[PDF] Ver/Abrir - Free Download PDF (2024)

Download Ver/Abrir...

1

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA NÍVEL DOUTORADO

DÉLCIO MARQUETTI

"MATEM QUE EU RESPONDO!": MILITARES E IMIGRANTES POLONESES NA ZONA ESTRATÉGICA DO PARANÁ (virada do século XIX para o XX)

SÃO LEOPOLDO 2015

2

Délcio Marquetti

"MATEM QUE EU RESPONDO!": MILITARES E IMIGRANTES POLONESES NA ZONA ESTRATÉGICA DO PARANÁ (virada do século XIX para o XX)

Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor, pelo Programa de PósGraduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Área de concentração: Estudos Históricos Latino-Americanos Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira

São Leopoldo 2015

3

Délcio Marquetti

"MATEM QUE EU RESPONDO!": MILITARES E IMIGRANTES POLONESES NA ZONA ESTRATÉGICA DO PARANÁ (virada do século XIX para o XX)

Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor, pelo Programa de PósGraduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Área de concentração: Estudos Históricos Latino-Americanos

Aprovado em 1º de setembro de 2015.

Prof. Dr. José Iran Ribeiro – Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Prof. Dr. Marcos Antônio Witt – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

Prof. Dr. Cláudio Pereira Elmir – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

Prof. Dr. Rogério Rosa Rodrigues – Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC)

Prof. Orientador Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

4

M357m Marquetti, Délcio “Matem que eu respondo!” : militares e imigrantes poloneses na Zona Estratégica do Paraná (virada do século XIX para o século XX) / Délcio Marquetti.— São Leopoldo, RS, 2015. 290 f. : il. ; 30 cm Orientador: Paulo Roberto Staudt Moreira Tese (Doutorado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em História. Área de Concentração: Estudos Históricos Latino-Americanos. São Leopoldo,RS, 2015. 1. Zona estratégica do Paraná. 2. Imigrantes polones - Paraná. 3. Comissão de Estradas Estratégicas. I. Moreira, Paulo Roberto Staudt, orient. II. Universidade do vale do Rio dos Sinos. Programa de PósGraduação em História. Estudos Históricos Latino-Americanos. III. Título. CDD 325.2438098162 Ficha catalográfica elaborada por Terezinha Aparecida Loch CRB 14/705

5

À Maria de Lurdes Dalla Libera Marquetti (in memoriam)

6

Agradecimentos

PPG em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) Bolsa Pe. Milton Valente Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira, orientador. Profs. Dr. Cláudio Pereira Elmir, Dr. José Iran Ribeiro, Dr. Marcos Antônio Witt, Dr. Rogério Rosa Rodrigues Bernardeth Lago, Cartório do Crime do Fórum da Comarca de Palmas Ivo Marquetti, Jair Marqueti, Ana Maria Marquetti, Méri Terezinha Marquetti, Edilson Marqueti, Maristela Marqueti, Geni Ana Marquetti Lecy Ribeiro da Silva, André Luiz Dal Zot, Vitória Maria Dal Zot, Ana Cláudia Dal Zot Maria de Lurdes Pertile, Renilda Vicenzi Universidade Federal da Fronteira Sul, professores e acadêmicos

7

Resumo

Esta análise parte de uma sequência de conflitos ocorridos em 1900 na colônia General Carneiro (PR), entre militares, que ali se encontravam a serviço da Comissão de Estradas Estratégicas com a finalidade de construírem uma estrada carroçável que ligasse o porto de União da Vitória ao município de Palmas, e imigrantes poloneses. Desrespeitando limites temáticos estritos, arquitetamos uma história social dessa tensa área fronteiriça, que mescla história militar e imigração e que contempla os soldados do Exército e imigrantes europeus como os personagens principais. Investigamos as relações e identidades etnoculturais aí engendradas, considerando os conflitos como pontos privilegiados para a análise das interdependências entre os indivíduos e os seus grupos de pertencimento. Num jogo cambiável de escalas, contemplamos os valores e as expectativas dos envolvidos nesses embates cotidianos e as políticas públicas relacionadas à imigração, à ocupação de territórios fronteiriços e à segurança nacional. O trabalho pretende ser também um exercício teórico-metodológico de problematização da atuação da Justiça, especialmente a Militar, bem como do uso da fonte judiciária. Palavras-chave: Zona Estratégica do Paraná. Comissão de Estradas Estratégicas. Imigrantes poloneses. Relações de poder. Justiça Militar.

8

Abstract

This analysis is based on a sequence of conflicts occurred in 1900 in the colony General Carneiro (PR) among military soldiers who were there in service of Strategic Roads Commission in order to build a carriageway road which could link Porto da União da Vitória to the city of Palmas, and Polish immigrants. Disrespecting strict thematic limits, we built a social history of this tense border area, which merge military history and immigration and include the soldiers of the army and European immigrants as the main characters. We investigated the relationships and ethnocultural identities engendered there, considering the conflict as key points for the analysis of the interdependencies among individuals and their belonging groups. In a switchable playing scales, we are going to contemplate the values and expectations of those involved in these daily encounters and public policies related to immigration, occupation of border areas and national security. This assignment also aims to be a theoretical-methodological exercise of questioning the actions of Justice, especially the military and the use of judicial source. Keywords: Strategic zone of Paraná. Comission of Strategic Roads. Polish immigrants. Power relations. Military justice

9

Lista de ilustrações

Figura 1 – Mapa: A cunha de Palmas (Zona Estratégica) .................................................. 32 Figura 2 – Mapa: Colônias militares do Chapecó e do Chopim (1908) .............................. 34 Figura 3 – Mapa: O Paraná em 1901 e o traçado da Estrada Estratégica. ........................... 36 Figura 4 – Fotografia: Indivíduos portando armas na cintura ....................................... 31172 Figura 5 – Fotografia: Indivíduos exibindo armas em festividade I ................................. 173 Figura 6 – Fotografia: Indivíduos exibindo armas em festividade II.................................174

10

Lista de tabelas

Tabela 1 – Carreira militar do Pessoal da Estratégica ........................................................ 54 Tabela 2 – Características físicas e ocupação dos indiciados pelos crimes de 1900 ........... 56 Tabela 3 – Imigrantes testemunhas dos crimes de 1900 .................................................... 71 Tabela 4 – Crimes militares de maior incidência nos anos de 1890 a 1899 .................. 31127 Tabela 5 – Total de crimes por ano de autuação na 1ª instância, segundo o tipo penal, 2013 a junho de 2014 ................................................................................................................ 130

11

Lista de abreviaturas e siglas

CPA - Código Penal da Armada CG - Conselho de Guerra CI - Conselho de Investigação IP - Inquérito Policial IPM - Inquérito policial militar PC - Processo-crime RPCM - Regulamento Processual Criminal Militar STM - Supremo Tribunal Militar

12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 144

1 MILITARES E POLACOS NA ZONA ESTRATÉGICA DO PARANÁ .................. 31 1.1 O CENÁRIO: A ZONA ESTRATÉGICA DO PARANÁ ............................................ 31 1.2 OS ATORES ................................................................................................................. 42 1.2.1 O Pessoal da Estratégica .................................................................................... 422 1.2.2 Poloneses/austríacos na colonização do Paraná ............................................... 599 1.3 O (DES)ENCONTRO ENTRE O PESSOAL DA ESTRATÉGICA E OS POLACOS 71

2 A VIDA NA ZONA ESTRATÉGICA DO PARANÁ: TENSÃO E CONFLITOS EM UMA REGIÃO FRONTEIRIÇA ................................................................................... 767 2.1 FRONTEIRAS...............................................................................................................77 2.2.1 Fronteiras políticas e fronteiras humanas ......................................................... 77 2.2.2 Fronteiras meridionais do Brasil ......................................................................... 80 2.2 AS POLÍTICAS DE CATEQUIZAÇÃO DOS INDÍGENAS ...................................... 84 2.3 A COMISSÃO ESTRATÉGICA E A POPULAÇÃO LOCAL.................................... 90 2.3.1 A cobertura dada pela imprensa às atividades da Comissão Estratégica: os jornais A República e O Palmense .............................................................................. 91 2.3.2 A Comissão Estratégica e as camadas populares .............................................. 96 2.4 OS POLACOS NOS AUTOS JUDICIAIS .................................................................. 103

3 A JUSTIÇA MILITAR E A LEGISLAÇÃO PARA CRIMES MILITARES ........ 112 3.1 QUEM JULGA OS MILITARES? ............................................................................. 112 3.2 COMO JULGAM OS MILITARES? O COMPORTAMENTO DA JUSTIÇA MILITAR ......................................................................................................................... 124 3.3 QUEM ERAM OS OFICIAIS QUE COMPUNHAM OS CONSELHOS MILITARES ..................................................................................................................... 141 3.4 A FÁBULA JUDICIÁRIA ......................................................................................... 144

4 AS NARRATIVAS DOS CRIMES DE 1900 E A BATALHA PELA VERDADE . 152

13

4.1 OS ATAQUES AOS POLACOS PELOS MILITARES DA COMISSÃO ESTRATÉGICA ............................................................................................................... 152 4.2 PERCORRENDO OS FATOS ATRAVÉS DO INQUÉRITO POLICIAL MILITAR ........................................................................................................................................... 159 4.2.1 Os primeiros registros: as impressões dos oficiais .......................................... 159 4.2.2 Os demais atores do drama: soldados, testemunhas e vítimas ...................... 166 4.3 CONSELHO DE INVESTIGAÇÃO .......................................................................... 180

5 DA JUSTIÇA MILITAR À JUSTIÇA COMUM ..................................................... 194 5.1 CONSELHO DE GUERRA ........................................................................................ 194 5.1.1 Os réus elaboram quesitos de defesa ................................................................ 195 5.1.2 Os réus apresentam defesas escritas ................................................................ 201 5.1.3 Autoridade e hierarquia no interior da Comissão Estratégica....................... 211 5.2 O COMPORTAMENTO DA JUSTIÇA COMUM NO JULGAMENTO DOS RÉUS MILITARES ..................................................................................................................... 227 5.2.1 A construção dos fatos/verdades na esfera cível .............................................. 228 5.2.2 Os julgamentos dos réus pelos júris populares e o desfecho do processo ...... 239

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 245 FONTES DE PESQUISA................................................................................................ 253 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 260 ANEXOS .......................................................................................................................... 275 ANEXO A - FÉS DE OFÍCIO .......................................................................................... 279 ANEXO B - DEFESAS QUE OS RÉUS APRESENTARAM AO CONSELHO DE GUERRA ........................................................................................................................... 283

