideia do europeu que recusa aagitação permanente da civilização e se refugia entre osnativos americanos para ter uma vida tranquila.55 Nosseus escritos, o conceito do selvagem nunca é puro:Atala era filha de um espanhol e uma índia, educadacomo cristã; e Chactas, patriarca dos natchez, estiveraem Versalhes no tempo de Luís XIV. A América imagináriaé um lugar útil para refletir sobre a civilização corrupta,daí que o ser humano civilizado que opta por se tornarselvagem seja um importante tópico literário do período.8. AsiáticosINDIANOSEm 1512-5, Duarte Barbosa, feitor do rei português nacosta de Malabar, descreveu pela primeira vez o sistemade castas em termos europeus, baseando-se emexemplos que recolhera na região.1 Barbosa rotulou osgrupos sociais distintos, cada um com as suas própriasleis, como gentios, linhagens e castas. A origemsemântica do substantivo português e castelhano “casta”é “espécie de planta ou animal”.2 O conceito foi usadocomo metáfora para a constante herança de estatuto ede profissões na Índia. A tradução italiana do livro deBarbosa foi publicada em 1550 por Ramusio eprovavelmente se baseou num manuscrito com poucasreferências a castas. O tradutor preferiu lignaggio, disangue ou sorti, refletindo uma tradução livre que, noentanto, não traía o conteúdo do texto.3 Barbosa usou adesignação “casta” entre uma e quatro vezes nos seismanuscritos sobreviventes do século XVI. Contudo, umcaso do seu uso foi decisivo e comum a todos osmanuscritos: ao escrever sobre o conjunto de dezoitogrupos sociais que conseguira distinguir, indicavaclaramente “onze estatutos baixos”, nos quais as“pessoas honradas não tocavam, sob pena de morte,mantendo-se uma grande distância entre estes eaqueles, para evitar a mistura de uma casta com outra”.4O termo “casta” em pouco tempo substituiu as outrasdesignações nas descrições da organização socialindiana. Foi usado sistematicamente: pelo cronistaDamião de Góis (1566), que frisou a rigidez das fronteirasprofissionais impostas pelas castas; pelo primeiro concílioprovincial do arcebispado de Goa (1567), que condenavacomo superstição o rebaixamento imediato de qualquerelemento de uma casta superior que fosse encontradocomendo ou bebendo com um membro de uma castainferior; e por Camões (c. 1524-80), que no poema épicoOs lusíadas (1572, 7,37-9) associou a interdição damistura entre castas na Índia à suposta antiga recusajudaica de tocar nos habitantes da Samaria.5Esses textos articulavam questões essenciais ligadas àvisão europeia da Índia que persistiriam até o século XX.Góis interessava-se por aquilo que hoje em diachamaríamos mobilidade social, alegadamente sufocadapelo sistema de castas.6 Fora influenciado por João deBarros (1496-1570), um dos primeiros cronistas da Índiaportuguesa, que desenvolveu o seu conhecimento daorganização social indiana baseado em Barbosa, masadicionando um elemento crucial: a herançadeprofissões, com determinadas linhagens profissionaisvedadas a casamentos fora do grupo — por exemplo, ofilho de um carpinteiro não poderia ser alfaiate, tendo deseguir o modo de vida e o mister do pai, por motivosreligiosos que Barros considerou superstições. Barrostambém abordou a questão da pureza dos naires(guerreiros, ou xátrias), nobres que não podiam tocarnem ser tocados pelas castas mais baixas. Se tal“desastre” ocorresse por engano, segundo o autor, ocorpo do naire seria tratado como um “corpo glorificado”e o corpo do outro como o de um “animal imundo”.Barros comparava esse preconceito ao dos antigosjudeus, mas, mesmo que tocasse um samaritano, o judeunão se submeteria a tanta purificação como os naires.7Os clérigos das dioceses portuguesas do Estado daÍndia receavam o impacto do sistema de castas nasrelações entre hindus e a comunidade cristã, já que osconvertidos eram considerados inferiores às castas maishonradas, pois tinham de se misturar com indivíduos dediferentes origens. As resoluções de 1567 do supracitadosínodo de Goa proibiam os cristãos de alimentar osindianos contra a sua vontade; era óbvia a intenção deevitar acusações de macular deliberadamente as castassuperiores para obter a sua conversão.8 A impureza quenão pudesse ser limpa significava exclusão imediata.Contudo, o princípio indiano de hierarquia, por oposiçãoao princípio cristão e muçulmano de igualdade entre oscrentes, levantaria a questão no seio das comunidadescristãs da Índia, suscetíveis ao conceito de pureza.Camões, por sua vez, inspirou-se em Barros quandodescreveu poeticamente as castas hindus. Desprezou ohinduísmo como um “amontoado de fábulas”, relatouque as pessoas andavam quase nuas, que não podiamcasar-se fora da sua casta, que os filhos tinham de seguira ocupação dos pais até morrerem, e que os naires nãopodiam ser tocados e que se serviam de toda umavariedade de ritos para se purificarem, mas que osbrâmanes, os sacerdotes, não matavam criaturas vivas enão tinham ciúmes das esposas. Camões estabeleceuuma comparação ainda mais forte entre os conceitos depureza naire e judaica: “Desta sorte o judaico povoantigo/ Não tocava na gente de Samaria”.9 Acomparação entre os diferentes períodos históricos partiado princípio de que os rituais de pureza e as regras desegregação resultavam de uma prática passada que foraperpetuada nessa parte do mundo. Contudo, acomparação transferia para o contexto da Ásia Austral asmesmas referências à Antiguidade Clássica usadas nosrelatos espanhóis dos nauatles e dos incas, além dosestereótipos cristãos relacionados ao povo judaico. Essaideia foi repetida e desenvolvida um século mais tardepelo mercador francês, e viajante a Turquia, Irã, Índia eJava, Jean-Baptiste Tavernier (1605-89), que declarou queuma casta entre os idólatras correspondia a uma triboentre os judeus de antigamente.10 Isso confirma a minhatese de que os preconceitos étnicos nunca eram isolados;pertenciam a um sistema hierárquico relativo adiferentes etnias (e raças criadas) no tempo e no espaço.O conceito português de casta, aplicado ao sistemasocial indiano, disseminou-se, durante os séculos XVII eXVIII, pelo trabalho de autores franceses, holandeses eingleses. Mas as ideias principais sobre o sistema decastas estavam já presentes em Barbosa. O conceito depureza e impureza era expresso através da descrição dasformas estabelecidas de tratamento dos alimentos, bemcomo de seu preparo e sua apresentação às castas maiselevadas; abluções constantes e regras para consumo dealimentos entre os brâmanes (sacerdotes que nãoconsumiam carne nem peixe) e os naires; tabus emrelação às castas inferiores e respeito pela interdiçãohindu de contato físico, com um simples toqueacarretando a pena de morte ou a exclusão social; e aaceitação dessas interdições pelos elementos femininosdas castas mais elevadas, condenadas caso cometessemalgum erro ritual, já que toda a família ficaria poluída ou“teria o sangue maculado”, segundo as palavras deBarbosa. O autor também abordou as consequênciaspesadas para toda a população, em termos ritualísticos,da morte de um governante; a servidão (denominadaescravatura) das castas inferiores sob os governantes ouos naires; as estruturas familiares das castas superiores;as formas de herança resultantes das relaçõessupostamente livres das mulheres entre os xátria; aaversão à virgindade; a aceitação generalizada daprostituição de mulheres de castas inferiores; e asviúvas, que nas castas mais elevadas eram queimadascom o marido falecido. Os diferentes graus de nudez,com mais corpo a ser exposto nas castas inferiores; asuperstição generalizada, junto do uso constante defeiticeiros e adivinhos; e a justiça feroz, imposta semjulgamento pelos governantes e praticadaconstantemente pelas castas mais elevadas para punirfaltas menores cometidas pelas castas inferiores,completavam a visão dos indianos por parte doseuropeus após Vasco da Gama, o que renovou osestereótipos clássicos em relação ao Oriente sensual edespótico.O status supostamente superior dos brâmanes nosistema de castas era aceito pelos missionáriosportugueses, em especial os jesuítas, que adotaram deforma consistente uma estratégia hierárquica deconversão a partir do topo. O problema era como agirfora dos territórios controlados pelo Estado imperialportuguês. Ao longo da Costa das Pérolas, no extremo sulda Índia, desde o cabo Comorim até a ilha de Manar, osfranciscanos converteram o povo de pescadores paravar.Quando os jesuítas decidiram estabelecer uma missão naimportante cidade interior de Madurai, foram obviamenterejeitados pelas castas mais elevadas.Nas primeiras duas décadas do século XVII, a Sociedadede Jesus debateu interna e externamente as estratégiasde conversão a serem empregadas. O nobre e teólogoitaliano Roberto Nobili (1577-1656) deu início ao debateno início do século XVII, quando decidiu adotar o estilo devida brâmane em Madurai. Vivia com criados locais numacasa separada, vestia-se como um brâmane e consumiaos alimentos rituais, realizava as principais cerimônias depurificação, aprendeu sânscrito e decidiu pregar oEvangelho de uma maneira que levasse em conta acultura local.11 Foi imediatamente criticado pelo irmãoreligioso mais velho em Madurai, o português GonçaloFernandes Trancoso (1541-1619), que acusou Nobili de setornar nativo e de dissolver a mensagem cristã nasuperstição local. Nobili mobilizou os familiares em Romae atraiu para o seu lado a maior parte dos teólogosconvocados pelo arcebispo de Goa para analisar o caso.A Sociedade de Jesus e o papa acabaram por reconhecercomo válido o método de Nobili, que se justificavaafirmando que estava apenas adaptando-se aos hábitosda cultura local, para melhor evangelizar a população. Noentanto, a distinção entre cultura e religião permaneceuem aberto. Trancoso perdeu a sua batalha por motivossociais e culturais: Nobili era um aristocrata erudito comgrandes competências persuasivas, enquanto Trancosoera um antigo soldado com fraca formação em teologia eum conhecimento rudimentar de línguas — conheciaapenas o tâmil, embora conseguisse ler em tradução ecitasse corretamente os principais textos hindus emsânscrito. Aquilo que Nobili tentou fazer na Índia não eracompletamente novo — replicava experiências anteriorespor parte de Alessandro Valignano e Matteo Ricci, quehaviam decidido representar o papel das figurastradicionais dos sábios (ou homens de letras) no Japão ena China. Mas o sistema de castas indiano suscitavaproblemas diferentes. Foi isso que Trancoso tentou frisarem 1616, ao escrever um tratado extremamente densosobre o hinduísmo.12 Sem grande surpresa, o tratadocentrava-se nas cerimônias brâmanes, que para Trancosoobviamente tinham origem e objetivos religiosos.Importantepara o argumento desenvolvido aqui é o fatode os preconceitos étnicos contra os hindus, manifestosnas descrições pormenorizadas das suas práticasreligiosas e sociais “exóticas”, não ter impedido aexperiência de Nobili, que chegou inclusive a seraprovada pelo papa.Barbosa reconhecia a idolatria, mas não desenvolveuesse tema. Ludovico de Varthema (c. 1470-1517), umviajante italiano que em 1510 publicou em Roma o seuItinerario desde o Egito ao Sudeste Asiático, descreveu afigura esculpida de um “diabo” venerado pelos samudride Calicute, presente numa capela decorada compinturas de outros “diabos” consumindo almas; aescultura supostamente apresentava quatro cornos equatro grandes dentes que saíam de uma boca abertaenorme, com nariz horrível, olhos terríveis, mãosrecurvadas como ganchos e pés semelhantes aos de umgalo.13 Essa mesma linha de descrição grosseira, cominfluência clara das representações cristãs europeias dodiabo, foi replicada por Tavernier um século e meiodepois. Embora, tal como Varthema, reconhecesse queos hindus acreditavam num único criador do Céu e daTerra, principal causa de todas as coisas e onipresente,Tavernier lamentava a “imaginação tola” daqueles“idólatras”, que atribuíam honras divinas a vacas,macacos e monstros, representando-os com váriosbraços e pernas, corpos demoníacos, muitas cabeças ecaudas compridas. Tavernier criticava ainda os hinduspor acreditarem que os deuses nasciam como homens etinham esposas, imaginando assim que apreciariam osmesmos prazeres que os seres humanos. Introduziu aideia de almas transmigrantes, explicando que os crentesreceberiam de Deus outro corpo no qual habitar, deacordo com o modo como tivessem vivido as vidasanteriores — um processo que poderia ser repetidovárias vezes. Como penitência, a alma dos maus poderiaser atribuída a bestas desprezíveis, como macacos, cãesou gatos. Os hindus acreditavam que havia uma certadivindade nas vacas, podendo as almas ser felizesnesses corpos. Tavernier interpretou a repulsa quesentiam pelo abate de animais como precaução contra apossível morte de algum familiar ou amigo que estivessecumprindo a sua penitência nesse corpo. Por outro lado,uma vida virtuosa poderia levar a alma a entrar no corpode um governante poderoso, sendo que, nesse caso, odono da alma desfrutaria dos prazeres desta vida.14 Seriapreciso mais um século até se dar o início de um estudosistemático do hinduísmo por parte dos europeus. Osfilólogos Anquetil-Duperron (1731-1805) e William Jones(1746-94) reconheceram a riqueza intelectual da religiãoe da lei hindus e traduziram alguns dos textos centrais;no entanto, ao mesmo tempo estabeleciam as basespara outra fase do orientalismo.15Figura 8.1. Sacrifício de indianos, c. 1550, aquarela goense deautor desconhecido, 31 × 44 cm. Roma, Biblioteca Casanetense,ms. 1889, Disegni Indiani, 78-9.A cultura visual ajuda a compreender melhor ospreconceitos dos europeus contra as diferentes culturasasiáticas. A criação de colônias portuguesas no oceanoÍndico e no Extremo Oriente deu aos europeus a baseideal para a observação prolongada dos hábitos dospovos que viviam nas costas desse vasto mundointerligado.16 O primeiro livro etnográfico e de vestuárioanônimo português (na verdade, luso-asiático)provavelmente foi compilado na década de 1540 emostrava uma grande variedade de povos nas áreas queiam desde o cabo da Boa Esperança até a China. Neleforam incluídas cenas de guerra, diversão, ritosreligiosos, sacrifícios humanos, divindades indianas,casamentos e atividade econômica. As legendas estavamescritas em português, e as imagens mostravam ummisto curioso de técnicas ilustrativas europeias easiáticas, além de elementos decorativos. É um volumeextraordinário, com um conjunto colorido e vibrante de75 imagens que mostram exemplos representativos depovos com os seus trajes habituais e que desempenhamas suas práticas sociais para os olhos europeus. O livrosó foi publicado em finais do século XX, usando o únicoexemplar conhecido, conservado em Roma, mas outrascópias devem ter circulado nas colônias portuguesas naÁsia, já que representavam o primeiro passo popular quelevaria a imagens mais sofisticadas e formais dos povosasiáticos. Esse conjunto inicial de imagens apresenta