14

INTRODUÇÃO

Na noite de domingo 10 para 11 de junho de 1900, na jovem colônia de General Carneiro (hoje município), no estado do Paraná, houve uma sequência de atritos entre soldados e famílias de imigrantes poloneses. Uma briga de proporções menores, provocada pelos soldados que se aproximaram da residência dos imigrantes, evoluiu para um brutal ataque dos militares, que culminou com o assassinato de Estephanio Mikilita, e do menor Lucio Laskovsky, de apenas 12 anos1. Os soldados, que residiam temporariamente na vizinha colônia Jangada, destacados a serviço da Comissão de Estradas Estratégicas, após uma festa religiosa ocorrida na igreja de General Carneiro, por volta de 22 horas, voltavam ao destacamento e aproximaram-se da residência de Estephanio para, segundo eles, pedirem um copo d’água, e foram recebidos com pauladas e garrafadas por seus moradores. As testemunhas dos ataques, muitas delas também vítimas de agressões, declararam que já se encontravam recolhidas quando ouviram batidas violentas na porta da casa, na qual pousavam apenas mulheres e crianças. Os homens, que dormiam em um paiol próximo, saíram imediatamente e dirigiram-se à casa, travando luta com os soldados, da qual saíram levemente feridos alguns soldados e imigrantes. Depois de acalmados os ânimos e de os soldados terem-se afastado da casa, estes levaram o fato ao conhecimento do Alferes Francisco Corrêa Torres, comandante do destacamento, que se dirigiu ao local onde estavam seus subordinados armado de revólver e mosquetão Mannlicher2 e ordenou novo ataque à residência, reiniciando assim os combates. Dessa vez, a luta assumiu proporções mais violentas; terminou com mais ferimentos e a morte das vítimas Estephanio, no momento dos combates, e Lucio, no dia seguinte. Os assassinatos e agressões resultaram em onze militares indiciados: dez praças e o oficial Francisco Corrêa Torres. As investigações transcorreram por pouco mais de um ano 1 Caso relatado conforme o processo movido contra o Alferes Francisco Corrêa Torres, Cabos d’Esquadra Herculano Gomes da Silva e Marcelino Ferreira da Silva, Anspeçadas José Freire da Silva e Liberino Paulo da Costa e os Soldados Alfredo José Ribeiro, Benjamim Genésio Dorotheu, João Antônio da Silva, Manuel Joaquim de Araujo e Sebastião Bento Thomaz do Nascimento (PC/1900/General Carneiro). 2 Arma usada na guerra em Canudos. "Espingarda de repetição, de que existem diversos tipos, assim chamada do nome do seu inventor, o alemão Mannlicher, nascido na Mogúncia, morto em Viena (18481904); a sua primeira espingarda foi adotada pela Áustria em 1886. Um dos modelos é adotado pela cavalaria portuguesa" (MANNLICHER. In: LELLO. Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro. Vol. 3. Porto: Lello & Irmão, 1980, p. 181.LELLO, 1980, p. 181).

15

no interior da Justiça Militar, passando, após a abertura de um Inquérito Policial Militar, por um Conselho de Investigação, que pronunciou o Alferes Torres como responsável maior pelas mortes e mais quatro praças (Alfredo José Ribeiro, Herculano Gomes da Silva, João Antonio da Silva e Sebastião Bento Thomas do Nascimento), que foram então submetidos a um Conselho de Guerra. O Tribunal Militar remeteu os autos ao Juiz da Comarca de Palmas, na qual foram a julgamento popular os réus Alferes Torres e os Soldados João e Sebastião – Alfredo e Herculano não foram encontrados. Esse atrito entre nacionais fardados e imigrantes europeus permite-nos formular importantes questões acerca do conturbado processo colonizatório por meio do qual se formou a nação brasileira. Vislumbra-se, nas primeiras décadas de implantação da República, um momento muito específico: a atuação do Exército em uma região fronteiriça marcada por cerca de três séculos de instabilidade geopolítica e tensionada pela presença de sujeitos de procedências diversas. Após a Guerra do Paraguai, Brasil e Argentina viram-se envoltos em uma querela de limites, em que a nação vizinha reivindicou uma parcela do território brasileiro hoje configurada como parte dos estados do Paraná e de Santa Catarina. Vários esforços fez o governo brasileiro no sentido de proteger e assegurar as fronteiras meridionais, casados a políticas de povoamento de áreas tidas como de “vazios demográficos”. A criação das colônias militares de Chopim e Chapecó, em 1859 – instaladas somente em 1882 –, próximas aos rios homônimos, marcou, de maneira mais efetiva, a presença militar na Zona Estratégica, compreendida entre os rios Uruguai e Iguaçu. Outra medida foi a nomeação, em fins do século XIX, pelo governo paranaense, da Comissão de Estradas Estratégicas, que, entre outras atribuições, deveria construir uma estrada carroçável que interligasse o Porto de União da Vitória ao município de Palmas, e este à cidade de Guarapuava. A presença de destacamentos militares para atuarem nesses empreendimentos modificou de forma significativa a paisagem natural e humana do lugar. A região era habitada por uma população constituída de comunidades indígenas e caboclas, nacionais de outras partes do País, e por argentinos, uruguaios e paraguaios que trabalhavam, especialmente, na extração de erva-mate. O governo do estado, em consonância com uma política nacional de incentivo à imigração, havia criado colônias com a finalidade de estabelecer imigrantes europeus; em General Carneiro, a maior parte desses imigrantes era de nacionalidade polonesa/ucraniana.

16

O termo polaco poderia carregar uma conotação pejorativa na denominação desses imigrantes que viviam o drama de um ambiente e sociedade hostis, não condizentes com a propaganda ou imagem difundida em seus lugares de origem a respeito da “acolhedora” América. Desrespeitando limites temáticos estritos, nossa pretensão é arquitetar uma história social dessa tensa área fronteiriça que mescle história militar e imigração, e que contemple os soldados do Exército e imigrantes europeus como os personagens principais. Investigamos as relações e identidades etnoculturais aí engendradas, considerando os conflitos como pontos privilegiados para a análise das interdependências entre os indivíduos e os seus grupos de pertencimento (BARTH, 2000; POUTIGNAT, e STREIFFFENART, 1998).3 Num jogo cambiável de escalas, contemplaremos os valores e as expectativas dos envolvidos nesses embates cotidianos e as políticas públicas relacionadas à imigração, à ocupação de territórios fronteiriços e à segurança nacional (MARTINS; MOREIRA, 2012). Em consonância com autores como José Eudes Gomes, queremos trazer o conflito para o centro do debate, debruçando-nos sobre a violência praticada pelos militares, à medida que revela embates cotidianos e relações de poder no seio social (GOMES, 2010, p. 18). Segundo o autor,

Só mais recentemente os estudos sobre a violência na América portuguesa deixaram de se interessar exclusivamente pelos chamados "grandes toumants" da temática, tais como as entradas e guerras de conquista, as ocupações francesas e holandesas, as campanhas de combate a quilombos ou as rebeliões e revoltas coloniais de maior projeção. (GOMES, 2010, p. 229).

Nos primeiros anos da República no Brasil, a ação do Estado e das forças policiais na solução de conflitos sociais, como Canudos, Contestado, revoltas da Vacina e Chibata, deu o tom daquilo que elites econômicas e políticas projetaram para o povo, na concepção positivista de influência francesa em que o regime foi proclamado. O ataque aos polacos, 3 Quando pensamos em identidades, consideramos operacionais as contribuições do antropólogo Fredrik Barth: "Para ele [Barth], a identidade é um modo de categorização utilizado pelos grupos para organizar suas trocas. [...] para definir a identidade de um grupo, o importante não é inventariar seus traços culturais distintivos, mas localizar aqueles que são utilizados pelos membros do grupo para afirmar e manter uma distinção cultural. Uma cultura particular não produz por si só uma identidade diferencial: esta identidade resulta unicamente das interações entre os grupos e os procedimentos de diferenciação que eles utilizam em suas relações" (CUCHE, Denys. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 182).

17

evento “menor” e de pouca projeção nacional, com número incomparavelmente menor de vítimas, revela a truculência, o preconceito de classe e as preocupações com a manutenção da ordem observadas nos eventos “maiores”. Perseguimos, por meio das pistas encontradas na documentação, o percurso desses militares em suas tarefas de construção da Estrada Estratégica, e de como essa empresa foi afetando ou determinando a vida social em seu entorno. O Pessoal da Estratégica, como foram chamados pela população os militares, é objeto de especial atenção, no sentido de sabermos como se portavam, o que mais faziam além de construir uma estrada, esses homens oriundos, em sua grande maioria, de outras partes do País, especialmente do Nordeste. Os crimes de 1900 – como nos referiremos doravante – são o pretexto para desvendarmos aspectos da cultura militar e das relações de poder (fundadas nas noções de hierarquia, disciplina e autoridade), tão acentuadas no interior de suas fileiras e projetadas, para fora delas, ao conjunto da sociedade. Nesse sentido, a atividade ou cultura militar constitui nosso eixo central nesta pesquisa. Nossa principal fonte são os autos do processo desencadeado por esses assassinatos, cuja documentação juntada, parte dela produzida no âmbito da Justiça Militar, ajuda-nos a investigar a atuação dessa justiça especializada e a estabelecer paralelos com a Justiça Comum, buscando tratar do Direito como algo em constante construção e não como algo dado, que se encerra nos códigos regulamentares. Nesse sentido, o trabalho se propõe a ser um exercício teórico-metodológico de uso da fonte judiciária. A atenção ao andamento das atividades da Comissão Estratégica e de suas lideranças pela imprensa escrita também foi um de nossos objetivos. Ainda que escassa, a imprensa local, basicamente por meio do jornal O Palmense, cujo proprietário era o promotor público que esteve à frente do caso de 1900, deu cobertura ao trajeto percorrido pela comissão. Tendo a imigração polonesa como objeto de análise secundário, pretendemos contribuir para a problematização de questões referentes à trajetória e ao estabelecimento desses povos na região em tela. Sobre a presença polonesa em outras regiões do estado do Paraná ou em outros, os estudos são mais abundantes; e mais escassos quando se trata da região Sul. O fenômeno migratório foi marcado por momentos de tensão entre os nacionais e os estrangeiros. Para Roberto Edgar Lamb (1994, p. 34), as relações “entre brasileiros e

18

estrangeiros demarcaram a experiência colonizatória também sob a forma do impasse”. Para o autor, “o grande projeto político de construção impetuosa de uma sociedade de progresso e civilização, através da imigração e da colonização, encontrou um de seus maiores obstáculos: os momentos de difícil convivência dos seus diferentes atores” (ibidem, p. 34-35). Os constantes conflitos entre imigrantes e nacionais levaram o governo imperial, no projeto de colonização, “a uma estratégia de controle policial das tensões e conflitos que se acreditavam originados por questões de nacionalidade” (ibidem, p. 2829).4 Nosso corpo documental básico são processos criminais e inquéritos policiais arquivados no Cartório do Crime do Fórum da Comarca de Palmas, estado do Paraná, em que os réus, de maneira geral, foram militares ou imigrantes. O processo que investigou os responsáveis pela morte de Estephanio e Lucio rendeu mais de 900 páginas de documentação produzida nas esferas militar (correspondências, acórdãos, fés de ofício, deprecadas, ofícios, partes, defesas, depoimentos) e cível. Também se faz uso de relatórios emitidos pelo presidente da província (depois estado) do Paraná5, bem como do Ministério da Guerra6. Jornais do período contêm informações relevantes que permitem o aprofundamento das problemáticas levantadas; são destaque os jornais A República, editado em Curitiba7, e O Palmense, editado na cidade de Palmas. O uso dessas fontes primárias, cujos dados extraídos são de cunho mais qualitativo, está em constante diálogo com a historiografia pertinente às temáticas propostas. No caso dos documentos judiciais, não se encontram catalogados ou digitalizados, apenas agrupados pelo ano de abertura; optamos por numerá-los de forma própria, uma vez que não há um arranjo original que os organize. Os processos-crime seguirão a organização e sequência: sigla PC (processo-crime)/ano/cidade. O processo que trata dos crimes de 1900, por exemplo, será identificado assim: PC/1900/General Carneiro. Quando se trata de

4 Não estamos querendo afirmar, de forma alguma, que os conflitos existentes nas comunidades de imigrantes fossem causados somente pelos outros. Historiadores já demonstraram as desarmonias existentes nestas comunidades, hierarquizadas e subdivididas internamente, cujos integrantes disputavam acirradamente recursos limitados, tensionados ainda pelas precárias e oscilantes políticas imigratórias (Ver: TRAMONTINI, M. J. A Organização Social dos Imigrantes: A colônia de São Leopoldo na fase pioneira (1824-1850). São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000). 5 Disponíveis em site do Arquivo Público do Paraná: . 6 Disponíveis em site da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: . 7 Disponíveis em site da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: .

19

inquérito policial, a sigla inicial será substituída por IP, ou inquérito policial militar, por IPM. Em função de dificuldades encontradas em termos da grafia dos nomes dos imigrantes, que ao longo do processo sofreram várias trocas de letras, optamos por usar os nomes como foram grafados da primeira vez em que aparecem nos documentos. Quanto ao nome do menor morto pelos militares, denominado Luiz e Leocádio em alguns depoimentos, optamos pela grafia Lucio, que aparece no depoimento de seu irmão Wasco Laskovsky.

Até as primeiras décadas do século XX, o interesse pelas histórias das pessoas comuns basicamente acompanhou o estudo de acontecimentos considerados “dignos de nota”, em que o povo foi também protagonista, especialmente quando se tratou de policiar e corrigir os mais pobres ou pouco importantes (ANDRÉS-GALLEGO, 1993). Na Revolução Francesa, por exemplo, indivíduos que pouco interesse despertavam fora do círculo familiar ou da vizinhança foram postos em evidência em registros produzidos por um Estado desconfiado de suas ações, que os classificou, documentou-os e arquivou-os, prestando, de forma involuntária, grande benefício aos historiadores (HOBSBAWM, 1990, p. 21). Os eventos do século XX, especialmente guerras e ditaduras, levaram ao descrédito nas soluções para os incontáveis problemas humanos, advindas da razão e suas filhas ciência e tecnologia, ou do engajamento na luta massiva pela transformação de estruturas e sistemas político-econômicos – as revoluções. Muitos passaram a vislumbrar soluções em ações e organizações que se dão numa perspectiva micro, posturas sintomáticas desse desencanto em relação a propostas de cunho fortemente racionalistas – um interessante repensar o papel do sujeito e sua relação com o tempo, debate que vinha se dando desde a segunda década daquele século. Uma das maiores mudanças observadas diz respeito à radical redefinição das concepções de poder, tão caras aos historiadores e demais cientistas sociais, interessados em desvendar as relações de dominação e submissão que se dão no interior das sociedades. O poder deixou de ser entendido como uma força centrada em uma pessoa ou na estrutura de um Estado, e passou a ser concebido como uma prática diluída no tecido social. Poder que se manifesta e se exerce de formas por vezes sutil, nos espaços da família, no local de trabalho, na escola, no sindicato ou outra agremiação qualquer, enfim, no emaranhado das

20

relações cotidianas, nas quais, justamente por serem tão cotidianas, o exercício do poder se torna quase imperceptível (FOUCAULT, 1998). Em oposição à história dos grandes vultos, história elitista, reivindicou-se cada vez mais uma história ampla, “de todos”, enfim, história social, “uma vez que seu tema, o homem comum, constitui o grosso de qualquer sociedade” (HOBSBAWM, 1990, p. 32). Na ampliação de temáticas em que se percebe a amplidão do social (nas quais estão as permanências), depara-se com a tensão de se lidar com os fatos, antes tão presentes no imaginário que se construiu em torno do que seria essa ciência. Como lidar então com casos particulares, com sujeitos (indivíduos) ou grupos específicos, perdidos na imensidão do social? (LEVI, 2000, p. 16-17). Para Jacques Revel (2000, p. 15), “esse tempo de recuo aparente poderia ser o de uma reconstrução”, que tem como principal desafio a redução da escala de observação do objeto de investigação, que passa a se dar numa perspectiva micro, o mais aproximada possível do objeto8. Essa “reconstrução” redefine o papel dos indivíduos, entendidos aqui não mais como os grandes vultos, mas como o conjunto dos sujeitos do processo histórico, que passam a importar suas escolhas e ações em seus mais diversos espaços de atuação. O historiador Giovanni Levi (2009, p. 13) alerta: “Mas não basta falar de alguém para incluí-lo na história do mundo, para mostrar sua presença e relevância. O importante é como falar desse alguém.” Para o autor, uma possibilidade válida, em termos teóricometodológicos, do como falar é justamente esse trabalho de investigação de uma situação específica, em escala reduzida, “observação microscópica [que revela] fatores previamente não observados” (LEVI, 1992, p. 139). Trata-se, de forma ainda mais clara, “da renúncia [...] às leituras esquemáticas e gerais, para realmente compreender como se originavam comportamentos, escolhas, solidariedades” (idem, 2009, p. 11). Para Peter Burke (1992, p. 36), “A micro-história e a história da vida cotidiana foram reações contra o estudo de grandes tendências sociais, a sociedade sem uma face humana.” Importa dar também visibilidade a sujeitos invisíveis, ignorados pela historiografia, em contraposição a uma história desprovida de seres humanos, pessoas concretas. A redução da escala não deve limitar as possibilidades de leitura dos eventos e tampouco tem a pretensão de apenas exaltar ou tornar visível exotismos ou curiosidades. O 8

A expressão micro-história foi popularizada pelos historiadores Carlo Ginzburg e Giovani Levi, em uma coleção dirigida pelos autores, denominada Microstorie, publicada pela editora Einaudi, entre 1981 e 1988, e de lá para cá vem sendo envolta em inúmeras interpretações.

21

que se pretende é perceber o desenrolar das ações cotidianas, identificando como se relacionam com os “grandes acontecimentos como a Reforma ou a Revolução Francesa, ou as tendências de longo prazo, como a ocidentalização ou a ascensão do capitalismo” (BURKE, 1992, p. 24). Quer-se perceber como o cotidiano, parecendo “eterno” visto que parece imutável, recebe (é afetado por) as modificações que se dão em âmbito da conjuntura das nações, ou seja, perseguimos canais de “acessibilidade ao geral por meio da singularidade” (DOSSE, 2013, p. 13). Também não se trata somente de descortinar as histórias dos simples, dos pobres, negando a historicidade de demais categorias sociais.

Portanto, a micro-história não é, necessariamente, a história dos excluídos, dos pequenos, dos distantes. Pretende ser a reconstrução de momentos, de situações, de pessoas que, investigadas com olho analítico, em âmbito circunscrito, recuperam um peso e uma cor; não como exemplos, na falta de explicações melhores, mas como referências dos fatos à complexidade dos contextos nos quais os homens se movem. (LEVI, 2009, p. 13-14).

O rigor do trabalho permite identificar entrecruzamentos entre contextos micros e macros, interconexões entre o social e o cultural, e destes com o econômico, como no caso dos conflitos entre militares e imigrantes investigados aqui. Trata-se de uma comunidade específica – microcomunidade – de colonização polonesa, envolta em um texto – no caso, as relações conflitivas com os militares – revelador de interfaces mais complexas, universais, um contexto (LEVI, 2000). Recolocando os termos com Giovani Levi, trata-se de uma prática “[...] essencialmente baseada na redução da escala de observação, em uma análise microscópica e em um estudo intensivo do material documental [...]” (1992, p. 136). Essa metodologia permite “[...] descrever vastas estruturas sociais complexas, sem perder a visão da escala do espaço social de cada indivíduo, e a partir daí, do povo e de sua situação na vida.” (LEVI, 1992, p. 137). Leva-se em consideração que os autos não refletem a criminalidade em si, e sim a da realidade social dos envolvidos; os crimes de 1900 são a janela por meio da qual procuramos penetrar nesse universo, tendo em conta que o acontecido na Colônia General Carneiro “não é um simples dado que basta coletar e comprovar sua realidade, é uma construção que remete ao conjunto do universo social como matriz da constituição simbólica do sentido” (DOSSE, 2013, p. 12).

22

Para François Dosse (2013, p. 6),

Hoje em dia, o acontecimento que está ‘retornando’ é examinado sob uma ótica científica, mas que lhe atribui toda sua eficiência. Transformado em indício ou vestígio significante, o acontecimento é compreendido duplamente, como sugere sua etimologia, como resultado e como começo, como desfecho e como abertura de possíveis. Podemos até dizer que a ideia deleuziana segundo a qual ‘o possível não preexiste, ele é criado pelo acontecimento’ vem se impondo, embora tivéssemos o hábito, até hoje, de privilegiar o antes do acontecimento, a sedimentação causal que parecia suscitar a sua irrupção.

Nossa pesquisa parte de um acontecimento muito específico, mas não pretendemos apenas reconstituir esse fato, senão tomá-lo justamente como pretexto para penetrarmos nesse universo social em que os crimes praticados são o “desfecho” de um intrincado e complexo conjunto de interações entre esses nacionais submetidos a condições degradantes e os imigrantes, também vivendo em condições controversas. Ao mesmo tempo, os eventos se constituem em “abertura” de novas configurações no corpo dessas relações, bem como inauguram outro fato, o jurídico. Segundo Boris Fausto (2001, 31-32), Na sua materialidade, o processo penal como documento diz respeito a dois 'acontecimentos' diversos: aquele que produziu a quebra da norma legal e um outro que se instaura a partir da atuação do aparelho repressivo. Este último tem como móvel o objetivo de estabelecer a 'verdade' da qual resultará a punição ou a absolvição de alguém.

Dentre as várias alterações que irão sofrer as rotinas dos envolvidos, o fato jurídico, fabricado essencialmente, mas não exclusivamente, nos tribunais e escritórios de advogados, é sem dúvida uma das mais tensas e, pode-se dizer, um privilégio para o pesquisador, por conta da produção de vestígios que é capaz de legar. Sendo assim, concordamos com François Dosse (2013, p. 339), que “O essencial do acontecimento está, na realidade, no seu vestígio, naquilo que ele se torna, de maneira não linear no interior dos múltiplos ecos de seu só-depois [après-coup].” (grifo do autor). Ao nos debruçarmos sobre o estudo das relações entre os militares da Estratégica com a população local, especialmente com os imigrantes poloneses, pretendemos construir algumas perspectivas de análise no campo da denominada Nova História Militar. Concebida por muito tempo como a história das guerras, a História Militar deveria servir a propósitos muito específicos, como aperfeiçoar suas instituições e seus quadros,

23

tornando-os eficazes na aplicação de táticas e estratégias de guerra. Enfim, tratar-se-ia de uma história utilitarista, da qual fosse possível tirar lições, “subsídios para o aprimoramento dos chefes militares” (SANTOS, 1981, p. 5) e tomar os heróis das batalhas como inspiração para os novos combatentes9. Seus historiadores, normalmente oficiais, os historiadores de farda10, serviram-se de metodologias muito próprias e documentação relativa à guerra (mapas, cartas, manuais, tratados) como principal fonte de seus estudos, na construção de uma história que fosse algo entre a arte e a ciência11. Na perspectiva da Nova História Militar, a batalha deixou de ser o campo, por excelência, de investigação. Sua pesquisa e escrita também extrapolaram o restrito espaço dos quadros das Forças Armadas para interessar a historiadores acadêmicos, que durante algum tempo a encararam com certa desconfiança. Esses historiadores se diferenciam dos historiadores de farda em termos dos problemas que formulam, das hipóteses que constroem e da interpretação que fazem das fontes disponíveis.