trêselementos cruciais: a variedade de cores da pele, desdeo castanho-escuro ao branco (até mesmo as divindadeshindus Vixnu, Xiva, bem como Brama, eramrepresentadas em branco, castanho-escuro e vermelho);a precisão dos toucados (turbantes, boinas, chapéus,capuzes e véus) e dos penteados, confirmando que eramsinais-chave de identidade; e a variedade de roupas(formas, padrões e cores, os quais, por vezes, definiamas novas identidades, como a dos cristãos convertidos dacosta de Malabar) e sapatos e sandálias, embora a maiorparte das pessoas fosse representada descalça. Para aminha tese, as imagens relevantes eram as dossacrifícios humanos na Índia, especialmente a viúvaenterrada viva com o marido (uma prática das castasinferiores, que contrastava com a sati, ou imolação daviúva na pira funerária do marido nas castas maiselevadas); o sacrifício da vida de um indivíduo sob asrodas de uma carroça de pagode puxada por um grandenúmero de pessoas (ver figura 8.1); e o autossacrifíciosuicida à frente de um templo, do qual se mostram váriosexemplos.17Provavelmente foi Jan Huygen van Linschoten quemdesenhou as imagens publicadas em 1596 no seuItinerario, pois ele era um ilustrador conhecido que acerta altura recebera encomendas para desenharpanoramas de portos portugueses.18 No entanto, partedas imagens deve ter sido redesenhada a partir deesboços anteriores, pois Linschoten nunca deixou a Índiaocidental. A posição de Linschoten como secretário doarcebispo de Goa, o dominicano João Vicente da Fonseca,entre 1583 e 1587, deu-lhe um ponto de observaçãocentral que lhe terá permitido obter informação sobreuma variedade impressionante de etnias de todas ascostas da Ásia, mas os desenhos apresentavam detalhesque não poderiam ter sido conseguidos sem umaobservação direta. As 26 imagens do Itinerariorepresentavam diferentes etnias e suscitavam asmesmas questões que o livro de vestuário luso-asiáticoanônimo: os critérios usados para a seleção do querepresentar; e a decisão, tomada em alguns casos, derepresentar povos complexos de modo estereotipado.Três gravuras são especialmente importantes para omeu argumento. A primeira representa um casalbrâmane. O homem está quase nu, de turbante, faixa emtorno da parte inferior do tronco, sandálias e as trêsmeadas distintivas de fio sobre o ombro esquerdo e porbaixo do braço direito. A esposa está completamentecoberta por um sari e uma capa, tendo num dos pésdescalços uma pulseira em volta do tornozelo e anéis nosdedos do pé. A paisagem atrás do casal representa um“ídolo” esculpido numa colina, venerado por aldeões nus.O texto cita a natureza supersticiosa dos indianos, quesupostamente são competentes em preparar venenos eestão dispostos a cometer qualquer crime. A segundaimagem (ver figura 8.2) é a mais poderosa: representa acerimônia do sati, a imolação da viúva de um brâmane,que se atira numa pira em chamas onde será consumidajunto do cadáver do marido, encorajada pelos lamentosda multidão e pelo ritmo dos instrumentos musicais. Otexto critica a “morte insana” das mulheres conseguidapor esse “sofrimento cruel e bárbaro”. Linschoten sugereque o ritual poderia originalmente ter sido inspirado noreceio de infidelidade — um tópico repetido a ponto daobsessão no Itinerario, centrado nos estereótipostradicionais europeus em relação à “Ásia sensual”. Aterceira imagem representa um pagode aberto, com um“ídolo”, uma vaca sagrada, fogo vívido de incenso e umgrupo de veneradores — uma cena que está separadapor uma palmeira deuma mesquita estranha. O textoexecra as estátuas “diabólicas” e “aterrorizantes”erigidas em toda parte, à beira de estradas e emcruzamentos.Figura 8.2. Jan Huygen van Linschoten, Itinerario, Voyage ofteShipvaert van Jan Huygen van Linschoten naar Oost oftePortugaels Indien. Amsterdam, 1596, pp. 58-9. Gravurarepresentando o sati — a imolação da viúva de um brâmane.O livro de Linschoten teve um enorme sucesso, não sópor revelar os itinerários marítimos usados na Ásia pelosportugueses, levando a viagens regulares por parte dosholandeses e dos ingleses, mas também por apresentarmapas e imagens dos povos asiáticos. Foi traduzido parao latim, inglês, alemão e francês, e incluído na série devolumes de De Bry sobre a Ásia. As imagens dacerimônia do sati e do templo hindu foram repetidas aolongo dos séculos XVII e XVIII, especialmente emCérémonies et coutumes religieuses de tous les peuplesdu monde, de 1783, de Bernard Picard.19 As imagensreforçaram claramente os preconceitos europeus contraos indianos como idólatras de aparência exótica quecometiam atos repugnantes de sacrifício humanobaseados na autoimolação.MUÇULMANOSNo início do século XVI, a maior parte da Índia consistiajá em estados islâmicos, mas o desenvolvimento doImpério Mogol levou a uma poderosa estrutura políticacentralizada no subcontinente que predominou até 1720,seguida de um longo período de declínio.20 O hinduísmoresistiu bem ao domínio político islâmico, mas para osolhos europeus a disseminação inexorável do islamismodesde o Oriente Médio até a Europa e o sul da Ásia eraum problema grave. A rivalidade política e religiosa entreas potências islâmicas, sobretudo entre os turcosotomanos sunitas e os iranianos xiitas, definia um mundoislâmico que não era uniforme nem integrado. Foi porisso que no século XVI os portugueses, os espanhóis e ositalianos tentaram estabelecer boas relações com osimperadores iraniano e mogol contra os otomanos,enquanto o rei francês, Francisco I, estabeleceu umaaliança controversa com os otomanos contra o imperadorCarlos V, seguindo o exemplo do compromissodiplomático desenvolvido pelos venezianos e pelosgenoveses quando tentavam impedir a sua erradicaçãodo Mediterrâneo oriental. A queda de Constantinopla em1453 abalara o mundo cristão medieval, apesar de aessa altura os turcos já terem conquistado praticamentetoda a Ásia Menor e grande parte dos antigos territóriosbizantinos na Europa. O saque de três dias deConstantinopla, além da morte e da violaçãogeneralizadas da população, ajudou a reforçar areputação dos turcos como “vis e animalescos”, emboraesse tipo de comportamento fosse uma práticageneralizada contra as cidades que se tivessem recusadoa se render.21 A subsequente expansão militar dos turcosno Leste Europeu, no Norte da África, no Egito, naPalestina, na Arábia e no Oriente Médio, trazendo a suasmãos o controle das principais cidades santas islâmicas(Meca, Medina e Jerusalém), ajuda a explicar o motivopor que o interesse ocidental no islamismo se centravano Império Otomano. Os viajantes Nicolas de Nicolay,Pierre Belon, André Thevet e Guillaume Postel, quevisitaram a Turquia em meados do século XVI com osembaixadores franceses, expressaram o seu respeitopela ordem imposta no Império Otomano: disciplina econtenção observada pelos janízaros (tropas de elite),hábitos frugais da população, tolerância religiosa (nãoelogiada, mas referida), higiene pessoal e decência dovestuário, igualdade entre os crentes, e hospitalidade ecaridade gerais. Também comentaram as principaisdiferenças entre as cosmovisões cristã e islâmica.22A idolatria era a grande acusação feita contra oscristãos no ambiente islâmico, algo que provava que avelha estigmatização de outros povos como “pagãos” ou“infiéis” podia ser retribuída. Para o islamismo, arepresentação visual de Deus era considerada umaofensa contra a divindade, assim como a representaçãode profetas (como Cristo) e de homens sagrados (ousantos). O islamismo ortodoxo também proibia arepresentação de governantes. O contraste entre ostúmulos medievais cristãos e islâmicos fala por si: ostúmulos dos soberanos islâmicos não apresentamimagens esculpidas ou pintadas. Nos monumentospúblicos só se podiam usar como elementos decorativosas palavras sagradas do Alcorão, além de formasgeométricas e representações de flora. Isso explica omotivo por que os livros iluminados dos imperadoresmogol e iraniano são tão preciosos: as imagens com queos artistas islâmicos registraram os soberanos e a vidana corte são únicas, embora houvesse períodos duranteos quais foram convidados artistas europeus, comdestaque para Giovanni Bellini, que produziram retratosdo imperador otomano Mehmet II (r. 1451-81) emquadros e em medalhas. O argumento contra a idolatriaproposto pelos arquitetos da expansão islâmica foi tãopoderoso desde o início que os imperadores bizantinoslançaram sucessivas campanhas de destruição de íconesem 730-87 e 815-43, na sequência dos movimentos parasuprimir a arte cristã ordenados pelo califa Yezid em 722-3. O debate sobre a iconoclastia criou uma divisão noseio da sociedade bizantina, bem como entre os cristãosocidentais e orientais.23 A Reforma Protestante, no séculoXVI, renovou o debate com disputas semelhantes, mas arejeição bizantina da estatuária, algo contrário à tradiçãoocidental, é digna de nota. Essa divisão originou umaanedota colorida relatada por Augier Ghislain deBusbecq, embaixador do imperador Fernando emConstantinopla entre 1554 e 1562. Quando o embaixadore os seus companheiros viram trabalhadores turcosdestruindo uma estátua romana para usarem a pedra e“nos mostramos desagradados com tamanha violência,fomos brindados com desprezo: ‘O quê?’, indagaram ostrabalhadores. ‘Vão ajoelhar-se a venerar esta estátua,como vocês cristãos faziam com as suas?’”.24Mapa 8.1. Poderio muçulmano no Oriente Médio até 1639. Fonte: Geoffrey Barraclough (Org.), The Times Atlas of WorldHistory. Londres: Times Books, 1990, pp. 170-1.Os preconceitos cristãos contra o islamismo seassentavam em ideias de despotismo, licenciosidade esuperstição. O assassinato de filhos e irmãos porimperadores otomanos, novos ou velhos, para eliminarpossíveis rivais — algo mais tarde designado por “lei defratricídio” — é o primeiro dos atos de tirania apontadopelos cristãos.25 Busbecq considerava os filhos doimperador as criaturas mais desgraçadas do mundo, poisnão tinham como fugir do seu destino. O embaixadorapresentou um motivo social e político para essa prática:os janízaros usavam qualquer irmão vivo de umimperador para apoiar os seus pedidos de novosprivilégios, criando uma contenda que obrigava osimperadores “a matar os irmãos, dando assim início aoreinado com sangue”.26 As leis fundamentais do impériona época de Mehmet, o Conquistador, garantiam alegitimidade do processo: o procedimento estabelecidoera que o sucessor do sultanato abatesse os irmãos paragarantir a ordem do mundo.27 Busbecq, um dos maisargutos observadores das instituições otomanas, tinhaprovavelmente noção desse preceito quando relatou empormenores o homicídio sucessivo de crianças porSolimão I (r. 1520-66). No Irã não havia instituiçõesequiparadas ao palácio central dos imperadoresotomanos, com uma corte estritamente segregada emtorno da qual viviam em reclusão as esposas, asconcubinas e os filhos do soberano — centenas depessoas controladas por uma guarda composta deeunucos negros —, mas, claro, existia um harém. A lei dofratricídio não era implementada; em vez disso, oimperador mandava cegar os filhos e os irmãos, poisessa deficiência impedia o seu acesso à sucessão.28 Emambos os sistemas, o assassinato ou a cegueira dospotenciais rivais podiam ser estendidos aos sobrinhos eaos tios.A escravização sistemática de jovenscristãos e o usode escravos para garantir serviços administrativos emilitares são outros elementos essenciais para aacusação de despotismo. O modelo para tal prática era aelite militar e política dos mamelucos, um grupo deescravos cristãos de origem caucasiana convertidos aoislamismo e que serviam de soldados e administradoresdos califas de Bagdá. Os elementos desse grupogovernaram o Egito entre 1250 e 1517, mantendo ostatus de casta militar até 1812, depois de os otomanosterem chegado ao poder no Egito, em 1517. A vantagemdessa casta era o fato de não ter as suas raízes nas eliteslocais, não se envolvendo, teoricamente, em ações derebelião local ou regional. Os mamelucos dedicavam-seem absoluto ao seu objetivo militar, embora no longoprazo se revelassem fonte de instabilidade política. Oprincípio de recrutamento de escravos de origem cristãpara servirem como tropas de elite e administradores foilevado a cabo de forma sistemática pelo ImpérioOtomano. Quando o recrutamento de escravos cristãosatravés da guerra ou da conquista entrou em declínio, osotomanos introduziram um imposto regular de criançasentre as populações cristãs do império. O corte precocedos laços familiares, a conversão ao islã e a formação emcompetências religiosas, militares e administrativastransformaram essas crianças numa classe privilegiadadedicada exclusivamente ao imperador. George Sandys(1577-1644) acusou apolítica bárbara que mantém essa tirania […] guiada pela mente esustentada pelas mãos desses escravos, que julgam ser uma grandehonra fazê-lo, tal como nós, que servimos nas cortes dos príncipes. Oturco natural (ser assim chamado é um vexame) raramente é usado nocomando ou em serviços; entre os quais não existem nobreza de sangue,ascendência conhecida, família, posses hereditárias; mas que são dacriação do sultão, dependentes dele para sustento e promoção; quedispõe, tanto das suas vidas como das suas fortunas, única eexclusivamente por sua vontade.29A suposta ausência de nobreza latifundiária hereditáriano Império Otomano era uma questão interessante. ParaSandys, isso indicava tirania (“despotismo” foi um termoque só entrou em uso em finais do século XVII), pois assimo sultão não precisava lidar com poderes regionais comautonomia financeira que contestassem sua autoridade.A liberdade de uma aristocracia com terras quedispusesse de direitos de herança era vistaimplicitamente como uma forma importante de controleque limitava o possível abuso de um poder centralizado.A promoção sistemática de escravos aos mais elevadosníveis do Estado, deliberadamente afastados dosantecedentes religiosos e familiares originais, era vistacomo emblemática de um poder tirânico. Tais escravosnão só preenchiam as estruturas centrais militares,administrativas e políticas do Império Otomano, comotambém eram nomeados durante breves períodos detempo para diferentes níveis do governo regional e local.Recebiam somas vultosas de dinheiro pelos seusserviços, mas podiam ser afastados a qualquermomento.Contrariamente à impressão de Sandys, sabemos quea maioria das tropas otomanas era recrutada pelo poderlocal, os notáveis tinham um papel importante noimpério, e os religiosos em geral eram de origem turcaou árabe, mas os embaixadores europeus, e osestudiosos ou viajantes a eles associados, projetavam noimpério as suas ideias quanto às instituições centrais.Belon (1517-64) notou ausência de uma nobrezalatifundiária em termos europeus, embora tenha relatadoo fato num tom menos crítico, já que, para ele, oproblema tinha a ver com o fato de apenas indivíduoscom competências profissionais serem capazes deganhar a vida no Império Otomano. Frisou que até osjanízaros poderiam ter de realizar tarefas mecânicas,concluindo que para qualquer habitante “é inútil afirmar-se neste país como gentil-homem”. Não obstante, Belondefiniu as comunidades cristãs tributárias, em especial avasta população grega, como “escravas” dos turcos,considerando os egípcios, os sírios e os árabesigualmente “escravos”. Segundo Belon, a ausência denobreza explicaria o fato de não se construírem mansõesno campo ou na cidade; os principais edifícios tinhamobjetivos religiosos ou destinavam-se à burocraciaimperial. O fato de parte da riqueza acumulada pelosescravos do imperador voltar às mãos do soberano apósa morte deles (de acordo com as leis da herança) ajuda aexplicar a falta de investimento em casas privadas.30 Umséculo mais tarde, François Bernier desenvolveu umargumento semelhante quanto à Índia mogol. Relatou aausência de propriedade privada associada às terras nãocultivadas, considerando isso uma característica centralda tirania disseminada.31Figura 8.3. George Sandys, A Relationof a Journey. Londres, 1615. Página derosto representando o imperadorotomano.O frontispício do livro de viagens de Sandys, publicadoem 1615, expressava a visão cristã do despotismo turco.O imperador Ahmed I (r. 1603-17), chamado “Achmet siveTyrannus”, é representado junto ao título, no lado direitodo portal, com um turbante alto, uma túnica comprida ebarba aparada (ver figura 8.3). Segura um globo na mãoesquerda, um dispositivo para acorrentar escravos nadireita e está pisando em livros. Poderiam ser livros dedireito. O governo arbitrário e a escravização eramindicados claramente como duas característicasdistintivas dos otomanos. Embora a maior parte daspotências europeias enviasse embaixadores para o Irãcom o intuito de promover alianças contra os turcos, adinastia Safávida era vista sob uma luz semelhante.Tavernier, que se gabava de ter tido conversas amenascom o xá, declarou queo governo da Pérsia é puramente despótico ou tirânico. O rei detém opoder de vida e de morte sobre os súditos, sendo independente doconselho e sem precisar de julgamentos ou de leis. Pode condenar aqualquer morte que deseje os principais senhores do reino, sem quealguém conteste o motivo; não existe no mundo soberano mais absolutodo que o rei da Pérsia.32Montesquieu cristalizaria ainda mais essa tradição aoopinar que a Ásia assumira o despotismo como natural. Oautor definiu o despotismo no contexto dos otomanos,cuja constituição se baseava supostamente no medo, nosdireitos civis limitados e na sujeição imposta aos súditosatravés da força e da religião. O príncipe era consideradoo proprietário de todo o território otomano, herdeiro dafortuna dos oficiais e possuidor legal das propriedadessem um herdeiro masculino. Montesquieu atribuía aganância dos administradores a essas leis sucessórias evia o sistema como o responsável pelas construçõesprivadas medíocres, pela falta de desenvolvimento daagricultura e pelo abandono das estruturas básicas. Osirmãos do príncipe eram, ao mesmo tempo, seusescravos e seus rivais, pois não havia uma regra clara desucessão. “A família real lembra o Estado; é demasiadofraca e tem uma cabeça excessivamente forte; parecealargada, mas reduz-se a nada.” Montesquieu tambémchamava a atenção para os efeitos políticos do serralhoisolado, onde os futuros herdeiros do trono se viamexcluídos de uma experiência de vida relevante e “ondeum príncipe velho, cada dia mais imbecil, é o primeiroprisioneiro do palácio”. No entanto, era a suposta justiçaarbitrária que mais chamava a atenção de Montesquieu,que considerava que na Turquia não havia proteção dafortuna, da vida ou da honra dos súditos do imperador.Declarou que “os homens são iguais num governorepublicano: e são iguais num governo despótico; noprimeiro por serem tudo, e no segundo por não seremnada”. Também condenava a concentração exclusivapelo soberano dos poderes executivo, legislativo ejudiciário na Turquia, sendo responsável por um“despotismo terrível”. Montesquieu associava os baixosníveis de impostos na Turquia à servidão extrema dopovo, que não era capazde aguentar mais opressão.33O segundo grande conjunto de estereótipos sobre omundo islâmico dizia respeito à superstição. Embora oscristãos também fossem vítimas da credulidade no quedizia respeito às propriedades e aos efeitos de certaspráticas ou objetos (como os amuletos e as relíquias),acreditavam que os muçulmanos davam rédea livre àimaginação e à malícia. O humanista Paolo Gioviozombou implicitamente do jejum durante o Ramadã aocriticar a prática de comer à noite e não durante o dia.34Postel escreveu que os muçulmanos se dedicavam àastrologia para escolher o dia do casamento e aconcepção dos filhos, consagrando a prática com o nomede Alá para impedir a presença do diabo e a corrupçãoda linhagem. Os preceitos da ablução regular, oupurificação do corpo através da prática da lavagem,eram vistos sob a mesma luz. Os cristãos tambémtentaram retribuir a acusação de idolatria. Consideravamo “horror das imagens” por parte dos muçulmanos comouma forma de superstição, responsável pela ocultaçãodos mosaicos espetaculares na catedral de santa Sofiaem Constantinopla quando transformada em mesquita. Aobrigação ritual dos muçulmanos de rezar cinco vezespor dia virados para Meca era imposta por lei e punidaem caso de falha. Os dervixes, meio despidos e meiovestidos com peles de animais, que participavam emdanças xamanísticas que levavam ao êxtase, durante asquais se feriam e se mutilavam, foram alvo de críticasdesde o início. Foram representados em xilogravuras porvários autores como praticantes do islã mergulhados nasuperstição.35Busbecq compilou uma série de acusações curiosas:nunca se deixavam papéis no chão, pois o nome de Deuspoderia estar escrito neles; os muçulmanos acreditavamque esses papéis (nos quais se escrevera o nome deDeus) os protegeriam durante a difícil passagem para oparaíso pelo portão de ferro em brasa. Tambémrecolhiam as pétalas de rosa caídas ao chão, vendo-ascomo o suor de Maomé. Os cristãos que se opusessem aoAlcorão seriam punidos com a morte. A preparação rituale as regras relativas aos alimentos também eramconsideradas superstição, e Busbecq lamentava não tercomido tartarugas com aspecto delicioso, pois seencontrava acompanhado por turcos, e estes “sesentiriam tão ofendidos que nem sei quantas lavagensseriam necessárias para limpar a sua imaginaçãopoluída”. Os túmulos eram cobertos com pedra, mas nãoeram cheios de terra, para que a alma do falecidopudesse sentar-se e discutir com o diabo quando fossechamada a prestar contas da sua vida. Os turcosraramente usavam preto, pois essa cor era consideradainfeliz. Os loucos e os tolos eram considerados escolhidospelos céus. A ausência de imprensa estava relacionadacom o caráter sagrado da linguagem do Alcorão,enquanto a ausência de relógios se associava àautoridade dos muezins. Os paxás que caíssem do cavalopodiam ser afastados dos cargos, pois o acidente eravisto como mau agouro. As principais decisões dos turcoseram influenciadas pelo conceito de fado ou de destinoinevitável. Segundo Busbecq, a recusa dos turcos de agirdurante uma peste devia-se à ideia fatalista de que “odestino de cada homem foi-lhe escrito por Deus na testa;é assim uma tolice que pensem em rejeitá-lo ou evitá-lo”.36 Montesquieu regressou a essa crítica do conceitode destino, algo que, segundo ele, transformava omagistrado num observador calmo e passivo, porémestava mais interessado nas questões políticas ligadas àsuperstição. Observou que os turcos não controlavam asua vida política, pois “os devotos consideram que avitória ou o êxito é um julgamento divino; dessa forma,ninguém é soberano por direito, mas sim pelos fatos”.Montesquieu garantia que os turcos consideravam oresultado da primeira batalha numa guerra civil comosinal do julgamento de Deus, que decidia tudoantecipadamente.37Durante bastante tempo, os cristãos haviam acusadoos muçulmanos de licenciosidade sexual por poderemcasar-se com mais de uma mulher e desfrutarlegalmente de concubinas. O islã não tinha sacramentos,portanto o casamento não era visto como tal, embora oAlcorão estabelecesse as suas regras. Postel atribuía umenorme número de esposas permitido aos príncipes(setenta), aos ricos (doze) e aos homens comuns (quatroa seis), além de todas as concubinas escravas quepudessem comprar. Acreditava que no serralho deConstantinopla haveria três centenas de mulheres paraprazer do sultão. Frisou a diferença entre um casamentopermanente e outro por prazer, que seria estabelecidocomo um contrato por um período limitado de tempo.Reconhecia a realidade do divórcio; o cádi, ou juiz, tinhade ser informado do procedimento de repúdio com baseem esterilidade, suspeita de adultério ouincompatibilidade. A relação sexual entre um cristão eum turco era punível com morte, a menos que o cristãodecidisse converter-se ao islã. Curiosamente, Postellevantou a questão das mulheres levadas como espóliode guerra, vendidas como escravas no mercado e aquem se atribuía um status inferior na vida cotidiana.Reproduziu o dito de que “doze mulheres valem menosdo que um homem”.38 Sandys foi mais longe e acusou oprofeta Maomé de associar a felicidade da vida após amorte aos prazeres carnais. O islã concebia o paraísocomo um local de felicidade sensual eterna, onde serecuperava a virgindade e os eleitos regressavam à idadede quinze anos (mulheres) e de trinta anos (homens). Oseleitos “passarão esse tempo aventuroso entre virgensapaixonadas, que se dedicarão exclusivamente aos seusamantes específicos”.39Os principais preconceitos europeus contra o islã naversão otomana são expressos num único parágrafo deautoria de Mary Montagu (1689-1762), presente numacarta de 1717 a Alexander Pope:Mas o que podemos esperar de tal país, de onde as Musas fugiram, ondeas letras parecem eternamente banidas, e onde nos cenários privados sóvemos a voluptuosidade indolente perseguida à laia de felicidade, e ondeaqueles que aparecem em público vivem uma vida de incerteza, suspeitae terror! […] Entre os turcos desconhecem-se a perspicácia, a conversaelegante, as relações descontraídas; e no entanto eles pareceriamcapazes de tudo isso, caso o espírito vil do seu governo não castrasse ogênio, abafasse a curiosidade e suprimisse uma centena de paixões queembelezam a vida e a tornam agradável.40Isso vinha de uma autora informada, esposa de umdiplomata, que em muitas outras cartas expressara a suaadmiração e simpatia para com a cultura e as mulheresotomanas. Tais estereótipos sobreviveriam até o séculoXX, por vezes com algumas modificações. É por isso queconsidero ser útil procurar as suas origens e, sempre quepossível, os objetivos. O novo conhecimento obtido sobrea Ásia pelos especialistas europeus setecentistas —sobre os textos sagrados, a estrutura constitucional e ofuncionamento das instituições islâmicas, por exemplo —permitiu a criação de uma base precária para a análisemais objetiva das crenças religiosas e das açõespolíticas.41 Isso contribuiu para que se superassemalguns dos estereótipos aqui descritos, mas os principaisaspectos da visão europeia sobre o islamismo não foramcontestados na época.A diferenciação entre as sociedades islâmicas — aforma como os cristãos as hierarquizam — é umaquestão importante. Os portugueses e os espanhóisconfiavam mais nas suas relações com os mogóis ou comos iranianos, mesmo depois da conquista de Ormuz porShah ‘Abbas, em 1622, do que com os turcos, semprevistos como o principal inimigo. No início do século XVI, osportugueses e os turcos travaram batalhas navaiscruciais no oceano Índico. Os espanhóis e os venezianosenfrentaram os turcos no Mediterrâneo, enquanto osalemães, os húngaros e outros cristãos guerrearamcontra os otomanos nos Bálcãs e no Leste Europeu. Osfranceses eram a exceção a quem em breve se juntariamosingleses, procurando alianças políticas e acordoscomerciais privilegiados com os otomanos. Os egípcioseram vistos sob uma luz mais favorável do que os turcos,em parte devido ao prestígio de terem uma civilizaçãomais antiga do que a dos gregos ou dos romanos, alémde terem desempenhado um papel religioso, político eeconômico essencial durante a Idade Média. O períodofinal das Cruzadas assistira a um redirecionamento dasexpedições militares contra portos egípcios. Os norte-africanos eram inimigos ferozes dos portugueses e dosespanhóis, os quais tentaram expandir-se ao longo dacosta e gastaram somas vultosas em campanhassucessivas, até que os portugueses sofreram váriosreveses graves e a derrota final entre 1541 e 1578. Oconstante envolvimento dos norte-africanos em atos depirataria até finais do século XVIII, que envolviam acaptura de escravos cristãos e eram levados a cabo apartir do Mediterrâneo até o Atlântico, chegando à costabritânica, não ajudou a melhorar a imagem dessespovos, embora os cristãos os tivessem imitado até oséculo XVII. Postel atacava os “mouros” (norte-africanos)como os “piores miseráveis, infiéis e traidores entretodos os seguidores de Maomé” (na verdade,mahomediques — um insulto comum), quesupostamente teriam contribuído muito mais do quequaisquer outros muçulmanos para obrigar os cristãos ase converter.42CHINESES E JAPONESESA percepção europeia da China e do Japão era bastantediferente, pois não havia antecedentes de contendasreligiosas. Já foi citado que Acosta elevou os chineses eos japoneses ao topo da sua hierarquia de povos domundo. Eram considerados “policiados” (ordeiros oucorteses, mais tarde catalogados como civilizados) equase perfeitos em todos os aspectos, a não ser quanto àreligião. Os missionários e os mercadores cristãos naÍndia e na Ásia Central foram chegando à China ao longode toda a Idade Média. Graças ao seu relato de viagemextraordinário, registrado no final do século XIII, MarcoPolo teve um grande impacto na percepção europeia.43Mas os contatos estabelecidos com a China pelosportugueses a partir da década de 1510 deram origem aum contexto totalmente diferente, reforçado pelacolonização permanente de Macau na década de 1550.Esse porto tornou-se um importante centro de comérciomarítimo no Extremo Oriente, acima de tudo entre aChina e o Japão (onde os portugueses desembarcaram nadécada de 1540), mas também ligado ao SudesteAsiático, às Filipinas (a partir da década de 1570) e aooceano Índico. Nele estabeleceu-se uma base para otrabalho missionário regular feito pelos jesuítas no Japãoe na China.Os primeiros relatos portugueses sobre a China foramcompilados e desenvolvidos pelo dominicano Gaspar daCruz (c. 1520-70), num trabalho fundamental publicadoem 1569. Cruz frisava que os chineses superavam todosos outros asiáticos quanto a dimensão da população,grandiosidade do reino, excelência das políticas egoverno e abundância de posses e riquezas. Admirava aadministração centralizada de tão vasto território; aordem social seguida pelo povo; o