9

Entre as Forças Armadas, essa concepção de História Militar ainda é bastante aceita e defendida. Para os Anais do Encontro de Historiadores Militares, ocorrido em Resende, em maio de 2012, o General de Brigada Sérgio Roberto Dentino Morgado assim se referiu: “É nesse contexto que pretendo oferecer minha visão sobre esse questionamento, representando, pois, os militares historiadores, que encaram a História Militar em termos utilitaristas, tratando da evolução da arte da guerra, do desenvolvimento da doutrina militar, da questão da liderança e das virtudes militares, questões fundamentais na preparação do profissional da guerra e, em especial, dos chefes militares, para o desempenho de suas funções”. (MORGADO, Sergio Roberto Dentino. Abordagem Tradicional da História Militar. In: PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes; CODEÇO, Vanessa Ferreira de Sá. Anais do Encontro de Historiadores Militares. Resende, RJ, Brasil, de 18 a 20 de maio 2012. Rio de Janeiro: EPHiMEx, 2012, p. 9-19, p. 10, grifo no original. Disponível em: . Acesso em 14 maio 2015). O Coronel Reformado Cláudio Moreira Bento, citou em seu texto nos mesmos Anais, epígrafes constantes do manual Como estudar e pesquisar a História do Exército: “Do Alemão Moltke — o Velho: ‘A História Militar por dominar a conduta prática da guerra (e não teórica) é uma fonte inesgotável de ensinamentos para a formulação de uma Doutrina Militar’. Do norte-americano General Patton: ‘A leitura Crítica da História Militar é condição do êxito para o militar.’ Do francês Marechal Ferdinand Foch, que saiu da Cadeira de História Militar da Escola Superior de Guerra, para comandar a Vitória na já (sic) Guerra Mundial. ‘Para alimentar o cérebro de um Exército na paz, para melhor prepará-lo para a eventualidade de uma guerra, não existe livro mais fecundo, em lições e meditações do que o da História Militar’” (BENTO, Cláudio Moreira. Pesquisa na História Militar. In: PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes; CODEÇO, Vanessa Ferreira de Sá. Anais do Encontro de Historiadores Militares. Resende, RJ, Brasil, de 18 a 20 de maio 2012. Rio de Janeiro: EPHiMEx, 2012, p. 35-46, p. 10, grifo no original. Disponível em: . Acesso em: 13 maio 2015). 10 Devo a expressão “historiadores de farda” a RODRIGUES, Rogério Rosa. Veredas de um grande sertão: a Guerra do Contestado e a modernização do Exército brasileiro. 2008. 430 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2008. 11 Segundo o General de Brigada Sérgio Roberto Dentino Morgado, o militar historiador “Normalmente é um autodidata, podendo ter formação acadêmica; trabalha voluntariamente, mas podendo desempenhar esse papel cumprindo determinação recebida; tem experiência como instrutor, professor, palestrante, conferencista, painelista, ensaísta, podendo ter exercido (ou exercer) função na área cultural. Tem gosto pelo estudo da História, participa de Institutos e Academias (Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, Institutos Histórico e Geográfico Brasileiro, Institutos estaduais e municipais, Academia de História Militar Terrestre do Brasil).” (MORGADO, ibidem, p. 13).

24

Estudos inovadores têm-se voltado para questões como as relações entre as Forças Armadas e a sociedade civil, fora do escopo de suas atividades mais específicas como a guerra ou outras operações. A pesquisa nesse campo tem enfocado mais aspectos sociais e culturais, como o cotidiano de soldados; formas de recrutamento e lugares de origem dos recrutados; questões de gênero e sexualidade; entre outras temáticas da “vida cotidiana e as experiências pessoais de soldados e marinheiros, tanto nos períodos de guerra quanto de paz" (CASTRO et al., 2004, p. 27). Nosso trabalho associa-se às considerações feitas pelos autores da obra Nova História Militar (CASTRO et al., 2004), que assinalam as dificuldades de se pensar as trajetórias de militares e suas instituições sem levar em conta os contextos sociais em que foram recrutados. [...] os militares brasileiros não se encontram isolados da sociedade abrangente, embora possam guardar uma relativa autonomia em alguns aspectos e épocas específicas. Seria difícil, portanto, tratar a história militar como algo inerentemente distinto da história mais ampla da sociedade de onde soldados e oficiais são recrutados. (CASTRO et al., 2004, p. 12, grifo dos autores).

É essa sociedade mais ampla, localizada na Zona Estratégica do Paraná, nos primórdios da República, que procuramos conhecer melhor. É possível dizer, com alguns autores, que a história (ciência) já começou, no ocidente, como história militar (LUVAAS, 1981, p. 37; SOARES; VAINFAS, 2012, p. 114). Isso porque seus historiadores fundadores de que mais temos notícias (Heródoto, Tucídides, Xenofonte são exemplos) escreveram basicamente história/poesia de guerras e batalhas. No pós-Segunda Guerra, os países classificados como desenvolvidos, interessados em prestar apoio às nações de suas esferas de influência, passaram a se interessar pelas ações das Forças Armadas levadas a cabo por essas nações. No caso específico da América Latina, muito desse interesse demonstrado pelos governos dos Estados Unidos deveu-se às possibilidades da ocorrência de movimentos revolucionários (KEITH, 1989, Prefácio). A partir de 1971, em função do fracasso na guerra do Vietnã, a história militar ganhou espaço nos estabelecimentos militares de ensino daquele país (SANTOS, 1981, p. 7). Os estudos de história militar ampliaram-se, então, tanto nos Estados Unidos como fora dele. Na década de 1970, a partir de um curso, como classificaram seus participantes, denominado Novas dimensões da história militar, começou-se a falar em termos de uma

25

“nova história militar”12. Os debates realizados dividiram seus idealizadores: parte deles acenou para a construção de uma história militar como uma espécie de parte integrante de uma história mais ampla (História com “H” maiúsculo). Um entendimento era de que a história militar não deveria encontrar-se “isolada do resto” (WEIGLEY, 1981, p. 25), mas deveria ocupar-se de estudos “do militar como uma projeção da sociedade em seu sentido mais amplo, do relacionamento do militar com o Estado, das instituições militares e do pensamento militar” (ibidem, p. 25). De modo geral, os textos finais ainda apontavam para uma perspectiva “tradicional” de história militar, percebidas na defesa, por exemplo, do aprendizado por meio da extração de lições, resumido na intrigante pergunta de um de seus participantes: “Não fora isso, por que um homem tão ocupado iria incomodar-se com ela?” (WEIGLEY, 1981, p. 16). O crescente interesse pela história levou os historiadores de farda a profissionalizarem-se em suas formas de escrever. Para Russel F. Weigley, o interesse de historiadores acadêmicos e militares pela história militar não poderia se restringir a propósitos acadêmicos, sob o risco de perder sentido a produção de uma história não engajada. O autor acusa os historiadores profissionais de esquivarem-se da promessa de ensinar lições (WEIGLEY, 1981, p. 16)13. No Brasil, os estudos voltados à análise das relações entre militares e sociedade civil mais ou menos coincidem com a época em que emergiram nos Estados Unidos, embora tais relações já se fizessem sentir desde os primórdios da República. Para Amanda Pinheiro Mancuso, o descaso da academia com os estudos militares fez com que essa área ficasse “restrita aos meios militares, num processo que limitou muito seu estudo independente” (2008, p. 3). 12

O curso resultou em uma obra coletiva, publicada no Brasil no início da década de 1980 com o título dado ao curso dos debates ocorridos nos Estados Unidos (WEIGLEY, Russel F. (Org.). Novas dimensões da história militar. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1981). 13 Esse “descompromisso” com que são taxados os historiadores acadêmicos fez com que muitos militares chamassem para si a responsabilidade de construir histórias que fizessem justiça aos seus pares e suas trajetórias. Tomemos dois exemplos: o do General Souto Malan, que escreveu a biografia de seu pai, Alfredo Malan d’Angrogne, também ele General – para Malan, “As biografias podem revestir-se de um aspecto oficial, de tonalidade geralmente afetiva e laudatória, ou, escritas por historiadores sem nenhum compromisso, valendo-se da perspectiva que o tempo faculta, ser elaboradas à luz dos documentos friamente interpretados.” (MALAN, Alfredo Souto. Uma escolha, um destino. Vida do General Malan d’Angrogne. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977); outro ilustrativo exemplo é o de José Andréa, que biografou seu ancestral, o Marechal Francisco José de Souza Soares de Andréa – manifestou revolta contra a injustiça “de certos supostos historiadores apressados, levianos ou desfrutáveis, em cujas páginas se reproduzem ou se renovam as sempre falsas acusações contra o marechal Andréa” (ANDRÉA, José. O Marechal Andréa nos relevos da história do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977).

26

Para Bruno Carvalho (2011, p. 9),

A partir da proclamação do regime republicano no Brasil, a presença e a intervenção política direta das Forças Armadas no cenário político nacional se faria presente e, em determinados contextos históricos, se mostraria de importância fundamental. Dessa maneira, não deixa de causar estranhamento a retomada apenas recente que os meios acadêmicos – aqui, inclusos, os historiadores – empreenderam sobre os militares. Somente nos últimos cinqüenta anos é que podemos pontificar uma maior atenção, da parte da historiografia brasileira, para a complexa relação entre os meios militares e civis.

Para o autor, foi a partir da década de 1960 que a abordagem da história militar sofreu mudanças, basicamente com a publicação da obra História Militar do Brasil, de Nelson Werneck Sodré (primeira edição em 1965), e de alguns capítulos da coleção História Geral da Civilização Brasileira, organizada por Sérgio Buarque de Holanda, a partir de 1960. Celso Castro também chama a atenção para o fato de que “não se pretende reduzir a compreensão da instituição militar a fenômenos sociais de outra ordem que a determinariam, e sim, prestar grande atenção à interação entre Forças Armadas e sociedade” (2004, p. 12, grifo do autor). Como campo de pesquisa relativamente “novo”, os estudos em História Militar colocam o historiador diante do dilema das fontes. Se quisermos sair dos espaços herméticos e corporativistas das Forças Armadas, então temos de garimpar vestígios de seus atos em outros espaços. O historiador José Iran Ribeiro afirma que, a partir da segunda metade do século XIX, é notada uma preocupação maior das Forças Armadas em produzir e armazenar registros burocráticos da rotina militar como “listas nominais de integrantes das unidades, fés de ofício, relatórios de ações, balanços contábeis, ordens do dia, propostas de promoção, dentre outros registros” (RIBEIRO, 2012, p. 157). O autor chama a atenção para o fato de que a maior parte dessa documentação constitui-se de ofícios trocados entre quadros superiores, ou intermediários, das tropas e “dificilmente encontra-se um documento de autoria de um simples soldado ou mesmo de um praça graduado” (Ibidem, p. 157). Ribeiro prossegue dizendo que, para análises microanalíticas em história militar, o historiador não precisa, necessariamente, valer-se apenas de fontes de origem militar, pois, embora pertencentes a uma instituição, os militares “também eram agentes sociais mais ou

27

menos integrados a todas outras dinâmicas da vida, para além dos quartéis e dos acampamentos” (RIBEIRO, 2012, p. 159). Sendo assim, dados que nos permitam avançar na pesquisa, especialmente quando se trata dos quadros subalternos, em maior número dentro das Forças Armadas, “também podem ser encontrados nos autos policiais, nos registros eclesiásticos, nas escrituras públicas, nos requerimentos ao poder público, nos jornais, enfim” (Ibidem, p. 159). Embora as ações dos oficiais interessem muito, não é possível escrever história militar ou história dos militares apenas a partir de seus próprios registros, que expressam pontos de vista muito particulares. Em tratados assinados nos espaços da diplomacia, em relatórios ou mapas e cartas militares de uso estratégico em batalhas, não nos é possível visualizar os indivíduos, uma vez que tais documentos não deixam vestígios de suas emoções, quase nada registram sobre suas falas. Sendo assim, é possível dizermos, com Daniel Roche (2004, p. 15), que, “no domínio da vida, da compreensão dos sentimentos, das relações, dos ‘costumes’, os historiadores os têm encontrado quase sempre nos arquivos judiciários”. A necessidade de moralização leva a um ordenamento e enquadramento dos indivíduos – e no caso dos soldados isso é bastante comum –, que resultam na produção de registros nos quais informações de natureza como a acima referida são normalmente um pouco mais abundantes que em outros corpos documentais. Para Daniel Roche (2004, p. 69), “os arquivos da repressão constituem um testemunho sobre a própria sociedade” e é, segundo esse autor, “de toda a vida cotidiana que passa a se encarregar o conjunto das autoridades policiais” (ibidem, p. 354). É por concordarmos com esses autores e por nos identificarmos com suas propostas que optamos por trabalhar com processos criminais e inquéritos policias como corpo documental básico para esta pesquisa. Grande número de historiadores tem-se debruçado sobre materiais de natureza judicial não para buscar as explicações para o crime ou o indivíduo criminoso, como fizeram os lombrosianos14 do século XIX, mas buscando principalmente as regras de conduta, códigos empregados na comunicação, costumes, atitudes e estratégias de sobrevivência que são capazes de revelar muito sobre seus envolvidos.