exercício reto dajustiça, supostamente sem subornos ou abusos de poder;o exame e a seleção, baseados no mérito, para os cargosdos mandarins; o controle efetuado sobre todos osfuncionários imperiais, nomeados, por breves períodosde tempo, para províncias distantes das suas casas, etransferidos regularmente sem as suas famílias; oplanejamento urbano, com grandes muralhas, casas combons alicerces de pedra e ruas largas, dispostasgeometricamente e pavimentadas; e um sistema detransportes e comunicações baseado nos rios,complementado por boas estradas e um númeroextraordinário de pontes. A competência da populaçãoesforçada empregada na agricultura intensiva, naindústria e no comércio também era elogiada por Cruz,bem como os hospitais e a caridade organizada para osidosos e os deficientes, o que levava à ausência depedintes nas ruas. Considerava-se extraordinário ogrande número de caracteres na ortografia chinesa, bemcomo o fato de tanto quem falava diferentes dialetoscomo os japoneses conseguirem lê-los. O caso de umveredito imperial a favor de mercadores portuguesesdetidos que ia contra as decisões anteriores de tribunaislocais era considerado inimaginável num país europeuque lidava com estrangeiros sem quaisquer ligaçõeslocais.44Mapa 8.2. Império Qing em 1775 e 1911. Fonte: Marius B. Jansen, Japan and China: From War to Peace,1894-1972. Chicago: Rand McNally and Co., 1975, p. 8.Gaspar da Cruz inspirou Bernardino de Escalante,Martín de Rada e Juan González de Mendoza.45 O livro deMendoza, publicado em 1585, tornou-se um sucesso devendas e uma importante obra de referência sobre aChina, traduzido para várias línguas. A invenção datipografia, do papel e da pólvora era atribuída aoengenho chinês, e as bases antigas da civilizaçãochinesa, anteriores às dos gregos ou dos romanos,começaram a ser reconhecidas. Esses autoresconcordavam com os supostos principais fenótiposchineses: corpo com boas proporções; rosto largo, olhospequenos e nariz chato; e homens barbeados ou combarba rala (ver figura 8.4). Os chineses do interior eramconsiderados brancos, num contraste com os habitantesdo sul, especialmente da província de Cantão,considerados castanhos, como os mouros. Os tártaroseram descritos por Mendoza como “muito amarelos enão propriamente brancos” — uma percepção curiosa,que poderá estar associada à ideia muito posterior deuma raça “amarela”. Destacavam-se alguns hábitosbizarros: deixava-se crescer as unhas na mão esquerda,os homens usavam o cabelo comprido, preso no topo dacabeça, e os pés pequenos eram apreciados entre asmulheres, que “cingem os pés com tanta força que estesperdem a forma e ficam quase coxos”.46 A idolatria e asuperstição eram os principais “defeitos” chineses.Mendoza exprimia a sua perplexidade. Como poderia umpovo que exibia tamanha prudência e sabedoria nogoverno da comunidade, tão engenhoso nas artes,dedicar-se à veneração de ídolos, aceitar a orientaçãoastrológica, acreditar em adivinhos, lançar sortes eproceder a inquéritos supersticiosos antes de tomar umadecisão importante?Figura 8.4. Jan Huygen van Linschoten, Itinerario, Voyage ofteShipvaert van Jan Huygen van Linschoten naar Oost oftePortugaels Indien. Amsterdam, 1596, pp. 32-3. Gravurarepresentando mandarins chineses.Os primeiros cristãos a visitar o Japão partilharam aadmiração pela engenhosidade desse povo nas artes enos ofícios, pela capacidade militar e pela competênciaadministrativa e governativa. As artes da civilidade —modos, hospitalidade, entretenimento, asseio doméstico,apresentação pessoal, rituais da vida diária e aparência euso das artes decorativas — eram descritas de um modoespecialmente detalhado.47 A primeira carta do jesuítaFrancisco Xavier sobre o Japão sublinhava oextraordinário sentido de honra, a relativa pobreza dapopulação, incluindo a nobreza, o uso habitual de armas,a cortesia da vida diária, a monogamia, o sentido dehierarquia, a moderação na alimentação e na bebida, oexercício da justiça, a criminalidade limitada e o altonível de alfabetização. Xavier, no entanto, tambémcomenta a “idolatria” — informação que obteve nos seusdebates com os monges budistas.48 Num relatoaprofundado no seu livro Peregrinação, Fernão MendesPinto destacava a curiosidade dos japoneses e suacapacidade de aprendizagem. No início da década de1540, quando do primeiro encontro com os japoneses, osportugueses haviam deixado um arcabuz como oferta aogovernador da ilha de Tanegashima. O governador ficaraentusiasmado com a eficácia do artefato e convidara osportugueses para uma caçada, pois não existiam armasde fogo no Japão. Quando os portugueses regressaram,passados seis meses, descobriram que a arma forareplicada; quando deixaram a ilha haviajá seiscentaspeças; quando Mendes Pinto voltou ao Japão, em 1556,soube que existiam mais de 300 mil arcabuzes nasilhas.49Por trás dos elogios estava a euforia missionáriaquanto às possibilidades oferecidas pelo Extremo Orientee o desejo de atrair mais evangelizadores. A excitaçãorapidamente se acalmou, embora a experiência japonesatenha se revelado extremamente bem-sucedida, comcentenas de milhares de conversões realizadas até oinício do século XVII. Esse êxito, porém, foi atalhado com aperseguição aos cristãos determinada pelas autoridadescentrais em 1614, gesto selado com a expulsão dosportugueses em 1639.50 Na China, os portuguesesconseguiram manter a sua posição em Macau, emboratenha se reduzido apenas ao comércio; reconheceram opequeno sucesso conseguido com as missõescontinentais, embora trabalhos recentes contestem essaideia.51 Ironicamente, os chineses acusaram osportugueses de canibalismo, pois compravam escravosjovens levados para a China pela população costeira.52Os “bárbaros do sul” foram acusados dos mesmosterríveis crimes antinaturais que atribuíam aos índiosamericanos.É essencial que se compreenda a evolução da formacomo os principais missionários viam os japoneses e oschineses. Valignano, visitante jesuíta na Ásia,desempenhou um papel crucial na expansão da missão ena abertura da companhia a recrutas nativos. Issorepresentou um avanço importante, já que a recusa ou aaceitação de recrutas nativos era uma das bases para ospreconceitos étnicos entre as ordens religiosas, que emgeral excluíam os nativos de continentes que não oeuropeu. No entanto, Valignano expressou em váriascartas as suas dúvidas quanto à sinceridade do povojaponês, além da suposta mistura de crueldade,dignidade, depravação e hipocrisia. Também declarouque o Japão se encontrava sob lei marcial, com apopulação organizada como um exército de oficiais e desoldados.53 Ricci, por seu lado, lamentava a naturezaafeminada dos homens chineses, que podiam passarduas horas arrumando o cabelo e vestindo-semeticulosamente; não consideravam as disputas, asinjúrias ou os insultos como questões de honra; tinhamem muito menor conta os exames para o serviço militardo que os para o serviço civil; e mostravam atitudes vis ecovardes em relação à guerra. Ricci também criticava oreceio constante das potências estrangeiras, muitomenores do que a chinesa, e o sistema de justiça, quepara ele era definido por castigos vergonhosos e cruéisque podiam condenar à morte um réu através dechibatadas brutais e que provocavam o receio constanteentre a população de acusações falsas.54 Contudo, tantoValignano como Ricci concordavam que os chineses e osjaponeses eram muito superiores aos indianos, quepadeciam de governos corruptos, exércitos medíocres ejustiça inferior, sendo considerados pouco melhores doque “animais”.55 Valignano definiu os pressupostoseuropeus quanto aos indianos e outros povos asiáticosnuma frase extraordinária: “Uma característica comum atodos esses povos (e não me refiro apenas às chamadasraças brancas da China e do Japão) é a falta de distinçãoe de caráter. Tal como diria Aristóteles, eles nascerampara servir e não para comandar”.56 Deve-se notar que,grosso modo, os relatos europeus sobre os turcos e osiranianos os consideravam brancos, ou como tendo pele“escura clara”.57 Provavelmente, Valignano não incluiutais povos na sua declaração.O prestígio da China, já contestado pelos matizes davisão de Ricci, sofreria ainda mais durante os séculos XVIIe XVIII, embora o respeito pelo poder político e territorialdo país permanecesse intacto. As embaixadas holandesae portuguesa enviadas à China em 1667 e 1670, emrelatos de Arnoldus Montanus e Francisco Pimentel,marcaram a transição para uma visão “realista”, tal comosugerido pelo historiador Jonathan Spence. Um dosresultados dessas expedições foi o rebaixamento dosfeitos urbanos e arquitetônicos dos chineses. Pimentelchegou inclusive a declarar que Pequim era como umaaldeia portuguesa pobre: enlameada, sem passeios(haviam sido removidos pelos tártaros) e composta decasas baixas e de fraca construção.58 O relato deMontanus, magnificamente ilustrado e editado por OlfertDapper, com a inclusão de vastas informações recolhidasem fontes anteriores, é igualmente essencial, sobretudono que diz respeito à cultura chinesa do suborno, àidolatria e à superstição, e à tortura e justiça brutal. Umadas consequências desse volume enorme foi a avaliaçãodo conhecimento chinês, tendo fixado a visão europeiado Império Médio durante os séculos que se seguiram:Do conhecimento chinês só podemos falar sombriamente, pois entre osseus autores não encontramos um Platão, um Aristóteles ou outrosfilósofos que tenham mantido ordem ou método nos seus escritos; alémdisso, não citam artes liberais, nem outras artes (salvo as que têm comoobjetivo o bem-estar do Estado), e, tal como testemunhado por Martinus,os chineses ficam aquém dos europeus em muitas coisasexperimentais.59Por outro lado, Montanus reconheceu a superioridadeda medicina chinesa, que considerava a prática europeiada sangria das veias um grave erro. Declarou que oschineses eram superlativos na química, bem como nasartes e nos ofícios. Montanus frisou a invenção doprocesso de impressão e da pólvora por parte doschineses. Também elogiou a agronomia, o cultivo dasterras e a construção de canais. No entanto, Montanusconsiderava os chineses inferiores nas artes da pintura(não usavam sombras e não misturavam as cores comóleo) e da escultura (não havia regra para a medição daspartes do corpo). A base para a visão matizada (eestereotipada) da China estabeleceu-se nesse período.9. EuropeusEUROPEUS DO SULQuando Mendoza descreveu a cor da pele doschineses, comparou-os com os europeus e os norte-africanos: os da província de Cantão (no sul) eramcastanhos como os mouros, mas os das áreas maisinteriores eram como os alemães, italianos e espanhóis— brancos e rosados, mas com tendência para umacompleição trigueira.1 O autor poderia estar se referindoà compleição um pouco mais escura dos espanhóis, ou àvariação de tom de branco e de cor-de-rosa encontradaentre a população europeia. A ambiguidade foi dissipadapor um viajante holandês já mencionado aqui:Linschoten. Ele observou que os que viviam na costa,perto de Macau e de Cantão, tinham pele escura, comoos mouros “brancos” da África e da Berbéria, e até certoponto os espanhóis, ao passo que os do interior do paíseram como os holandeses e os alemães (ou seja,brancos).2 A comparação inspirava-se nos estereótiposétnicos europeus internos, baseados, em parte, na cor dapele. John Evelyn (1620-1706), por exemplo, comentouno seu diário, em 30 de maio de 1662, sobre a rainhaCatarina de Bragança e as suas aias: “A rainha chegoucom um acompanhamento de damas portuguesas nassuas verdugadas, saias monstruosas, com feiçõesazeitonadas e desagradáveis”.3 Curiosamente, GinésPérez de Hita, que escreveu Historia de los bandos de losZegríes y Abencerrajes, a história da guerra civil queprecedeu a queda de Granada, descreveu a cor da peledos mouros aristocráticos como trigueira, de um negroesverdeado (moreno ou verdinegro).4 Mas ascaracterísticas das damas de companhia da rainhaCatarina, com a sua moda desatualizada, provocaramoutros comentários. Escrevendo poucos dias antes deEvelyn (a 25 de maio de 1662), Samuel Pepys apontou adesilusão inglesa com as jovens portuguesas. Comentouque vira algumas delas na Triumph Tavern e, embora nãodissesse nada acerca da compleição, acrescentou algoimportante: “Não são atraentes e as verdugadas sãovestes estranhas. […] Não vejo nelas nada de agradável.Vejo que já aprenderam a beijar e a olhar livrementepara todo lado e acredito que em breve esquecerão aprática de reclusão do seu país”.5 Pepys introduziaaquiuma ideia crucial sobre as mulheres portuguesas: a suasuposta reclusão. É óbvio o paralelo estabelecido com oisolamento das muçulmanas observado por muitosviajantes em diferentes locais.A influência muçulmana na Península Ibéricaprovavelmente foi mobilizada de forma implícita nareferência à compleição escura da população e à supostareclusão das mulheres. Mas isso não é tudo: após a(re)conquista cristã da área, a influência judaica seria osegundo elemento do preconceito étnico dos europeussetentrionais contra os povos ibéricos. Os mercadoresportugueses de origem judaica eram chamados gente danação na Península Ibérica, algo relevante, pois a palavra“nação”, à época na região, era usada para se referir àcomunidade judaica. Numa reviravolta irônica, no norteda Europa os portugueses, como povo, eram chamadosjudeus desde o século XVI, provavelmente pelo fato de amaior parte dos mercadores ibéricos que operavam nazona ser de ascendência judaica. O estigma internocontra os cristãos convertidos de origem judaica foiinvertido e transformado num estigma externo contra osportugueses. Mas devemos abordar seriamente opreconceito e a segregação internos contra osmuçulmanos e os judeus ibéricos que haviam seconvertido ao cristianismo.MOURISCOSDurante a (re)conquista cristã da Península Ibérica, osmuçulmanos haviam sido despojados das suaspropriedades e da maior parte dos seus direitos. Otratamento a que foram submetidos depois da queda deGranada, em 1492, não foi muito diferente do verificadoem derrotas anteriores, apesar das condições moderadaspara a rendição impostas pelos cristãos: a religião, oshábitos e as leis dos muçulmanos seriam respeitados, e amaior parte da propriedade ficaria incólume. A realidadeseria diferente: os nobres cristãos que haviamparticipado da conquista receberam os tradicionaisrepartimientos — concessões na forma de territórios(señorios) onde cobrariam rendas e impostos; osconquistadores menores receberiam rendas de aldeias,paróquias, conventos e igrejas resultantes daexpropriação e da (re)consagração de mesquitas. Ostatus civil dos muçulmanos não era radicalmentediferente do status dos nativos americanos após aconquista: tornaram-se vassalos inferiores. A crescentepressão religiosa e política levou as famílias maisabastadas a vender as propriedades e a migrar para oNorte da África. Os que permaneceram sofreram umdeclínio devido à seguinte sequência de acontecimentos.Em 