14

A partir dos estudos de Césaro Lombroso (1835-1909), buscaram-se explicações de ordem biológica ou genética para o fenômeno da criminalidade – por traz de um crime, seria possível encontrar um criminoso nato.

28

Boris Fausto, em um livro inspirador, Crime e cotidiano (2001), definiu crime como um “fenômeno na sua singularidade cuja riqueza em certos casos não se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas percepções” (FAUSTO, 2001, p. 19), ao passo que criminalidade, segundo ele, se refere ao fenômeno social em dimensão mais ampla. Para a historiadora francesa Michele Perrot (1992, 244-245),

[...] não existem ‘fatos criminais’ em si mesmos, mas um julgamento criminal que os funda, designando ao mesmo tempo seus objetos e atores; um discurso criminal que traduz as obsessões de uma sociedade. Toda a questão é saber como ele funciona e muda, em que medida exprime o real, como aí se operam as diversas mediações. (grifo nosso).

A ideia de crime pode, então, ser substituída pelo discurso sobre o crime, ou seja, na impossibilidade de se codificar o crime, pois o “‘crime-em-si’ é um impossível” com a substituição do crime pelo discurso, o “‘crime-para-nós’ passa a existir” (ELMIR, 2002, p. 327). A historiografia brasileira acabou por construir um universo de análise de crimes e criminosos “assentada fundamentalmente no aspecto da dinamização econômica e social e da proletarização (ou da lumpem proletarização) advindas do fim da escravidão, da industrialização e da imigração em massa” (CANCELLI, 2001, p. 24 grifo do autor). Nessa perspectiva, o crime, encarado como “lugar marginal do social” (ibidem, p. 24), constituiria em si o resultado de tais modificações. Os estudos de natureza criminológica, como os procedimentos que definiram práticas de controle, repressão e punição, estiveram imbuídos de “preconceito social – especialmente contra negros e imigrantes e o contingente populacional pobre ou estigmatizado” (CANCELLI, 2011, p. 24). Ou seja, com o advento da modernização e urbanização, e a consequente idealização de uma lógica do trabalho, a criminalidade passa a ser entendida como a negação dessa cultura. Para Sidney Chalhoub, trata-se de fazer uso de processos criminais (o autor cita outras fontes, como jornais) e entrar em contato com uma “encruzilhada de muitas lutas”,15

15

“Cada história recuperada através dos jornais e, principalmente, dos processos criminais é uma encruzilhada de muitas lutas: de lutas de classes na sociedade, lutas estas que se revelam na tentativa sistemática da imprensa de estigmatizar os padrões comportamentais dos populares – estes ‘brutos’ – nas estratégias de controle social dos agentes policiais e judiciários, e também nas reações dos despossuídos a estes agentes – como por exemplo na atitude hostil dos populares em relação aos guardas-civis, ou na estratégia utilizada pelos estivadores amigos de Paschoal [o autor de um crime], e muitas vezes repetidas

29

restando ao historiador “[...] a tarefa árdua e detalhista de desbravar o seu caminho em direção aos atos e às representações que expressam, ao mesmo tempo que produzem, estas diversas lutas e contradições sociais.” (2001, p. 41-42). É possível encontrar, nas entrelinhas dos depoimentos, evidências de como vítimas, réus e testemunhas descrevem não somente os acontecimentos que os levaram à Justiça mas também diversos relacionamentos sociais e condutas que eles consideravam justos ou não, a partir de seus próprios padrões morais. Mesmo quando mentem ou inventam posturas morais, fazem-no de uma forma que acreditam ser verossímil e, portanto, ajudam a traçar os limites da moralidade comum (CAULFIELD, 2000, p. 39-40). No primeiro capítulo, intitulado “Militares e polacos na Zona Estratégica do Paraná”, localizamos a região em que se posicionavam os principais atores/sujeitos envolvidos nos conflitos de 1900. As políticas de ocupação e segurança das fronteiras meridionais tiveram nas colônias militares de Chopim e Chapecó, e na construção da Estrada Estratégica, importante papel contra as investidas promovidas pela Argentina. Traçamos de forma breve a trajetória percorrida pelos polacos, os fenômenos migratórios que impulsionaram esses sujeitos em seus deslocamentos, na perspectiva dos contextos históricos então vividos pelo Brasil e pelos seus locais de origem. Os militares também são objeto de especial interesse, 1) pelas suas origens geográficas e sociais, e 2) pelo que revelam sobre as condições de recrutamento da época. Os conflitos de 1900 representam um momento de tensão na convivência entre esses dois grupos, e dos depoimentos dos indiciados (de forma mais marcante nos do Alferes Torres) emergem acusações de fundo étnico. Concluem-se, então, essas discussões preliminares em diálogo com a Antropologia, especialmente a partir das pesquisas do antropólogo Fredrik Barth e autores que discutem questões de identidade étnica. No segundo capítulo, “A vida na Zona Estratégica do Paraná: tensão e conflitos em uma região fronteiriça”, aproximamo-nos melhor da Zona Estratégica, entendida como região de fronteiras acima de tudo humanas. Enfatizamos ligeiramente a atuação das colônias militares, as políticas de catequização do indígena, seguidas da análise das

pelas testemunhas em outros autos, de ‘sumirem’ ao longo do andamento do processo, ou nos casos numerosos em que acusados e testemunhas denunciam maus-tratos; das contradições ou conflitos no interior do próprio aparato jurídico-repressivo – como por exemplo, no procedimento bastante comum dos juízes encarregados do interrogatório na pretoria no sentido de checar as condições em que foi elaborado o inquérito na delegacia de polícia.” (CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da bélle époque. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001, p. 41).

30

relações da Comissão Estratégica com a população local, especialmente com os imigrantes polacos. No terceiro capítulo, “A Justiça Militar e a legislação para crimes militares”, discorremos sobre a história da Justiça Militar no Brasil e da legislação aplicada aos crimes considerados “tipicamente militares” nos primeiros anos do regime republicano. Analisamos as tendências manifestadas pelos juízes/oficiais que deliberavam e suas implicações nos resultados dos julgamentos, concluindo com uma análise de como, na instauração de um processo judicial – o fato jurídico –, podem concorrer diferentes versões/verdades que irão competir ao se apontar os culpados. Os capítulos 4 e 5 seguem exatamente a estrutura do processo que trata dos crimes de 1900, a fim de permitirem uma análise mais intensa desse documento. No quarto capítulo, “As narrativas dos crimes de 1900 e a batalha pela verdade”, percorremos o andamento das investigações desde a abertura do Inquérito Policial Militar até o pronunciamento dos indiciados, que foram submetidos a Conselho de Investigação, com ênfase no comportamento de testemunhas e indiciados, formas e ritos empregados no âmbito jurisdicional castrense. No quinto capítulo, “Da Justiça Militar à Justiça Comum”, analisamos a documentação produzida na fase do Conselho de Guerra, pela qual adentramos nessa justiça especializada, um importante espaço de debate das normas estatutárias do Exército, que revela fragilidades e nuances do comportamento militar, e traduz visões e conceitos do que poderíamos denominar, com Huntington (1996), de “mentalidade militar”. Analisamos também a atuação da Justiça Comum, seus arranjos e funcionamento, e como estes levaram ao desfecho do caso.

31

1 MILITARES E POLACOS NA ZONA ESTRATÉGICA DO PARANÁ

Neste capítulo, situamos a Zona Estratégica do Paraná no contexto geopolítico da segunda metade do século XIX. Esse espaço de fronteiras políticas e socioculturais, marcado pela chegada de sujeitos que vêm se juntar às populações nativas e caboclas aí residentes, foi sofrendo significativas alterações quanto a suas paisagens geográfica e humana. Também reconstituímos aspectos das trajetórias percorridas pelos principais atores/sujeitos desses conflitos: militares e polacos, como eram denominados os imigrantes. Os militares ali destacados para construírem uma estrada estratégica que ligaria Porto União à cidade Palmas constituem objeto de especial interesse, a saber: 1) pelo interesse em sua procedência, geográfica e social, e 2) pelo que isso revela sobre as políticas de recrutamento de soldados na época. Em seguida, analisamos ligeiramente os fenômenos imigratórios que impulsionaram os polacos em seus deslocamentos, levando em conta os contextos históricos de seus lugares de origem e chegada. Os conflitos de 1900 representam um momento de extrema tensão na convivência entre esses grupos, e nos depoimentos e defesas dos militares indiciados (especialmente do Alferes Francisco Corrêa Torres) emergiram manifestações hostis de fundo étnico. Conclui-se, portanto, com algumas considerações sobre etnicidade e identidade dos grupos étnicos, em diálogo com a Antropologia.

1.1 O CENÁRIO: A ZONA ESTRATÉGICA DO PARANÁ

A Colônia de General Carneiro, onde ocorreram os conflitos de 1900, era parte de um conjunto de colônias (Antônio Candido, Cutia, Marco Cinco, Nova Galícia e Jangada) que compreendem os atuais municípios paranaenses de General Carneiro, União da Vitória e Cruz Machado, localizados ao sul do estado. Na Colônia Jangada, às margens do rio homônimo, encontrava-se a sede do destacamento militar, a serviço da Comissão de Estradas Estratégicas, incumbido da construção de uma estrada que ligaria o Porto da União a Palmas. O Porto da União, localizado às margens do rio Iguaçu, também estava na rota traçada para a futura Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG).

32

Mapa 1 – A Cunha de Palmas (Zona Estratégica)

Fonte: Magnoli (1997, p. 304). Adaptação: Fabio Antero D’Agostini

33

As terras que hoje compreendem o estado do Paraná e parte de Santa Catarina (a porção que vai do rio Peperi-Guaçu, na divisa com a Argentina, até aproximadamente o município de Lages)16 pertenceram à Província de São Paulo até o ano de 1853, quando o governo imperial desmembrou-as, criando a Província do Paraná. As fronteiras geopolíticas do sul do Brasil, cujas discussões com os países vizinhos remontam ao século XVII, custaram a ser demarcadas. Parte desse território, a oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná, a “Cunha de Palmas”, que corresponde a Zona Estratégica (mapa 1), foi alvo de reivindicações da Argentina, conhecidas como Questão de Palmas ou Missiones. A despeito de toda uma série de tensões, a “questão” foi arbitrada pelo então presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland, em 1895, e o Brasil foi considerado o legítimo detentor das terras em disputa17. A presença militar mais efetiva nessa região data do início da segunda metade do século XIX. Dadas as especificidades de região fronteiriça e litigiosa, o Governo Federal criou, no ano de 1859, as colônias militares do Chapecó (com sede no atual município de Xanxerê, SC) e do Chopim, próximas aos rios homônimos (mapa 2), objetivando impulsionar um processo colonizador na região. As colônias foram, de fato, instaladas apenas em 1882, pelo ministro da guerra Franklin Américo de Menezes Dória18.

16

As atuais fronteiras entre os dois estados, motivo de acirradas disputas políticas e judiciais, só foram definidas após a Guerra do Contestado (1912-1916). Em 1917, o governo de Santa Catarina criou, nas terras contestadas, os municípios de Chapecó, Cruzeiro (atual Joaçaba), Mafra e Porto União . 17 “Os argentinos só definiram sua interpretação ao Tratado de Santo Ildefonso em 1881, quando declararam ser os rios Chapecó e Chopim o limite entre os dois países. O Brasil por sua vez, apontava como divisa os rios Peperi–Guaçu e Santo Antônio. Esta diferença representava uma área contestada de 30.621 quilômetros quadrados. O Brasil, diante disso, passou a se preocupar com a efetivação da posse do território que ainda não tivesse devidamente ocupado. Tinha em mente o princípio do Uti Possidetis, que era diplomaticamente usado em Convenções e Tratados, segundo o qual, um país teria direito a um determinado território somente por sua ocupação efetiva e prolongada.” (RADIN, José Carlos. Italianos e ítalo-brasileiros na colonização do oeste catarinense. Joaçaba: Ed. da Unoesc, 1997, p. 29-30). 18 “O de que se trata é estabelecer núcleos de povoações, em lugares remotos centrais e despovoados, onde só a principio podem resistir às privações, e permanecer como colonos, indivíduos habituados à obediência passiva, adquirida pelos severos hábitos da disciplina militar. A escolha desses pontos é, por via de regra, em nossas fronteiras ou em alguns centros, onde se tem acumulado vagabundos e malfeitores, que ameaçam a segurança e a propriedade dos habitantes dos povoados mais próximos. Tais colônias, portanto, têm o caráter pronunciadamente militar, e embora nelas entre o elemento agrícola, ainda assim são mais que tudo colônias policiais, de segurança e de defesa, que garantem ao mesmo tempo no futuro o infalível desenvolvimento de povoações, que um dia indenizarão, com vantagem, todos os sacrifícios, que com elas se fizerem.Várias colônias desta ordem, como ensaios, têm sido estabelecidas ou ordenadas em diferentes pontos do Império; umas, mais que outras, se vão consolidando ou florescendo ou conservando-se estacionárias ou definhando, conforme peculiaridades e ocorrências diversas, que não cabe aqui apreciar.” (COELHO, Jeronymo Francisco. [Relatório] s/d 1858, apresentado à Assembléia Geral Legislativa, pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 45. Disponível em . Acesso em 10 fev. 2014).

34

Mapa 2 – Colônias militares do Chapecó e do Chopim (1908)

Fonte: ITCG (detalhe). Adaptação: Fábio D’Agostini.

Ao longo do século XIX, além de centros urbanos inquietos e de reincidentes agitações e mobilizações populares, localizados principalmente no litoral do país, como a própria sede do governo, também regiões de fronteiras potencialmente conflitivas eram prioridade para a localização das forças do Exército (CARVALHO, 1985, p. 203). Segundo o General Alfredo Souto Malan,

Terminada a Guerra do Paraguai, por nascentes solicitações econômicas e para atender particularmente à defesa nacional, começaram os estudos que visavam a tornar possível o atendimento das regiões fronteiriças. Sob o ponto-de-vista militar era imprescindível concentrar forças em qualquer ponto de nossa fronteira meridional para enfrentar a ameaça de uma nova luta, caso se concretizasse a única hipótese de guerra então admitida. (MALAN, 1977, p. 87).

As considerações do militar demonstram as preocupações de cunho geopolítico, associadas a pretensões de exploração econômica, que levaram o governo a concretizar a implantação das colônias militares, as quais até então haviam permanecido no plano da idealização. A região considerada estratégica pelas razões apresentadas aos poucos foi denominada Zona Estratégica.

35

O jornal O militar expressou o ponto de vista de setores dos militares preocupados com a possibilidade de tentativas de ocupação das repúblicas vizinhas, governadas por “déspotas”, que viviam sob o “império de paixões desordenadas”, em contraste com o Brasil, monarquia isolada tal como oásis em meio a um deserto. O Brasil, monarchia isolada no meio desse continente de republicas, oasis querido no centro desse deserto desolado, não póde deixar de precaver-se contra a invasão de principios que escaldam as imaginações ardentes, que enthuziasmam a puberdade e que só são reconhecidos inconvenientes na idade da reflexão. [...] Essas republicas que nos são tão proximas, que quase se póde dizer vivem em contacto conosco pela nossa fronteira do Sul, que já chamaram a si um dos florões da nossa corôa, têem até hoje vivido sob o imperio das paixões desordenadas, que acompanham sempre os governos electivos; diversos despotas se têem partilhado o poder; acabrunhando o povo, alguns se têem feito amar, acabando todos no exilio ou na obscuridade da vida privada uma carreira cheia de remorços [...] E quem fará então respeitar nossos direitos sobre o monarcha dos rios, quem no Amazonas impedirá a posse dos flibusteiros americanos? só uma Marinha imponente e um Exercito disciplinado.19

Para os editores do jornal, as Forças Armadas, Marinha e Exército, disciplinados, deveriam assumir papel primordial na salvaguarda do país em suas terras de fronteiras. Há tempos a foz do rio Iguaçu era tida como ponto estratégico, de fundamental relevância nesse contexto de tensões geopolíticas, e o governo manifestava interesse em construir no local outra colônia militar. Em 1888, o ministro da guerra Thomaz José Coelho de Almeida criou a Comissão Estratégica e encarregou o General Belarmino de Mendonça de sua chefia. Os trabalhos da Comissão seriam coordenados a partir da cidade de Guarapuava, centro urbano mais próximo da referida foz, e tiveram início juntamente com as mobilizações que deveriam instalar as colônias militares de Chapecó e Chopim. As principais atribuições da Comissão consistiam em a) descobrir a foz do rio Iguaçu e aí fundar uma colônia militar; b) construir uma estrada de rodagem carroçável à margem esquerda do rio Iguaçu, que ligasse o Porto da União à cidade de Palmas – com 140 km de traçado original, deveria ser o tronco principal desse plano de estradas (WACHOVICZ, 1994, p. 95) – e esta à cidade de Guarapuava; c) construir uma estrada da foz do Iguaçu a Guarapuava; d) explorar uma via mista de comunicação para o Mato Grosso20. 19

O Militar, Rio de Janeiro, ano 1, n. 6, 30 set. 1854. Brasil. p. 4. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2014. 20 MALLET, João Nepumoceno de Medeiros [Relatório] maio 1899, apresentado à Assembléia Geral Legislativa, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 43-44. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014.

36

Mapa 3 – O Paraná em 1901 e o traçado da Estrada Estratégica

Fonte: Cerqueira (1901). Adaptação: Fábio D’Agostini

37

Em 1892, a Comissão passou a ocupar-se unicamente da construção da estrada de Porto da União a Palmas, passando a chamar-se Comissão de Estradas Estratégicas, sob responsabilidade do 5º Distrito Militar, de Curitiba21. O argumento do Ministério da Guerra era de que a estrada facilitaria a marcha de forças e o transporte de material bélico para a fronteira, em caso de necessidade22, bem como de que traria importante retorno econômico23. Empregar o Exército em sua construção, além de prepará-lo para a ação pronta e eficaz na defesa do território nacional, facilitaria a comunicação com essa zona de fronteira que se tornaria melhor conhecida. Seus construtores ficariam adestrados para as necessidades que surgissem no caso de uma guerra, fosse para o restabelecimento do tráfego, interrompido por estragos propositais do adversário, fosse para a ocupação das terras tomadas do inimigo. Os custos com a abertura da estrada eram justificados pelo desenvolvimento das regiões percorridas, produtivas e amortizáveis, que logo trariam benefícios indiretos ao erário publico24. Além das estradas de rodagem, o Ministério estudava possibilidades de construção de estradas de ferro. A ocupação dos Campos de Palmas fez parte de um movimento de ampliação de fronteiras dos habitantes de Guarapuava, a partir de expedições comandadas por Pedro Siqueira Cortes. As terras compreendidas à época como oeste do Paraná, cujos municípios de Guarapuava e Palmas são os mais antigos, criados em 1810 e 1877, respectivamente, (União da Vitória foi desmembrado de Palmas em 1880) foram ponto de passagem de bandeirantes e tropeiros. A região destacou-se pela instalação de fazendas de criar, com produção voltada

21 Em 1891 o território da República foi dividido em sete distritos militares. BRASIL, Decreto nº 431 de 02 de julho de 1891. Divide em sete distritos milhares o território da República e extingue os lugares de comandante de armas e de brigada. Disponível em: . Acesso em 12 jan. 2015. O 5º Distrito Militar foi instalado em Curitiba, abrangendo os estados de Paraná e Santa Catarina em função de ser essa uma região “estratégica”. A 5ª Região Militar passou a denominar-se, a partir de 21 de julho de 1989, Região dos Heróis da Lapa. 22 “[...] a primeira condição a preencher para se estar preparado para a defesa é a de poder transportar, em tempo oportuno, à fronteira, forças suficientes para vedar o acesso ao inimigo”. (General Jean-Auguste Berthaut apud COLONIAS E ESTRADAS MILITARES. Revista do Exército Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 4, n. 4, p. 100, 1885. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015). 23 “Além de sua importância estratégica, que lhe dá caráter militar, merece toda a solicitude sob os pontos de vista político, comercial e industrial.” FROTA, Antonio Nicoláo Falcão da. [Relatório] jun. 1891, apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 31. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. 24 MALLET, João Nepumoceno de Medeiros [Relatório] maio 1899, apresentado à Assembléia Geral Legislativa, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 46. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014

38

para o mercado interno, seguida, em importância econômica, pela atividade extrativa de ervamate e madeira de araucária. Em termos judiciais, a Comarca de Guarapuava foi criada no ano de 1859 e abrangia todo o sudoeste do Estado e compreendia também a Freguesia de Palmas. A Comarca de Palmas, fruto do desmembramento da comarca mãe Guarapuava, deu-se em 1880, e abrangia a região que hoje compreende o oeste de Santa Catarina. Como dito anteriormente, a militarização da Zona Estratégica seria potencializada com políticas de povoamento, visando garantir a posse do território. No início do século XX, cerca de aproximadamente 50% do território paranaense era considerado de “terras despovoadas” (ver mapa 3), o que se deve a uma concepção colonialista de ocupação do espaço que não reconheceu a presença indígena. As expressões “espaços vazios”, “terrenos incultos” “sertões incultos”25, encontradas nos mapas, revelam o quanto a cartografia – limites geopolíticos –, por vezes, pode parecer distante da realidade, onde observam-se fronteiras étnico-culturais muito mais vibrantes que as fronteiras políticas. Para Demétrio Magnoli (1997, p. 248), o mito do “vazio demográfico” “não reflete apenas uma negatividade – o desconhecimento histórico – mas principalmente uma positividade ideológica: o mito, muito mais significativo, da preexistência de fronteiras”. A fim de preencher os “vazios”, o governo paranaense, em sintonia com políticas levadas a cabo pelo governo federal, passou a incentivar a imigração europeia. No território que ficou pertencendo a Santa Catarina, em virtude do acordo firmado após a Guerra do Contestado, o governo desse estado incentivou a colonização com a vinda de descendentes de imigrantes, especialmente italianos, alemães e poloneses, oriundos do Rio Grande do Sul, que também contribuíram com a colonização de boa parte do sudoeste do Paraná26. Através de um relato elaborado por uma comissão nomeada pelo Presidente da Província do Paraná no ano de 1867, podemos ter uma ideia da importância que os Campos de Guarapuava e os Campos de Palmas tinham para a Província: A última comarca da província é, a nosso ver, a mais interessante de todos os pontos de vista, já por ser limitrophe com paízes estrangeiros, já por suas condições naturaes 25