1498, a cidade de Granada foi formalmente divididaem duas: uma parte para os cristãos e outra para osmuçulmanos, em consonância com as regras medievaisde segregação espacial. Em 1499, o arcebispo de Toledo,Francisco Jiménez de Cisneros, lançou uma violentacampanha de conversão em massa. Em 1500 e 1501, acampanha levou a motins muçulmanos em Alpujarra,Granada, Ronda e Almería, servindo como pretexto paraa suspensão formal das condições de rendição acordadaspelos reis católicos. Em 1501 e 1502, decretos geraisimpuseram a conversão religiosa em Granada e em todosos territórios de Castela. Após a conversão violenta, osmuçulmanos foram designados como mouriscos, umaclassificação que pretendia acentuar a sua anteriorcondição de mouros e apontar para as suas crençasislâmicas tradicionais. Era uma forma de impedir aintegração dos recém-convertidos na comunidadecatólica e de definir uma categoria de indivíduos cujosuposto legado de sangue lhes concedia os mesmosatributos que os dos antepassados.Nas décadas seguintes assistiu-se ao desenrolar de umprojeto que tinha em vista uma sociedade cristãhomogênea, embora as elites mouriscas tivessemconseguido manter um certo poder de negociação quelhes permitiu obter a suspensão das leis concebidas paracriar tal sociedade ou um atraso na sua implementação.Em 1508 estabeleceu-se um prazo-limite de seis anospara a abolição dos “costumes muçulmanos”, mas foialvo de sucessivas prorrogações. Em 1516 deu-se ofracasso de uma primeira tentativa de proibir o uso dalíngua árabe. Em 1521-3, as Germanias, a revolta emValência, opuseram a nobreza possuidora de terras(apoiada pelos vassalos muçulmanos) à populaçãourbana de cristãos-velhos. O resultado foi uma violentaconversão em massa de muçulmanos. Em 1526, a línguaárabe, além do vestuário e dos banhos tradicionais, foiproibida em Granada, mas a sua implementação foi maisuma vez adiada após o pagamento de 80 mil ducados.Nesse mesmo ano, duas outras decisões revelaram-semuito mais eficazes: Carlos V decidiu abolir o cultoislâmico nos territórios da coroa de Aragão (quecompreendia os reinos de Aragão e Valência, além doprincipado da Catalunha) e a Inquisição decidiu transferiro tribunal distrital de Jaén para Granada. Dois anosdepois, a proibição da língua árabe em Valência falhou.Foi necessária outra geração, e a mudança da culturapolítica central introduzida pelo reinado de Filipe II, paraque se assistisse a mais uma escalada de proibições, nadécada de 1560. Essas proibições foram seguidas poruma implementação determinada, que levou à revolta:em 1560, os mouriscos foram proibidos de ter escravosmouros e negros; a lei de 1553, que proibia a posse dearmas de fogo pelos mouriscos, foi finalmenteimplementada, e em 1563, em Aragão, bem como em1565, em Granada, as casas mouriscas foram revistadasem busca de armas proibidas; em 1564, as cortes deValência ordenaram que se queimassem livros escritosem árabe; em 1565 foi lançado um vasto inquérito aostítulos de propriedade na região de Granada que acaboucom muitos mouriscos multados ou com as propriedadesconfiscadas em favor do rei ou do domínio público; e em1566 o sínodo de Granada lançou um rigoroso inquéritoreligioso sobre as crenças dos mouriscos. Em 1567 foramimplementadas as decisões de 1526 que proibiam a fala,a leitura e a escrita do árabe: todos os livros em árabeforam controlados e muitos contratos nessa língua foramanulados. As vestes tradicionais muçulmanas, as festas eos feriados muçulmanos, além dos nomes muçulmanos,foram proibidos. Os banhos públicos muçulmanos foramdestruídos.6Toda essa repressão política e cultural desencadeouuma revolta em 1568, nas Alpujarras (a regiãomontanhosa de Granada), que se espalhou tanto pelointerior da província como pela zona costeira. Oassassinato imediato de dezenas de padres e oestabelecimento público do islã indicavam que a religiãoera o grande instrumento de revolta. A resistência dapopulação mourisca foi extraordinária, sendo as forçascristãs locais incapazes de resolver o problema. Filipe IIfoi obrigado a recrutar um exército e a pedir ao meio-irmão, Don Juan da Áustria, que o comandasse. Foramnecessários quase dois anos para esmagar a revolta,com atrocidades imensas cometidas de ambos os lados.Cerca de 30 mil pessoas morreram nessa guerra, mais de10% da população da região. Cerca de 2 mil mouriscosderrotados foram vendidos como escravos, mas a maiorparte da população mourisca (entre 80 mil e 100 mil) foideportada para Castela e dividida em pequenascomunidades para impedir futuras rebeliões. O processode deportação, que coincidiu com um invernoparticularmente rigoroso e uma epidemia de febretifoide, teve como resultado uma elevada taxa demortalidade: provavelmente 40% dos deportadosmorreram durante a viagem. A guerra, a repressão, aexpropriação, a deportação, a morte e o desalojamentonão conseguiram a subordinação e a integração dosmouriscos.Esses acontecimentos fizeram com que o islã setornasse ainda mais arraigado em muitas comunidades,reforçando as convicções dos muçulmanos quanto aosmales do cristianismo. Do lado dos cristãos-velhos, arevolta deixou no ar um receio duradouro de possíveismotins em Valência e Aragão, além da convicção de queos mouriscos não poderiam ser assimilados. A práticacomum da taqiyya, o princípio muçulmano segundoo comércio de escravos, a escravidão e aresistência nativa; o caráter único da experiência colonialamericana será comparado à presença europeia na Ásia.Uma vez que a escravidão moldou de forma tão profundaas sociedades coloniais americanas, analisarei oabolicionismo, o seu possível impacto no conceito dedireitos humanos em finais do século XVIII e a sua ligaçãocom os preconceitos relacionados com a ascendência.A parte IV analisa as teorias das raças, além do seuimpacto nas sociedades e nas políticas dos séculos XVIII eXIX. Essa seção está necessariamente ligada à históriadas ideias e à história da ciência; são discutidas asprincipais características das teorias das raças, de CarlLinnaeus (Lineu) a Houston Stewart Chamberlain.Destaco a primeira fase da classificação de variedadesde seres humanos revelada pelos trabalhos de Georges-Louis Leclerc de Buffon, Immanuel Kant, Petrus Camper,Johann Friedrich Blumenbach, Georges Cuvier, JamesCowles Prichard e Alexander von Humboldt. O foco serãoas diferentes percepções e o significado dos debatesessenciais em que se tornaram óbvias a instabilidade dastendências conceituais, bem como as dúvidas referentesà definição de limites entre raças. O estudo do racialismocientífico de meados do século XIX permite ver a ligaçãoentre as formas de classificação e as contendas políticas— no caso, a crescente tensão entre o Norte e o Sul dosEstados Unidos, expressa pelas políticas opostas de sololivre e escravagista, que levariam à guerra civil.Especificamente através de Charles Darwin, mostrareicomo o conceito de evolução tornou obsoleto o confrontoentre monogenistas (defensores da criação única) epoligenistas (defensores de múltiplas criações), emboratenha sido convertido de imediato num sistema de ideiasacerca da evolução social e numa visão hierárquica dasdiferentes fases da humanidade.A parte V trata do desenvolvimento das políticas raciaisem países específicos a partir de finais do século XIX. Olevantamento de políticas de exclusão e de extermínioimplementadas na Europa sob o Império Otomano e aAlemanha nazista permitirá uma reflexão sobre oimpacto do nacionalismo e sua fusão com as noções deraça, que se revelou letal nesses contextos. Analisareitambém o ressurgimento em grande escala dos trabalhosforçados e da escravidão na Alemanha nazista e na UniãoSoviética da década de 1930, bem como a deportação depopulações inteiras. O último capítulo vai centrar-se nascomparações. Abordará as formas de racismo na Europano pós-Segunda Guerra Mundial, as políticas desegregação nos Estados Unidos até a campanha pelosdireitos civis, os atos de genocídio contra os hererós, naNamíbia, em 1904, e os tútsis, em Ruanda, em 1994,além da ascensão e queda do apartheid na África do Sul.Vou concluir analisando o fenômeno prolongado dopreconceito relativo à ascendência étnica combinadocom ações discriminatórias em três países asiáticos quesó foram afetados de forma significativa pela expansãoeuropeia no século XIX: China, Japão e Índia.Este livro reconstitui os preconceitos em torno daascendência étnica porque eles proporcionam o contextopara o surgimento das ações racistas. Ao analisar autoresespecíficos, não pretendo sugerir que fossemnecessariamente racistas. Em muitos casos, dedicaram-se à estereotipagem, debateram preconceitos ouintroduziram complexidade nas percepções dasvariedades entre os seres humanos; em outros casos,envolveram-se em teorias das raças, mas não em açõesdiscriminatórias. Isso explica o motivo por que tenteimanter um equilíbrio entre a análise dos preconceitosétnicos e a da ação discriminatória; aqueles eramclaramente mais fluidos e presentes do que esta, mas adiscriminação não poderia ser implementada sem umcontexto de preconceitos.Os problemas associados à migração em larga escala,à integração das minorias e às relações entre civilizaçõesnão estão de todo solucionados no nosso mundo atual.Como disse Marc Bloch, temos de estudar o passado paracompreendermos o presente e prepararmos o futuro.27 Aminha esperança é de que esta análise histórica rigorosapossa contribuir para o fim da história do racismo, aquestão central deste livro.Parte I As CruzadasEntre finais do século XI e finais do século XIII, asCruzadas proporcionaram um contato renovado eintensivo entre a Europa Ocidental e o Oriente Médio.Implicaram a emigração de cerca de 200 mil pessoas doOcidente para o Oriente, promoveram o comércio noMediterrâneo e produziram trocas políticas e confrontosmilitares entre as potências muçulmanas e cristãs, tantoeuropeias como bizantinas. Com esse deslocamentohumano em massa, entremeado de guerras, aidentificação religiosa e étnica tornou-se essencial para asobrevivência diária. Tipos físicos, modos de vestir e/oupenteados associados a crenças religiosas tornaram-seos critérios óbvios para a identificação, o primeiro passona avaliação dos diferentes povos. Num mundo perigosoe em constante mudança, os estereótipos visuaisserviam para identificar ameaças e para ajudar osindivíduos a se sentirem seguros. A projeção decaracterísticas psicológicas permanentes em diferentespovos e seus descendentes fazia parte do processo decriação de alianças e de definição de inimigos.Assim, as Cruzadas estabeleceram as condições para arenovação dos preconceitos étnicos em contexto deguerra. No entanto, algumas formas de identificação, eaté mesmo certos estereótipos primários, tinham já umalonga história. As Cruzadas adaptaram pressupostosétnicos desenvolvidos nos diferentes contextos daAntiguidade Clássica, das invasões bárbaras e daexpansão muçulmana. Portanto, esta parte do livrocomeça com uma visão resumida e necessariamenteesquemática da história dos preconceitos étnicos paraevitar a habitual armadilha de encararmos as Cruzadasdentro da configuração única e específica de uma visãoétnico-religiosa. Veremos as percepções interétnicas nocontexto da (re)conquista cristã da Sicília, da PenínsulaIbérica e do Oriente Médio. Regressaremos então àEuropa, para compreendermos a influência dos poderesespiritual e político — a Igreja católica e o Sacro ImpérioRomano — sobre os preconceitos étnicos, poderes queviam os seus objetivos universais serem desafiados pelacriação de Estados feudais e pelas constantes políticasfragmentárias. A assimilação das periferias políticas ereligiosas será um importante tema de estudo nestescapítulos. Por fim, abordaremos antigas tipologias dosseres humanos, além dos diferentes modelos dediscriminação e de segregação praticados durante aIdade Média.1. Das percepções gregas àsmuçulmanasCONCEITOS ÉTNICOS E CLÁSSICOSOs gregos e romanos letrados acreditavam que ascaracterísticas físicas e mentais dos seres humanos erammoldadas por elementos externos. A teoria ambientaldesempenhava um papel importante na classificação dospovos. A forma do corpo, a força ou a debilidade física, adureza ou a gentileza de caráter, a inteligência arguta oulenta, a independência de espírito ou a atitude submissaeram, em geral, associadas ao clima e à geografia. Osdiferentes povos deveriam refletir as condições da terraonde haviam nascido. A posição geográfica da Grécia ede Roma — na zona temperada, entre o Norte frio e o Sulquente, e, no caso dos gregos, entre o Oriente e oOcidente (uma importante separação da Ásia“arrogante”, “corrupta” e “servil”) — permitia que osseus povos se outorgassem as virtudes necessárias paraprojetos imperiais. A essa visão acrescentava-se a ideiade oposição entre os habitantes das montanhas(considerados grosseiros e antissociais) e os dasplanícies (urbanos e sofisticados), uma abordagem queintroduziu a manifestação de comportamentosconflituosos mesmo entre vizinhos. Essa teoria viria a sercomplicada pelas atitudes grega e romana em relaçãoaos diferentes modosoqual em condições repressivas o crente pode simular aaceitação de outra fé, alimentou a resistência, masacabou por disseminar a ideia entre os cristãos dadissimulação permanente dos mouriscos. Como é óbvio,não devemos superestimar a generalização dessa divisãoentre as comunidades: houve uma minoria significativade mouriscos que se integrou na sociedade cristã maisvasta, abandonando a sua religião anterior; e umaminoria reduzida de cristãos-velhos — como o primeiroarcebispo de Granada, por exemplo, Hernando deTalavera — que interagia com os mouriscos e era contraa conversão violenta, dando preferência aos esforçosmoderados de evangelização. Também não podemosprojetar uma visão homogênea das comunidadesmouriscas em toda a Espanha, já que se verificavamdiferenças enormes entre as comunidades relativamenteautônomas de Castela e Valência e as comunidades maisintegradas da Catalunha, representando Aragão um casointermediário. No entanto, a maioria dos elementos decada comunidade tinha convicções arraigadas. Osmuçulmanos estavam convencidos da superioridade dasua religião, que se baseava num deus único e emprincípios simples de culto. Rejeitavam a ideia daTrindade, a mediação dos santos, o uso de imagens(considerado idolatria), a virgindade de Maria, a naturezadivina de Cristo (considerado o profeta que antecederaMaomé) e a possível encarnação de Deus. Quanto aoscristãos, eles criticavam as origens supostamente vis dosárabes, descendentes de Ismael, filho ilegítimo deAbraão e da sua escrava Agar; o “falso” profeta Maomé,que legitimara a poligamia; e a natureza “sensual” doislã, que imaginava uma vida depois da morte baseadanos prazeres da carne.7Figura 9.1. Embarque de mouriscos no porto de Vinaroz, 1612-3,óleo sobre tela de Pere Oromig e Francisco Peralta, 110 × 173cm. Valência, Acervo Bancaja.As décadas que se seguiram à guerra das Alpujarrasassistiram a um enorme aumento da repressãoinquisitorial, lançada contra os mouriscos desde a décadade 1520, mas que se intensificou após a década de 1560com a nova cultura política, mais centralizada, queacentuava a homogeneidade religiosa.8 A guerra dasAlpujarras servira de pretexto para o fim do apoiosenhorial aos mouriscos e para ações contra as elites dacomunidade que até então haviam estado relativamenteprotegidas. Essas elites mouriscas foram o núcleo daresistência cultural e religiosa, tal como revelado pormuitos julgamentos. A intervenção inquisitorial sebeneficiou da crescente fragmentação dos clãsmouriscos e das divisões geracionais no seu seio. Arepressão inquisitorial, por sua vez, contribuiu para essafragmentação, mesmo com as comunidades mouriscasrevelando uma coesão mais forte do que a dascomunidades de judeus convertidos.No entanto, na repressão aos mouriscos, a Inquisiçãonunca chegou aos mesmos níveis de violênciaempregados no tratamento dos judeus convertidos —nem nos valores absolutos nem na severidade doscastigos (as taxas de excomunhão e de execução forambem mais elevadas entre os judeus convertidos). Éverdade que as medidas repressivas contra os judeusconvertidos atingiram o auge entre as décadas de 1480 ede 1520, enquanto as empregadas contra os mouriscosforam implementadas entre a de 1560 e o início doséculo XVII. Ainda assim, a comparação entre o queaconteceu com as vítimas da Inquisição nessas duasgrandes comunidades étnicas mostra uma abordagemmenos violenta em relação aos mouriscos, definidaformalmente através de instruções concretas emitidaspelos inquisidores Manrique e Valdés. Houve dois motivospara isso: uma vasta maioria dos mouriscos era detrabalhadores agrícolas eficientes ou de artesãosespecializados dos setores têxtil, da cerâmica e da seda,não estando sempre em concorrência direta com oscristãos-velhos; e os mouriscos contavam com o apoiodos reinos muçulmanos do Norte da África e do ImpérioOtomano — fato que desempenhou um papel essencialnas suas relações com a comunidade de cristãos-velhos.A política internacional, no caso a política mediterrânica,contribuiu bastante para a forma de tratamento dosmouriscos, ao passo que os judeus convertidos espanhóisestavam totalmente à mercê das autoridades. A políticainternacional também contribuiu de um modo essencialpara as consequências que advieram das medidastomadas contra os mouriscos: muitos migraram para oNorte da África (200 mil entre 1492 e 1568, só da regiãode Granada); e um número significativo manteve umacomunicação constante com as respectivas comunidadesno Norte da África, ajudou os corsários nas suasincursões na costa espanhola e pediu apoio militar emcaso de revolta.Em 1609-10, Filipe III decidiu expulsar os mouriscos daEspanha, primeiro de Valência, depois dos reinos deCastela e de Aragão, e por fim do principado daCatalunha. Os dois motivos apontados nos decretos reaisforam a constante apostasia dos muçulmanosconvertidos e a ameaça permanente à segurança doreino, devido às supostas conspirações com príncipesmuçulmanos, especialmente os turcos, contra o reicatólico. A expulsão envolveu 300 mil pessoas: cerca de125 mil de Valência, 100 mil de Castela, e 75 mil deAragão e da Catalunha.9 Não há dados sobre os quepereceram durante a viagem até a costa, emboraexistam indícios de roubos organizados, assassinatos eescravização levada a cabo por bandos de cristãos-velhos. O sofrimento dos mouriscos não terminou nosportos: viram-se forçados a aguardar por transporte,pagaram caro pela viagem e por vezes foram obrigados adesembarcar em locais inconvenientes, longe dos portoscentrais. Em várias ocasiões, as autoridades muçulmanaslocais não os receberam bem. Ainda assim, a decisão deexpulsar essa minoria significativa implicou umaformidável operação diplomática e militar — primeiro,Filipe III, ou melhor, o seu Conselho de Estado,estabeleceu tratados de paz (ou tréguas) com França,Inglaterra e Holanda, após o que o Conselho definiu umaestrutura militar para a expulsão, com o objetivo deevitar motins. Foram requisitadas centenas de naviospara a operação, o que exigiu um enorme investimentofinanceiro. O rei também decidiu usar as terras deixadasvagas pelos mouriscos para compensar a nobreza local,que perdera uma soma considerável em rendas.É preciso não esquecer que foi a segunda exclusão deuma grande minoria, tendo a primeira ocorrido em 1492,quando os reis católicos decidiram expulsar os judeusdos seus territórios. Porém, existe uma diferençaimportante entre as duas expulsões: os mouriscoshaviam sido batizados violentamente e eramconsiderados cristãos. A sua expulsão foi uma admissãoprofunda de fracasso, após séculos de pressão e esforços(mínimos) de evangelização. Ironicamente, tal decisãopoderia ter sido encarada como uma vitória daresistência muçulmana persistente: os crentes foramenfim enviados para o Norte da África, onde poderiamviver na sua fé. Para os cristãos-velhos, era um castigopela teimosia, já que os mouriscos deixavam de poderviver no “paraíso” que era a Península Ibérica.Fernand Braudel continua estabelecendo os termos dodebate acerca da expulsão: a Espanha livrou-se de umaminoria produtiva por ser impossível assimilá-la.10Segundo ele, a decisão não foi baseada no ódio racial,mas sim no ódio religioso e civilizacional. SamuelHuntington adotou essa perspectiva na sua visãoquestionável do choque de civilizações.11 A contribuiçãode Braudel representava uma abordagem essencialistados cristãos e dos muçulmanos, ignorando os matizessociais e religiosos, bem como as diferentesconsequências políticas possíveis, como se a expulsãofosse o resultado inevitável de uma rejeição coletiva.Pesquisas recentes revelam casos bem-sucedidos detotal integração mourisca, em especial o que teve lugarem Villarubia de los Ojos, perto de Ciudad Real, emCastela-La Mancha.12 Já indiqueide vida — por exemplo, ocomportamento nômade — e às diferentes formas degoverno — acima de tudo o despotismo no Oriente,considerado promotor de dependência e fraqueza.1A essa teoria ambiental podia juntar-se a noção decaracterísticas hereditárias adquiridas pelos sereshumanos. Os gregos e os romanos projetaram em outrospovos a discussão sobre a linhagem e a autoctoniadesenvolvida pelos atenienses — que defendiam terocupado desde sempre o mesmo território, sendo, porisso mesmo, de ascendência pura —, moldando assimsuas atitudes.2 O conceito de ascendência tornou-seessencial em dois aspectos: como ligação entre sangue esolo, o que reforçava a percepção de uma identidadebaseada na aparência, na língua e nos costumes para acriação de uma definição essencial dos povos (gentes); ecomo garantia da reprodução, dentro de um povo, dascaracterísticas moldadas pelo ambiente original. Issoqueria dizer que os descendentes dos sírios, porexemplo, teriam em si as características físicas e mentaisbásicas dos antepassados, mesmo nascendo noestrangeiro. O preconceito romano contra a maior partedos povos orientais, considerados escravos naturais, eradirigido não só a esses indivíduos quando no seuambiente natural, mas também aos migrantes queviviam em outras províncias ou no centro do império, emRoma. De um modo geral, as supostas ligações entreambiente e hereditariedade, ou entre característicasfísicas e mentais, implicavam a rejeição de variaçãoindividual ou geracional. As possibilidades de variaçãoeram coletivas e tendiam para o declínio: a ideia deascendência, bem explícita na ostentação ateniense deuma linhagem pura, estava associada ao preconceitocontra os indivíduos de origem mista. Considerava-seque a mestiçagem criava seres humanos inferiores,enfraquecendo as qualidades positivas originais. Damesma forma, a alteração do ambiente só poderia levarà deterioração dos seres humanos envolvidos erespectivos descendentes.Mas a aplicação desses critérios era bastante vaga econtraditória. Encontramos menções elogiosas aocorajoso guerreiro germânico, gaulês ou hispânico; comefeito, os germânicos eram considerados uma ameaça,pois nunca haviam sido subjugados, podendo assimmanter intactas as qualidades guerreiras. Por outro lado,acreditava-se que os germânicos detestavam a paz e otrabalho duro, ao passo que os gauleses eramdesprezados como ébrios, instáveis e indisciplinados,embora fossem tidos como bons oradores. No OrienteMédio, a ideia de escravidão natural aplicava-se a váriospovos, mas não aos partos, que nunca haviam sidoconquistados pelos romanos, nem aos judeus, cujasrebeliões sucessivas os tornavam um caso à parte. Avetusta civilização egípcia era respeitada, mas seu povoera considerado imoral e bizarro devido ao cultozoomórfico. A inteligência atribuída aos fenícios e aoscartagineses andava de mãos dadas com a instabilidade,enquanto os sírios eram vistos como afeminados,pervertidos e supersticiosos. Os druidas, entre outros,eram acusados de antropofagia e de promover sacrifícioshumanos, mas o preconceito contra os judeus baseava-se na ideia de comportamento antissocial e de umareligião excludente. A acusação de usura, principalatividade antissocial atribuída aos judeus na IdadeMédia, não surge nas fontes gregas e romanas,parecendo ter sido cunhada apenas no século XII.A natureza volúvel do preconceito manifesta-se nasheranças grega e romana, já que as críticas gregas aospovos orientais eram usadas contra eles próprios: osromanos consideravam os gregos eruditos e artísticos,mas ao mesmo tempo arrogantes, afeminados,corruptos, inconstantes e desprovidos de seriedade. Acomparação de seres humanos (e povos) a animais eraoutra característica das opiniões preconcebidas dosromanos. O preconceito contra os africanos negros combase na cor já emergira, uma vez que tais povos eramconsiderados queimados pelo sol — a etimologia gregade “etíope” —, consequência nefasta das condiçõesclimatéricas adversas do extremo sul. A questãoimportante a ter em conta é o fato de o preconceito nomundo grego e romano estar já associado à noção delinhagem e ascendência.3 Porém, não existem provas deuma discriminação sistemática contra etnias específicas;pelo contrário, os romanos eram relativamentegenerosos na atribuição de cidadania.O problema é compreender como essa série depreconceitos instáveis e volúveis contra outros povos,criada em parte como resposta às necessidades dascivilizações grega e romana durante os seus processosde expansão, foi afetada pelo desenvolvimento dacristianização, bem como pelo declínio e colapso doImpério Romano na Europa Ocidental. O conceito deconversão universal estabelecido pela Igreja cristãprimeva perturbou significativamente a identificaçãoanterior dos povos de acordo com o território e com areligião. Apesar de serem reconhecidos como uma seitado povo judeu, o problema inicial dos cristãos serelaciona ao fato de não serem vistos como parte de umatradição antiga com raízes históricas. Contudo, após trêsséculos de repressão e de resistência, a novidade deu osseus frutos. O reconhecimento do cristianismo e a suaadoção pelo imperador Constantino (321-5), seguidos daproibição do paganismo por Teodósio (392), assinalarama identificação da mensagem multiétnica cristã com aideologia imperial de domínio universal, bem como atransformação da Igreja de comunidade perseguida emreligião dominante apoiada pelo poder político.O IMPACTO DOS BÁRBAROS E DOS MUÇULMANOSA invasão da Europa Ocidental por sucessivos povosbárbaros transformou as categorias étnicas: as novasrealidades obrigaram a novas designações de povos,como os godos, os ostrogodos, os lombardos, osvisigodos, os suevos, os vândalos, os francos e ossaxões. Esse período de intensa migração levou aosurgimento de novas etnias com origem no Oriente, bemcomo ao constante reagrupamento de povos emconfederações multiétnicas com um nome comum.4 Nosúltimos vinte anos, a questão das identidades múltiplasou em alteração tornou-se objeto de estudo.5 Atransferência do eixo do que restava do Império Romanopara a Ásia Menor e para o Oriente Médio tornouproblemática a perpetuação dos preconceitos contra ossírios e os egípcios.6 A conversão (e reconversão a partirdo arianismo) dos reinos bárbaros, essencialmente feitaentre os séculos V e VIII, definiu um novo conjunto deideias sobre etnia, ligada a unidades políticas maisreduzidas no seio de uma religião universal. Em virtudedesses movimentos, os preconceitos antes descritosperderam temporariamente a sua relevância.Com o tempo, à medida que as condições sociais epolíticas foram se alterando pela Europa medieval, e coma recuperação de um número significativo de textosgregos e romanos, algumas das opiniões sobre outrospovos neles inscritas foram reinterpretadas e adaptadasàs novas realidades históricas. Um exemplo de um novopreconceito, cuja percepção medieval original semanteve até os nossos dias, chega-nos com os termosperenes “vândalo” e “vandalismo”, que significam“crueldade”, “ignorância” e “destruição irracional”, comreferência ao povo bárbaro que entre 439 e 533estabeleceu um reino no Norte da África, perto deCartago (futura Ifríquia).7 Enquanto o sistema clássico depreconceitos aplicado a povos específicos perdeu emparte seu significado, o seu núcleo de teoria ambiental ede características hereditárias, tal como veremos,revelou-se particularmente resistente. Com essas novascondições de transição bárbara, a sobrevivência do povojudeu — apesar das perseguições, das conversõesforçadas e da segregação — veio a trazer novos critériospara a definição dos grupos étnicos com base nareligião.8O ambiente político, religioso e étnico que sedesenvolveu na zona mediterrânica após as invasõesbárbaras alterou-se radicalmente coma expansãoislâmica, a partir do século VII. A maior parte do OrienteMédio e do Norte da África, as ilhas mais importantes doMediterrâneo e quase toda a Península Ibérica foramconquistadas num curto espaço de tempo, reduzindoacentuadamente o alcance do Império Bizantino eeliminando o reino visigodo cristão da Hispânia. O islãtrouxe consigo uma nova mensagem de universalismo,que reclamava o legado das religiões judaica e cristã econsiderava o profeta Maomé como mensageiro darevelação final e completa dada por Deus. A imposição,por volta do ano 700, do árabe como línguaadministrativa pelo califa omíada ‘Abd al-Malik reforçou ostatus da língua sagrada do Alcorão como elementounificador dos países islâmicos (tal como acontecera como latim na Europa Ocidental e com o grego no ImpérioBizantino), sublinhando a superioridade dos árabes comoguerreiros e administradores que haviam assimilado ossírios e os egípcios durante a sua expansão. No entanto,o pálavi (persa) manteve o status de língua erudita, emespecial após a transferência da capital do califado, porAl-Mansur, em 762, de Damasco para Bagdá. O seu usoviria a se disseminar pela Índia e pela Ásia Menor — sinaldo importante papel cultural que os iranianosdesempenharam no