A última expressão foi empregada por Luiz Viana Filho, no prefácio à obra de MATTOS, Meira. A geopolítica e as projeções do poder. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1977, p. 10. 26 A colonização do sudoeste do Paraná e oeste de Santa Catarina e seus efeitos foram problematizadas em obras como: WACHOVICZ, Ruy. Paraná, sudoeste: ocupação e colonização. Curitiba: Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense, 1985; VICENZI, Renilda. Mito e história na colonização do oeste de Santa Catarina. Chapecó, SC: Argos, 2008; RENK, Arlene. A luta da erva. Chapecó, SC: Argos, 2006; WERLANG, Alceu. Disputas e ocupação do espaço no oeste Catarinense. Chapecó, SC: Argos, 2006;

39

favoráveis a agricultura. Pelo lado político Guarapuava tem de ser sempre um ponto de attracção para as vistas do governo do paíz, attendendo-se que é fronteira com a província Argentina de Corrientes e com a república do Paraguay. [...] O gênero de vida adaptado pelos habitantes da comarca é principalmente a creação do gado vaccum, cavallar e suíno, por serem os campos apropriadíssimos para isso, [...] os povoados desta comarca são somente dois: villa de Guarapuava e freguezia de Palmas”.27

O relatório deixa claro que a região merece atenção por razões políticas – é limite com Paraguai e Argentina – e também pelo potencial econômico manifesto na criação de gado e nas condições favoráveis à prática da agricultura. São fronteiras tênues, caracterizadas por intensa dinâmica populacional em permanente movimento. Segundo a pesquisadora argentina Luz Irene Pike (2012, p. 292),

Para La región fronteriza entre Argentina, Brasil y Paraguay, entre los años 1870 y 1930, el fin de la Guerra del Paraguay abrió el período de auge del frente extractivo. Este frente, no fue simplemente una actividad económica compartida por las tres naciones, sino que constituyó una formación socioeconómica espacial, no delimitada por un estado nación, sino configurado una región transnacional compartida. (grifos da autora).

A autora refere-se especialmente à extração de erva-mate, atividade econômica responsável pela “transnacionalização” da região, tornando-a um espaço mais ou menos comum às três nações. Nos autos criminais consultados para esta tese, aparecem várias referências a esses “estrangeiros” que exerciam atividade de ervateiro em terras brasileiras, a maioria paraguaios, fazendo as vezes de réus ou vítimas. Outra consideração levantada pela historiografia que trata da região recortada diz respeito a um estigma que esse território adquiriu ao longo do século XIX: de ser facilitador do movimento de “refúgio de bandidos, ou pelo menos dos fora da lei” (WACHOVICZ, 1987, p. 103). Esse reduto de proteção de “foras da lei” diversos permitia a ocupação por indivíduos e famílias desatreladas de clientelismos que garantiam a ordem, representando um problema para as autoridades, aquilo que o historiador inglês Cristopher Hill denomina de “servidores de ninguém”. Eram homens sem governo que “muitas vezes não tinham senhores a quem devessem obediência, ou de quem pudessem esperar proteção”, esses “servidores de ninguém”, assim, “constituíam anomalias, um elemento potencial de dissolução da sociedade” (HILL, 1987, p. 56-60). Sobreviviam nos interstícios da sociedade, pouco influenciados por 27

BURLAMAQUE, Polidoro Cezar. [Relatório] 17 ago. 1867, apresentado a Carlos Augusto Ferraz de Abreu, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná, p. 6-7. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014.

40

ideologias religiosas ou políticas. Era uma região de fronteira, de relativo frágil controle público, conformando um território de oportunidades para os populares e suas famílias. Para a pesquisadora gaúcha Mariana Flores (2012), viver em um espaço de fronteira incide em ter a permanente noção de que existe um “outro lado”, para onde se pode fugir e esconder a si ou a alguma coisa, onde vigoram outra soberania e diferentes interesses. A autora defende que crimes ocorridos em regiões de fronteiras diferenciam-se de crimes praticados em outras partes, pela possibilidade de fuga que esse espaço oferece; “ao cruzar para o “outro lado”, imediatamente passava-se a estar sob a vigência de uma legislação e autoridade diferentes, e um simples fugitivo podia tornar-se um problema diplomático” (FLORES, 2012, p. 21)28. Em minha pesquisa de mestrado, consultei processos-crime relativos a crimes ocorridos na região oeste de Santa Catarina de 1918 a 1941. Foram analisados 103 processos de crimes de homicídio, lesões corporais, defloramento e roubo. Os dados coletados apontaram para uma interessante dinâmica populacional na região que compreende o noroeste do Rio Grande do Sul, oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná. Levando-se em conta a 28

Um conflito ocorrido em Bela Vista de Palmas, no ano de 1887, na residência do réu José Antonio Brandão, nos ajuda a pensar as relações entre brasileiros e argentinos. Três indivíduos, sendo dois deles soldados da Comissão de Limites da Argentina, e outro identificado como João Urso, invadiram a casa do brasileiro José Antonio, quebraram as vidraças de uma janela e passaram a agredi-lo com golpes de facão. Na tentativa de se defender, o réu acabou por disparar tiros de espingarda, que atingiram o Soldado argentino Santos Varon. Do conflito resultaram dois documentos judiciais, um processo-crime que incrimina José Antonio e um inquérito policial contra o soldado argentino Santos Varon. José Antonio declarou-se negociante e enfatizou que residia em Bela Vista de Palmas há mais de trinta anos. Nos depoimentos das testemunhas é possível perceber certa complacência com José Antonio, e esforços no sentido de incriminar Santos Varon. “Os argentinos estavam matando o Brandão”, conta uma das testemunhas, que era um padre português. No inquérito aberto contra Santos Beron (esta é a grafia do nome do soldado encontrada em documentos argentinos anexados ao processo), encontram-se informações que atestam a incapacidade de julgamento pela justiça brasileira. À folha 6 encontrase um documento emitido pela Comision Argentina de Limites, dirigido ao Juez Municipal Manuel Luis de Sosa. No documento, Santos Beron, cabo 2º de la escolta de la Comision, é colocado à disposição do juiz argentino. Às folhas 50 e 51 lê-se: “Existe prova baste. Pra. A pronnuncia porem sendo o réo Santos Verôn praça de pret do exercito argentino e achando-se em serviço de sua nação na Comissão de limites – tendo se dado o facto criminoso dentro do territorio letigioso, cumpre que o Meritissimo julgador attenda esta circunstca (sic). Para dar sua decisão com acostumada justiça: pois me parece que pa. os militares empregados nas Commissões brasilra (sic). e Argentina de limites – o solo litigioso é considerado campo neutro – salvo achar-me em erro. Palmas, 15 de Nov. de 1887. Alberto Marques de Almeida”. À folha 60 cita-se trecho de um despacho de 24 de agosto de 1887, dirigido ao Barão de Capanema: “Não estranho que esse Senhor (o Major Toloza) recuse entregar o soldado que como Vossa Senhoria me referiu no officio numero cincoenta e cinco, feriu gravemente o individuo de nome Brandão, residente em Boa Vista. A escolta, a que esse soldado pertence e que acompanha a Commissão Argentina, não está sujeita a nossa jurisdicção, como não estão os comissarios, os ajudantes e o pessoal dos serviços anexos. Isto não foi estipulado no tratado de vinte e oito de Setembro de mil oitocentos e oitenta e cinco, mas está subentendida, e é consequencia da acção exercida em comum pelas duas Commissões para o reconhecimento do territorio em litigio. Nestas circunstancias o criminoso tem de ser julgado pelos tribunaes de seus paiz”. Ao final da arguição, Miranda Ribeiro, que assina o documento, cita um caso análogo que teria sido resolvido pelo governo brasileiro em ano anterior. Concluiu-se que Santos Varon seria julgado em seu próprio país. Cf. PC/1887/Bela Vista de Palmas.

41

totalidade dos indivíduos arrolados, entre réus, vítimas e testemunhas, 41,5% nasceram em Santa Catarina, 35,8% no Rio Grande do Sul, 18,9% no Paraná e 3,7% em outros estados ou países. Os autos trazem referências de processados que foram vistos ou encontrados em cidades do sudoeste paranaense, como Foz do Iguaçu, Guarapuava, Palmas, Clevelândia, Barracão, Chopim e Pato Branco, ou que migravam de uma para outra. Outros se dirigiram para cidades do Rio Grande do Sul. Nos autos, encontram-se observações como “Protegido [o réu] pela situação geográfica desta comarca [Chapecó], cuja posição entre os estados do Paraná, Rio Grande do Sul e a república Argentina facilitava-lhe a vida, zombava das autoridades durante anos”29, feita pelo promotor público responsável por um dos casos. Ou, ainda: “Nesta comarca, a impunidade dos criminosos decorre quase sempre da facilidade de transpor fronteiras, fugindo à ação da justiça”, usada pelo juiz responsável por outro caso30. Em 1900, em Campo Erê, o Inspetor de Quarteirão da Colônia, em carta endereçada ao Juiz da Comarca de Palmas, referiu-se aos criminosos da seguinte forma: “Todos conhecem as proezas de tais ladrões que se ufanam dos crimes que tem cometido desde Rio Grande do Sul, Corrientes e o Estado do Paraná”31. Se pensarmos a Zona Estratégica, na passagem do século XIX para o XX, em termos socioeconômicos, veremos que era constituída de sociedades com uma dinâmica essencialmente rural, um tanto distanciadas das transformações socioeconômicas em marcha em outras partes do país32. Trata-se de um espaço que se encontrava, portanto, literalmente na fronteira dessas transformações, embora já se fizessem sentir suas influências, pois mantinham alguma ligação por meio do gado, erva-mate e madeira que forneciam aos centros maiores. Embora distante dos centros de “progresso” do país, em termos sociais, foi-se configurando como de diversidade étnico-cultural. As fontes apontam para uma realidade 29 Apud MARQUETTI, Délcio. Bandidos, forasteiros e intrusos: a criminalidade na Região do Alto Irani, 1917-1942. 2003. 152f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade de Passo Fundo (UPF), Passo Fundo, 2003, p. 115. 30 Ibidem, p. 115. 31 PC/1900/Campo Erê, fl. 16. 32 Adilson Miranda Mendes, por meio da análise de inventários depositados no Cartório Cível da Comarca de Palmas, identificou a sociedade dos Campos de Palmas em termos de uma sociedade tradicional campeira. A terra encontrava-se concentrada em número pequeno de grandes proprietários, que basicamente até fins do século XIX eram detentores de formas muito tradicionais de riqueza: terras, escravos e animais. (MENDES, Adilson Miranda. Origem e composição das fortunas na sociedade tradicional paranaense (Palmas: 18591903). 1989. 429 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba,1989.

42

dinâmica em que, a populações indígenas e caboclas33, vem juntar-se uma série de outros sujeitos. São ex-escravos, imigrantes (poloneses, alemães, italianos, franceses, sírios, belgas), agentes federais, nacionais oriundos de outras regiões do país, tropeiros, prostitutas, fazendeiros, padres, policiais, professores. Até mesmo “aventureiros” que procuravam se estabelecer nas cidades da região de forma clandestina (ou pelo menos discreta) por meio do exercício de profissões como boticários, médicos ou outras vinham compor uma população cada vez mais diversificada. Na condição de vítimas, réus ou testemunhas, esses sujeitos tiveram suas falas registradas pelas penas de escrivães, advogados, juízes e promotores em situações que vão desde crimes tidos como banais, como pequenos furtos, agressões, defloramentos, roubos acertos de contas e rixas, até crimes como morte de escravos por excesso de espancamento e chacinas, promovidas muitas vezes por praças do Exército ou escoltas contratados por fazendeiros34. Embora filtrados pelas penas dos escrivães, tais registros nos ajudam a reconstituir fragmentos da teia de relações que se estabeleceram entre esses diversos sujeitos, permitindo-nos responder aos propósitos de nossas investigações.