mundo muçulmano, acima de tudodepois da difusão do xiismo no Irã a partir de 945.Podemos observar o mesmo fenômeno mais tarde comos turcos, cuja língua se disseminou com a expansão dosseljúcidas (entre os séculos XI e XIII) e dos otomanos (apartir do século XIV).9 Por outro lado, a presençasignificativa dos berberes islamizados no Norte da África,na Espanha e na Sicília nunca teve grande expressãolinguística, mesmo com o governo dos almorávidas(1061-3) e dos almóadas (1147-1269). A expansãoislâmica multilingue e multiétnica, com a conversão depovos nômades e seminômades, como os turcos,integrou novas etnias em grandes áreas da Eurásia e doNorte da África, criando um novo equilíbrio de forçasentre os povos e gerando novas percepções dos bárbaros— conceito então aplicado aos seljúcidas turcos, aosberberes, aos africanos negros e, em última análise, aoscruzados.10A expansão islâmica levou à recuperação de velhostextos gregos e romanos, o que ajudou a moldar umavisão geográfica e étnica adaptada às necessidades deuma nova civilização centrada no Oriente Médio e que seestendia desde a Península Ibérica até a Ásia Central.Apesar de um processo de conversão fácil e do conceitoigualitário da comunidade de crentes, eram visíveis osnovos preconceitos na classificação das províncias(árabes e não árabes), bem como nas divisõesadministrativas e nas cidades, além da definição dasprincipais características dos povos. Logo no século X, ogeógrafo Al-Muqaddasī comentava o refinamento e adelicadeza do povo do Iraque, opostos às qualidadesodiosas exibidas pelos habitantes do Huzistão (hoje emdia no sudeste do Iraque), e o comportamento superiordas gentes de Sam (Síria e Palestina, onde ele nascera)quando comparado com a desumanidade e a incivilidadedos habitantes do Magreb, para não falar dalicenciosidade em Fārs, da perfídia em Rayy, da tiraniaem Nisābīn e da estupidez em Hims.11Mapa 1.1. Expansão islâmica no Oriente Médio e noMediterrâneo, 632-750. Fontes: Angus Konstam, The Historical Atlas of the Crusades.Londres: Mercury Books, 2004, pp. 10-1; Geoffrey Barraclough(Org.), The Times Atlas of World History. Londres: Times Books,1990, pp. 120-1.A visão de autores árabes posteriores que sedebruçaram sobre a geografia (Al-Khwārismī, Abū Zaydal-Balkhī, Al-Biruni e Al-Idrisi) destacava a elevadacorrespondência entre climas, estrelas e povos, adotandoa divisão clássica da Terra em quadrantes e atualizandoas descrições das principais civilizações: persa, síria,grega, romana (incluindo os francos), líbia (africana),turca e khāzar, indiana e chinesa. Representavam-seainda as competências de cada povo de formaesquemática: as capacidades técnicas e artesanais doschineses; a ciência teórica dos indianos; a herançafilosófica grega dos bizantinos; a visão ética e políticados iranianos; a capacidade bélica dos turcos; e a poesiae a religião dos árabes. A aparência física, como a cor dapele (branca, preta, castanha ou vermelha), a forma dosolhos (redondos ou amendoados) ou do nariz (comprido,largo ou achatado), o tipo de cabelo e a escassez ouabundância de pilosidades faciais, era usada paraidentificar os povos, definindo os principais estereótiposdesenvolvidos mais tarde, durante a expansão europeia.Já se contrastavam os africanos negros com o resto dahumanidade, classificando-os como selvagens,supostamente indolentes e possuidores de umainteligência inferior. Só o geógrafo Jāhiz de Baçorá (c.776-869) ofereceu uma alternativa a essa visão,elogiando a superioridade dos negros em relação aosbrancos e incluindo chineses, hindus, abissínios esudaneses naquele grupo. Também se disseminarampreconceitos contra povos específicos, algo quefrequentemente revelava a origem dos seus principaisautores: os turcos eram considerados infiéis, osbizantinos eram maus, os khāzares insolentes, os povosnegros não eram sérios, os eslavos eram covardes e osindianos, promíscuos. O único limite relevante para essesestereótipos era o fato de não parecerem basear-se naideia de herança ou de transmissão das mesmascaracterísticas ao longo das gerações.12Os judeus e os católicos designavam os povosislâmicos como sarracenos, do latim tardio saracenus,que por sua vez veio do grego sarakēnos e talvezoriginalmente do árabe šarkī (oriental) ou do aramaicosarq[iy]in, que significava habitantes do deserto.13 Mouro(moro em espanhol e italiano, moor em inglês, maure emfrancês), do latim maurus, designava o nativo daMauritânia, no Norte da África. Na Idade Média, mourosignificava não só um muçulmano, mas também umapessoa de características físicas africanas, com pele ecabelo escuros. Com o tempo, o termo “mouro” assumiuuma variedade de significados: dependendo do país,poderia significar um mulato, um cavalo ou uma égua depelagem escura e testa branca (ou cabeça escura compelagem clara), vinho misturado com água, uma criançapor batizar, um pagão, uma pessoa trabalhadora, umcurandeiro que se servia de versos do Alcorão na suaprática, uma prova num torneio a cavalo, personagensde uma peça, a representação de combates entrecristãos e muçulmanos acompanhada por música edança, um muçulmano do Sri Lanka, da Índia ou dasFilipinas, ou um tipo de macaco.14 Na Espanha e emPortugal, provérbios seculares testemunham o usogeneralizado da palavra “mouro” (e “mourisco”) para darconta de uma grande variedade de situaçõesoriginalmente definidas pelo preconceito e pelo abusoétnico, servindo como prova das referências aosfenótipos desde os mais antigos períodos da históriadesses países.2. Reconquista cristãO impacto do islamismo nas sociedades cristãs podeser destacado em três áreas: inspirou um importantependor profético na Europa Ocidental; disseminou a ideiade guerra santa; e providenciou um modelo de governobaseado na coexistência hierárquica de religiõesdiferentes. A rápida conquista islâmica de territórioscristãos (sobretudo entre 634 e 750), em que seeliminaram mais de quatrocentas dioceses no OrienteMédio e no Norte da África, estimulou a produção daliteratura apocalíptica na Europa Ocidental.1 Odesaparecimento das comunidades cristãs das regiõesonde a maior parte da reflexão teológica da Igrejaprimeva teve lugar, além do domínio islâmico daPenínsula Ibérica e da maior parte da regiãomediterrânica, teve um efeito psicológico duradouro,visível na expansão ocidental desde finais do século XIaté o século XIII.A ideia de guerra santa como dever pessoal e coletivoera um conceito estranho à tradição cristã.2 Osensinamentos de Cristo, centrados na paz e no perdão,em contraste com a exortação islâmica à guerra santa,eram o principal argumento retórico apresentado nosprimeiros textos cristãos polêmicos produzidos noOriente Médio, em Bizâncio e na Península Ibérica, e quese opunham à nova religião.3 Ao que parece, a proteçãoaos cristãos no Oriente Médio e o acesso à Terra Santaforam as únicas questões políticas em jogo no sermão dopapa Urbano II para a Primeira Cruzada, em Clermont, em1095.4 Contudo, o êxito da Primeira Cruzada e asubsequente concentração das atenções em Jerusaléminflamaram, durante os séculos seguintes, a obsessãocristã pela libertação dos seus lugares sagrados dodomínio dos infiéis. A ideia de Cruzada ganhou formagraças a esse desejo específico, alimentando-se da longabatalha entre cristãos e muçulmanos na PenínsulaIbérica, bem como do êxito dos normandos em recuperara Sicília dos muçulmanos.5 A separação das Igrejascristãs latina e grega, em 1054, também desempenhouum papel essencial na expansão latina para o OrienteMédio: esteve sempre presente durante as Cruzadas,contribuindo tanto para a motivação espiritual como parafortes críticas recíprocas.6Esses contextos internos e externos complexos, no seiodo cristianismo e em oposição ao islã, levaram àjustaposição da ideia tradicional da peregrinação comoredenção de pecados e da nova ideia de guerra devotapara o acesso cristão aos lugares sagrados. A ideia deCruzada tornou-se assim essencial para a expansãoocidental como justificação religiosa legítima para aconquista da Península Ibérica, das ilhas mediterrânicas edo Oriente Médio, a qual viria a contar com centenas demilhares de migrantes cristãos.7 No entanto, o conceitode coexistência hierárquica de diferentes religiõesinfluenciou temporariamente os novos Estados cristãosda Península Ibérica e da Sicília, bem como o reino latinode Jerusalém. A imposição de tributos às populações nãocristãs, ao lado da criação dos estatutos de servidão oude escravidão nos territórios conquistados, revelou ainfluência das práticas muçulmanas anteriores.As Cruzadas representaram assim um ponto de viradaimportante para o cristianismo, não só por darem umaexpressão ideológica a um enorme processo de expansãoe de conquista, mas também por terem dado origem anovas formas de perseguição religiosa e a novosconceitos de hierarquia étnica. As Cruzadas foramacompanhadas por uma importante remodelação depovos e etnias, de identidades individuais e coletivas,resultado das migrações, dos massacres, das mudançasde status, das inversões e criações de novas hierarquiase das conversões e reconversões em massa. A expansãodos cristãos latinos na região mediterrânica representouuma primeira alteração crucial na percepção daidentidade europeia: Jerusalém tornou-se comumentevista como o centro espiritual do mundo, apesar daposição de Roma como sede da Igreja, algo que teveimplicações nos conceitos geográficos e em suaexpressão cartográfica.8 A assimilação da ciênciaislâmica nesses campos, bem como na matemática, nanavegação náutica e na astronomia, resultou das novasnecessidades de orientação, informação sobre povos econhecimento de territórios.SICÍLIAEm 1145, o rei Rogério II da Sicília doou dois magníficossarcófagos de mármore pórfiro à catedral de Cefalu.Indicou que um deles se destinava aos seus restosmortais e o outro “à augusta memória do meu nome e àglória da própria Igreja”. Todavia, quando morreu, noveanos depois, Rogério II não foi sepultado em Cefalu: oprojeto de transformar a catedral em sepulcro dos reis daSicília malograra. A diocese fora criada pelo antipapaAnacleto II (1130-8), que controlara Roma e forareconhecido por Rogério II. Em 1139, Inocêncio IIconseguiu reunificar a Igreja e excomungou o reisiciliano. Quando, em 1150, Eugênio III concordou com areconciliação com Rogério II, Cefalu tornou-se umembaraço político. Só em 1166 a diocese viria a serreconhecida pelo papa, e o seu bispo consagrado peloarcebispo de Messina. No entanto, o bispo e o capítulo dacatedral conseguiram resistir bastante tempo paramanter os sarcófagos, bem como para cumprir a vontadefúnebre de Rogério II. Foi só em 1215 que Frederico II,neto de Rogério II, rei da Sicília e sacro imperadorromano, garantiu a remoção dos sarcófagos da catedralde Cefalu e o seu transporte para a catedral de Palermo.Frederico II escolheu o sarcófago de Rogério II para o seutúmulo e o sarcófago memorial para o pai (Henrique VI,imperador e rei da Sicília, que morreu em 1197).9Os dois sarcófagos representaram uma inovaçãoimportante na história da arte funerária, mas aquilo quenos interessa é o programa iconográfico do primeirotúmulo de Rogério II (ver figuras 2.1A e 2.1B). Adecoração da tampa é rica em símbolos imperiais eespirituais, mas é nos apoios do sarcófago queencontramos os símbolos mais expressivos do domíniosobre os povos.10 Os suportes foram entalhados comodois pares de leões virados em direções opostas e queseguram uma cabeça de cabra e outras humanas entreas garras. A onipresença do leão era um símbolo óbviode soberania: nas tradições grega e romana, o leão erasímbolo de coragem e de força, emblema do soberano,mas também da vitória, sendo usado com frequência nasmarchas triunfais.11 Esse simbolismo foi reproduzidoamplamente na Europa medieval, sendo na Sicília umelemento crucial no famoso manto real de Rogério II. Édigna de nota a dupla conotação de soberania e detriunfo transmitida pelo leão. No entanto, ainda maisfascinantes são as figuras nas garras dos leões. A cabraera um elemento-chave simbólico na tragédia grega(tragoidia significa literalmente canção de cabra). Oanimal simbolizava as forças da natureza obscuras,impetuosas, férteis e impulsivas. Era também usado emsacrifícios, sugerindo uma identificação com asmetamorfoses dos deuses. A tradição cristã reinterpretoua cabra como símbolo da impureza e de uma naturezadiabólica.12 Aqui parecem convergir duas tradições: odomínio sobre os impulsos da natureza e os elementostrágicos e sacrificiais na representação de Rogério IIcomo protetor dos cristãos.É bastante provável que as três cabeças humanasrepresentassem os povos governados por Rogério II. Porbaixo do leão virado para sudoeste (segundo a posiçãooriginal do sarcófago) estava uma cabeça barbada viradaao contrário. Essa cabeça representava os muçulmanosderrotados na Sicília, pelo pai do soberano, ou peloprojeto pessoal de Rogério II de expansão no Norte daÁfrica, que tivera início antes da doação do sarcófago.13Essa interpretação é sustentada pela tradição demarchas triunfais criada nos tempos dos romanos eperpetuada pelas potências bizantina, cristã ocidental eislâmica: os estandartes dos povos conquistados eraminvertidos ou virados ao contrário, representando a suaderrota.14 Por baixo do leão virado para sudeste estavaum rosto barbeado que poderia representar os cristãoslatinos (acima de tudo normandos) envolvidos naconquista da Sicília e do sul da Itália, e que tinham seinstalado na região, sendo reforçados por novasmigrações. O rosto humano representado por baixo doleão virado para noroeste é o mais difícil de identificar.Tem cabelo levemente encaracolado sem barba e poderiarepresentar os cristãos gregos, que já passavam por umlento processo de assimilação.O segundo sarcófago de Rogério II, o que realmente foiusado para os seus restos mortais, não era tãoesplêndido como o primeiro, tendo provavelmente sidoconstruído após a sua morte. Tanto os ícones espirituaiscomo os símbolos de soberania estão ausentes, mas osapoios são mais uma vez figurativos, compostos dequatro pares de seres humanos ajoelhados quecarregavam o sarcófago sobre os ombros. As figurashumanas, dessa vez representadas de perfil, nãoestavam entalhadas de modo tão claro como nosarcófago anterior: uma delas usava turbantee barba,numa referência clara à comunidade muçulmana; outratinha cabelo levemente encaracolado, provavelmenteuma referência à comunidade grega; temos um africanonegro com cabelo crespo; e outro homem usava gorro ebarba. As figuras restantes estavam barbeadas, entreelas um possível rosto asiático, de olhos amendoados ecabelo liso, o que reforçaria a universalidade do projetoimperial de Rogério II.15 Além das diferentes etnias, asfiguras podem representar classes sociais diversas. Noentanto, só os rostos e os toucados as distinguiam:envergavam trajes semelhantes, com capas e túnicascurtas, e estavam descalças.16Figura 2.1A. Escultura, de autordesconhecido, de um leão segurandoentre as garras uma cabeça barbadavirada ao contrário, provavelmenterepresentando muçulmanosderrotados. Catedral de Palermo,sarcófago de Frederico II(anteriormente entalhado, na décadade 1140, para Rogério II da Sicília),apoio sudoeste.Figura 2.1B. Detalhe da figura 2.1AA substituição dos leões por figuras humanas comosustentação do segundo sarcófago criava umamensagem política diferente: o domínio vertical dasoberania, simbolizado pela associação do poder políticoà conquista e à dispensa de justiça, era quase invertidono novo papel atribuído aos diferentes tipos de povos,que literalmente sustentavam o rei. É claro que seencontravam numa posição inferior, mas não estavamsob as garras de leões. O novo programa iconográficosugeria um pacto entre o rei e os seus vassalos: osdiferentes povos sob o domínio do rei teriam de ser leaise submissos (de joelhos), mas esperava-se que osoberano os protegesse.A insistência na tipologia dos povos governados porRogério II presentes no sarcófago tinha outra funçãoimportante: complementava o título de rei da Sicília, daApúlia e de Cápua, referindo-se exclusivamente aterritórios.17 Esse título contrastava, por boa razão, comos de outros governantes medievais da Europa Ocidental,referidos como reis de um povo específico: rexromanorum, rex francorum e rex anglorum.18 Osgovernantes normandos da Sicília não eram líderes deum povo mais ou menos homogêneo de um ponto devista étnico (mesmo sendo a homogeneidade sempreuma criação política, tal como no caso específico do rexromanorum). Esses soberanos governavam comunidadesmultiétnicas e estavam conscientes desse fato, assimcomo acontecia com os seus contemporâneos emCastela, Aragão e Portugal, que assumiam títulossemelhantes referentes aos territórios. Na Sicília, ogovernante era também designado — desde o início dogoverno normando, quando se usava o título de conde —“defensor de Deus e protetor da religião cristã”. Issosignificava que as diferentes comunidades étnicasgovernadas pelos reis sicilianos não tinham todas omesmo status — fato sublinhado pela imagem domuçulmano subjugado virado ao contrário no primeirosarcófago de Rogério II.A consciência de diversidade étnica representada nasesculturas por baixo dos dois sarcófagos é confirmadapor fontes escritas. As diferenças entre os povos eramvistas como físicas, religiosas e culturais (língua evestuário). Na Sicília do século XII, gregos, árabes(berberes), normandos, lombardos e judeus eramextremamente ativos, falando as suas línguas próprias(ou as que tinham assimilado ao longo do tempo) etentando preservar as suas identidades. A conquistanormanda da Sicília fez com que durante umdeterminado período a elite cristã governasse tanto umapopulação islâmica, concentrada sobretudo na parteocidental da ilha, como uma população grega,concentrada na região oriental. A posição da Sicília comocruzamento de rotas comerciais mediterrânicasproporcionara, sucessivamente, os benefícios trazidospelo domínio dos bizantinos (até o século IX, mas comuma presença militar mais prolongada na região), dosárabes (entre os séculos IX e XI) e dos normandos (cujaconquista foi relativamente rápida, entre 1061 e 1091).No continente, onde a presença islâmica antes daconquista normanda fora escassa, as culturas grega eromana haviam sido perpetuadas pelo enraizamento deum legado bizantino que só viria a ser derrotado pelosnormandos. A Sicília era um centro de comércio misto,onde se juntavam o comércio de estilo oriental de bensde luxo e o comércio de estilo ocidental de produtosagrícolas. O comércio trazia consigo um fluxo deindivíduos que expandiam a mistura étnica — porexemplo, mercadores genoveses, pisanos e venezianos.Em 1184, a maioria dos mercadores de Palermocontinuava a ser muçulmana, enquanto Messina setornara um centro das comunidades mercantes italiana egrega.19 A pirataria e o comércio escravagista levariammais berberes, gregos, eslavos, tártaros e albaneses paraa ilha, além de alguns russos, búlgaros e turcos — osquais seriam substituídos por africanos negros durante oséculo XV.20Como evoluíram as relações de poder entre osprincipais grupos étnicos e religiosos? A língua usada nosdocumentos reais conservados dá uma ideia da variaçãoda influência política das três comunidades principaisdurante um único século: nos reinados de Rogério I e deRogério II usaram-se, de igual forma, o árabe e o latim;com Guilherme I, apenas um em cada sete documentosusava o árabe; com Guilherme II, essa proporção reduziu-se para um em cada dez; e, chegado o breve reinado deTancredo, todos os documentos reais eram redigidos emlatim.21 Em 1340, o árabe já praticamente desapareceraentre as comunidades cristãs da Sicília e, a partir deentão, os únicos com conhecimentos para o lerem,escreverem ou falarem eram os judeus e os escravosnorte-africanos.22 Os judeus constituíam uma pequenacomunidade urbana cujo número aumentou com asmigrações da Península Ibérica provocadas pelarenovada intolerância religiosa que acompanhou ainvasão dos almóadas, vindos do Norte da África durantea segunda metade do século XII. Uma vez ampliada, acomunidade manteve uma presença importante na Sicíliaaté o século XV. Os gregos, por outro lado, forampressionados a aceitar a liturgia latina e, emborativessem desempenhado um papel importante naadministração e nas forças armadas normandas,especialmente na frota de guerra, com frequênciacomandada por almirantes gregos, no longo prazo a suaidentidade acabou por se desvanecer. Em 1308 aindahavia mais de uma centena de sacerdotes gregos; em1450, esse número reduzira-se para onze.23 A integraçãodos gregos na cristandade latina foi lenta e relativamentetranquila, com exceção, em 1168, da revolta dapopulação grega de Messina contra o chanceler Estêvãode Perche, mas acabaram por perder a língua e a religiãoortodoxa.24 A criação pelos normandos de dioceseslatinas — nas cinco cidades fulcrais de Troina, Agrigento,Catânia, Mazara e Siracusa só entre 1081 e 1088 — erasinal evidente do programa de substituição da Igrejaortodoxa grega.25 A numerosa migração de lombardos eoutros povos da Itália, além dos normandos, ajudou aimpor a política de latinização.O status da população muçulmana na Sicília após aConquista Normanda era mais complexo. De início, osgovernantes normandos não tinham objetivos religiososclaros, por estarem ocupados demais com outro alvomilitar: a conquista dos territórios do Império Bizantinono sul da Itália. O ponto de virada chegou em 1084,quando Benavert, o governante muçulmano de Siracusae de Noto que resistira à invasão normanda da Sicília,decidiu saquear a costa da Calábria.26 A frota deBenavert destruiu Nicotera e escravizou os seushabitantes; pilhou duas igrejas perto de Régio, de ondelevou imagens, casulas e vasos; e devastou o conventofeminino de Rocco d’Asino, violando e raptando asfreiras.27 O saque e a escravização eram práticascomuns de ambos os lados, mas a pilhagem de igrejas eo rapto de freiras pareceram suscitar um fortesentimento de ira entre os cristãos. A partir dessemomento,oqual em condições repressivas o crente pode simular aaceitação de outra fé, alimentou a resistência, masacabou por disseminar a ideia entre os cristãos dadissimulação permanente dos mouriscos. Como é óbvio,não devemos superestimar a generalização dessa divisãoentre as comunidades: houve uma minoria significativade mouriscos que se integrou na sociedade cristã maisvasta, abandonando a sua religião anterior; e umaminoria reduzida de cristãos-velhos — como o primeiroarcebispo de Granada, por exemplo, Hernando deTalavera — que interagia com os mouriscos e era contraa conversão violenta, dando preferência aos esforçosmoderados de evangelização. Também não podemosprojetar uma visão homogênea das comunidadesmouriscas em toda a Espanha, já que se verificavamdiferenças enormes entre as comunidades relativamenteautônomas de Castela e Valência e as comunidades maisintegradas da Catalunha, representando Aragão um casointermediário. No entanto, a maioria dos elementos decada comunidade tinha convicções arraigadas. Osmuçulmanos estavam convencidos da superioridade dasua religião, que se baseava num deus único e emprincípios simples de culto. Rejeitavam a ideia daTrindade, a mediação dos santos, o uso de imagens(considerado idolatria), a virgindade de Maria, a naturezadivina de Cristo (considerado o profeta que antecederaMaomé) e a possível encarnação de Deus. Quanto aoscristãos, eles criticavam as origens supostamente vis dosárabes, descendentes de Ismael, filho ilegítimo deAbraão e da sua escrava Agar; o “falso” profeta Maomé,que legitimara a poligamia; e a natureza “sensual” doislã, que imaginava uma vida depois da morte baseadanos prazeres da carne.7Figura 9.1. Embarque de mouriscos no porto de Vinaroz, 1612-3,óleo sobre tela de Pere Oromig e Francisco Peralta, 110 × 173cm. Valência, Acervo Bancaja.As décadas que se seguiram à guerra das Alpujarrasassistiram a um enorme aumento da repressãoinquisitorial, lançada contra os mouriscos desde a décadade 1520, mas que se intensificou após a década de 1560com a nova cultura política, mais centralizada, queacentuava a homogeneidade religiosa.8 A guerra dasAlpujarras servira de pretexto para o fim do apoiosenhorial aos mouriscos e para ações contra as elites dacomunidade que até então haviam estado relativamenteprotegidas. Essas elites mouriscas foram o núcleo daresistência cultural e religiosa, tal como revelado pormuitos julgamentos. A intervenção inquisitorial sebeneficiou da crescente fragmentação dos clãsmouriscos e das divisões geracionais no seu seio. Arepressão inquisitorial, por sua vez, contribuiu para essafragmentação, mesmo com as comunidades mouriscasrevelando uma coesão mais forte do que a dascomunidades de judeus convertidos.No entanto, na repressão aos mouriscos, a Inquisiçãonunca chegou aos mesmos níveis de violênciaempregados no tratamento dos judeus convertidos —nem nos valores absolutos nem na severidade doscastigos (as taxas de excomunhão e de execução forambem mais elevadas entre os judeus convertidos). Éverdade que as medidas repressivas contra os judeusconvertidos atingiram o auge entre as décadas de 1480 ede 1520, enquanto as empregadas contra os mouriscosforam implementadas entre a de 1560 e o início doséculo XVII. Ainda assim, a comparação entre o queaconteceu com as vítimas da Inquisição nessas duasgrandes comunidades étnicas mostra uma abordagemmenos violenta em relação aos mouriscos, definidaformalmente através de instruções concretas emitidaspelos inquisidores Manrique e Valdés. Houve dois motivospara isso: uma vasta maioria dos mouriscos era detrabalhadores agrícolas eficientes ou de artesãosespecializados dos setores têxtil, da cerâmica e da seda,não estando sempre em concorrência direta com oscristãos-velhos; e os mouriscos contavam com o apoiodos reinos muçulmanos do Norte da África e do ImpérioOtomano — fato que desempenhou um papel essencialnas suas relações com a comunidade de cristãos-velhos.A política internacional, no caso a política mediterrânica,contribuiu bastante para a forma de tratamento dosmouriscos, ao passo que os judeus convertidos espanhóisestavam totalmente à mercê das autoridades. A políticainternacional também contribuiu de um modo essencialpara as consequências que advieram das medidastomadas contra os mouriscos: muitos migraram para oNorte da África (200 mil entre 1492 e 1568, só da regiãode Granada); e um número significativo manteve umacomunicação constante com as respectivas comunidadesno Norte da África, ajudou os corsários nas suasincursões na costa espanhola e pediu apoio militar emcaso de revolta.Em 1609-10, Filipe III decidiu expulsar os mouriscos daEspanha, primeiro de Valência, depois dos reinos deCastela e de Aragão, e por fim do principado daCatalunha. Os dois motivos apontados nos decretos reaisforam a constante apostasia dos muçulmanosconvertidos e a ameaça permanente à segurança doreino, devido às supostas conspirações com príncipesmuçulmanos, especialmente os turcos, contra o reicatólico. A expulsão envolveu 300 mil pessoas: cerca de125 mil de Valência, 100 mil de Castela, e 75 mil deAragão e da Catalunha.9 Não há dados sobre os quepereceram durante a viagem até a costa, emboraexistam indícios de roubos organizados, assassinatos eescravização levada a cabo por bandos de cristãos-velhos. O sofrimento dos mouriscos não terminou nosportos: viram-se forçados a aguardar por transporte,pagaram caro pela viagem e por vezes foram obrigados adesembarcar em locais inconvenientes, longe dos portoscentrais. Em várias ocasiões, as autoridades muçulmanaslocais não os receberam bem. Ainda assim, a decisão deexpulsar essa minoria significativa implicou umaformidável operação diplomática e militar — primeiro,Filipe III, ou melhor, o seu Conselho de Estado,estabeleceu tratados de paz (ou tréguas) com França,Inglaterra e Holanda, após o que o Conselho definiu umaestrutura militar para a expulsão, com o objetivo deevitar motins. Foram requisitadas centenas de naviospara a operação, o que exigiu um enorme investimentofinanceiro. O rei também decidiu usar as terras deixadasvagas pelos mouriscos para compensar a nobreza local,que perdera uma soma considerável em rendas.É preciso não esquecer que foi a segunda exclusão deuma grande minoria, tendo a primeira ocorrido em 1492,quando os reis católicos decidiram expulsar os judeusdos seus territórios. Porém, existe uma diferençaimportante entre as duas expulsões: os mouriscoshaviam sido batizados violentamente e eramconsiderados cristãos. A sua expulsão foi uma admissãoprofunda de fracasso, após séculos de pressão e esforços(mínimos) de evangelização. Ironicamente, tal decisãopoderia ter sido encarada como uma vitória daresistência muçulmana persistente: os crentes foramenfim enviados para o Norte da África, onde poderiamviver na sua fé. Para os cristãos-velhos, era um castigopela teimosia, já que os mouriscos deixavam de poderviver no “paraíso” que era a Península Ibérica.Fernand Braudel continua estabelecendo os termos dodebate acerca da expulsão: a Espanha livrou-se de umaminoria produtiva por ser impossível assimilá-la.10Segundo ele, a decisão não foi baseada no ódio racial,mas sim no ódio religioso e civilizacional. SamuelHuntington adotou essa perspectiva na sua visãoquestionável do choque de civilizações.11 A contribuiçãode Braudel representava uma abordagem essencialistados cristãos e dos muçulmanos, ignorando os matizessociais e religiosos, bem como as diferentesconsequências políticas possíveis, como se a expulsãofosse o resultado inevitável de uma rejeição coletiva.Pesquisas recentes revelam casos bem-sucedidos detotal integração mourisca, em especial o que teve lugarem Villarubia de los Ojos, perto de Ciudad Real, emCastela-La Mancha.12 Já indiquei
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