1.2 OS ATORES

1.2.1 O Pessoal da Estratégica

“E quem é que sabe o nome desses cem soldados? Quem é que sabe o sobrenome desses cem soldados? Cem soldados sem história, cem guerreiros sem memória...” (Música “Napoleão”, Ney Matogrosso)

O estudo da formação histórica do Brasil em seus múltiplos aspectos torna-se mais inteligível quando levada em consideração a atuação das Forças Armadas, em especial do Exército. No entanto, os estudos sobre a ação do Exército quando se trata de atividades 33

Ver NACKE, Aneliese et al. (Orgs.). Os Kaingang no oeste Catarinense: tradição e atualidade. Chapecó, SC: Argos, 2007; CENTRO DE MEMÓRIA DO OESTE DE SANTA CATARINA – CEOM. Sobre a cultura cabocla: inventário da cultura imaterial cabocla no oeste de Santa Catarina. Chapecó: Argos, 2008; RENK, Arlene. A luta da erva: um ofício étnico da nação brasileira no oeste catarinense. Chapecó: Argos, 2006. 34 De acordo com Edward P. Thompson, a presença e coexistência de um código legal e de outro, um código popular não escrito, foi “lugar-comum em qualquer época” (THOMPSON, Edward T. A formação da classe operária inglesa. Volume I – A árvore da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1987. p. 62).

43

desenvolvidas fora de seu espaço privilegiado de ação – a defesa do território nacional, ou seja, a guerra –, são recentes35. Partimos das considerações de Celso Castro (2004, p. 12), de que: “os militares brasileiros não se encontram isolados da sociedade abrangente, embora possam guardar uma relativa autonomia em alguns aspectos e épocas específicas” (grifo do autor). Sendo assim, entende-se que as trajetórias desses sujeitos podem, justamente por não permanecerem enclausurados em seus quartéis, dissociados da sociedade em que foram recrutados, nos ajudar a compreender melhor esse contexto, já que estiveram boa parte de seu tempo em interação com a sociedade civil. A compreensão acerca do contato das Forças Armadas com o restante da população em seus mais diversos espaços de interação social, pode trazer contribuições à historiografia no sentido de esclarecer melhor a maneira como essa sociedade sentiu e reagiu à presença milita. De como essa presença afetou ou alterou suas rotinas e modus vivendi, como tudo isso determinou o imaginário acerca dos homens que usavam fardas e que detinham o poder das armas – embora elas nunca fossem de uso exclusivo deles. Quanto ao Pessoal da Estratégica, como foram chamados pela população local os militares destacados em Jangada, a documentação consultada permite desvelarmos algo a respeito de quem eram esses homens, de onde procediam, e um pouco das trajetórias que percorreram após seu ingresso no Exército. Importante também é entender as influências que eles promoveram na vida dos paisanos, e de que forma suas próprias vidas foram também modificadas. Em muitos aspectos suas trajetórias marcadas pelo sofrimento e toda sorte de estigmas são comuns a todos os demais soldados, um retrato das condições de vida de boa parte das camadas pobres que compõem a sociedade brasileira. Nossas primeiras considerações dizem respeito ao(s) lugar(es) social(is) de onde provêm os soldados, quem eram e quais eram suas condições de vida, bem como à forma como ingressaram no Exército. Para isso, percorremos a historiografia sobre as políticas de recrutamento ao longo do Império e parte do período republicano. Sobre o Pessoal da

35

Para sínteses da história do Exército, de forma mais específica, ver as seguintes obras: SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010; CARVALHO, José Murilo de. As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador. In: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano. Tomo III, vol. 2. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 182-234; CIDADE, Francisco de Paula. Síntese de três séculos de literatura militar brasileira. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998.

44

Estratégica, especificamente, suas fés de ofício, juntadas aos autos judiciais, nos ajudam a percorrer suas origens e trajetórias. Sobre a questão da origem social dos soldados, afirma Celso Castro (2004, p. 28) que, “Apesar da abundância dos registros funcionais sobre oficiais e soldados que as instituições militares vêm mantendo pelo menos desde o século XIX, estamos ainda longe de entender a origem social do pessoal militar no Brasil.” Embora faça essa constatação, o autor afirma que “Existem boas evidências [...] para dar suporte à generalização sobre a baixa origem social dos soldados e sobre a predominância de não-brancos nos batalhões, até que o sorteio, estabelecido na década de 1910, esclarecesse melhor, de alguma forma, o status social dos indivíduos alistados.” (CASTRO, 2004, p. 28, grifo do autor). Carvalho (1997), Schulz (1994) e Almeida (2010) concordam com Castro quanto à condição social dos recrutados, em que negros (escravos ou livres) e mestiços, em situação fragilizada, em grande maioria, arcaram com o ônus da defesa do território tanto em termos de ameaças externas quanto internas.

O baixo número de voluntários devia ser equilibrado pelo recrutamento forçado, cujo resultado era a mesma origem social dos praças: excluídos, indigentes, homens livres pobres e escravos enviados, frequentemente, como substitutos de seus proprietários. A polícia também podia contribuir para o preenchimento dos claros das Forças Armadas, enviando condenados e capturando à força homens pobres e marinheiros a serviço da Marinha mercante. (ALMEIDA, 2010, p. 155).

É particularmente interessante a opinião do jornal O Militar a respeito da condição do soldado brasileiro nos tempos do Império: O soldado entre nós, ou é infeliz sem protecção, ou a victima de torpe vingança, arrastado pelo recrutamento para as fileiras do Exercito, ou é o vagabundo desmoralisado, e muitas vezes punido de crimes, ou o pobre esmagado pelos rigores de sua malaventurada sorte, que ambos vão procurar na praça, aquelle um refugio, ou esquecimento de suas iniquidades, este, o ultimo recurso, que por ventura vê luzir atravez do caliginoso véo que o circumda, como o desaventurado naufrago que, no meio dos horrores da procella, de chofre se arremeça sobre um desprezível lenho, que sobre as aguas fluctua, como derradeira esperança de salvamento que ainda lhe resta. Eis pois o que é o soldado – defensor da patria – o garante da tranquilidade publica, o mantenedor da integridade do Imperio!36

36

O Militar, Rio de Janeiro, ano 1, n. 6, 30 set. 1854. Brasil, p. 4. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2014.

45

O jornal O Militar foi editado durante um ano, de julho de 1854 a julho de 1855, reaparecendo brevemente de 1860 a 1861, sob responsabilidade de jovens oficiais e estudantes militares, e tinha caráter “radicalmente antigovernamental” (SCHULZ, 2004, p. 247). Trata-se de uma interessante fonte que registrou queixas e posicionamentos políticos de oficiais, bem como reflexões sobre o papel do Exército e sua composição. A elaboração do jornal teve como ponto de partida um protesto levado a cabo por um grupo de oficiais que se opôs a um projeto de lei que os proibia de se casarem sem consentimento do ministro da guerra. Além da questão do casamento, também reprovavam a estrutura política do país e propunham reformas. Atacavam os legistas (advogados), que, segundo eles, sendo originários de classes abastadas, percorriam carreiras jurídicas e acabavam, portanto, assumindo cargos políticos promissores, em contraste com eles, oficiais, oriundos de camadas menos abastadas, aos quais restava frequentar escolas militares. Havia exagero nas manifestações expressas no jornal, pois a maior parte dos oficiais que estudavam nessas escolas era carioca, filhos de famílias ilustres que se utilizavam da carreira militar como instrumento de intervenção e disputa política (SCHULZ, 2004, p. 248). O trecho citado anteriormente denuncia as precárias condições de praças que ingressavam no Exército, comparando sua condição à de um náufrago, para quem assentar praça assemelha-se a um pedaço de madeira que pode impedi-lo de submergir completamente em meio ao caos social em que se vivia. Eis as condições dos militares rasos. O ingresso no Exército, desde os tempos de colônia até as primeiras décadas da República, deu-se pelo recrutamento forçado, prática arbitrária e violenta, que atingia mais diretamente os setores mais empobrecidos da população. José Iran Ribeiro, que analisou as políticas de recrutamento de soldados durante o Império, ao longo de sua investigação específica sobre a Guerra dos Farrapos, constatou que

[...] extrair recrutas naqueles tempos era uma situação que movimentava toda a diversidade dos grupos sociais, desde o indivíduo passível de ser recrutado, passando pelos integrantes das redes de solidariedade e clientela existentes nas localidades, até chegar ao Estado. Resumidamente, era um jogo de negociação, no qual as partes colocavam-se conforme suas possibilidades para obter as maiores vantagens possíveis: para os recrutáveis a isenção, para os líderes de clientela o respeito de seus clientes e do Estado, para o governo a obtenção do número de recrutas necessário pelo menor custo possível. (2009, p. 11-12).

46

O recrutamento foi marcado pela violência e pela negociação, características de relações clientelistas que determinavam quem seria recrutado ou isentado. Os recrutadores manifestavam claramente sua preferência pelos considerados vadios, e muitos recrutados eram indivíduos desconhecidos da população local que “perambulavam” pelas cidades ou ameaçavam sua segurança, ou, ainda, que não se encontravam protegidos por alguém influente. Para Fábio Faria Mendes [1998?]

Curiosamente, são os indivíduos mais difíceis de classificar e de encontrar o alvo preferencial dos recrutadores, seja por uma sorte de justificação que guia a tarefa, que se poderia definir como utilitarismo corporativo, que reserva o serviço das armas para os elementos "improdutivos" da sociedade, seja (paradoxalmente) pela maior probabilidade de sucesso da empresa, visto que tais elementos não se encontram sob o abrigo de redes sociais de proteção. (grifo do autor).

O autor aponta ainda para as dificuldades de apresamento de recrutados, cujo sucesso estava atrelado à imprevisibilidade:

Segredo e simultaneidade serão recomendados como fatores decisivos para o sucesso do apresamento. Todos sabem que na ausência de quaisquer previsões distributivas, praticamente qualquer um pode ser objeto da caçada humana. À menor suspeita da aproximação do recrutamento, os possíveis recrutas se antecipam e desaparecem nos sertões. A população se vê tomada de pânico e as vilas tornam-se desertas. Os recrutadores queixam-se, sobretudo, da lei eleitoral e da chamada aos voluntários, que sinalizavam aos que estão “nas circunstâncias” do recrutamento a tormenta por vir, fazendoos perder as melhores ocasiões. (Ibidem, ?).

De acordo com o autor, o recrutamento podia gerar certo pânico, especialmente entre os indivíduos que eram, pelo conjunto de características e estereótipos aqui discutidos, alvo dos recrutadores; também gerava certo desconforto entre as comunidades, alterando mesmo suas rotinas. Na cidade de Curitiba, em 1893, um boato de novo recrutamento ameaçou interferir no curso normal das coisas, e acabou por forçar as autoridades municipais a tomarem algumas medidas incomuns. O prefeito da cidade baixou disposições impondo multas para o atravessamento de gêneros alimentícios de primeira necessidade (espécie de “mercado negro”), que, caso ocorresse, comprometeria o abastecimento da capital.

47

De ordem do cidadão dr. Prefeito municipal desta Capital: Faço publico, para sciencia dos habitantes deste municpio, que é inexacta a noticia espalhada pelos especculadores, de que está aberto o recrutamento e não poderem as pessoas de fora dirigirem-se a esta capital, para venderem suas mercadorias. Outrossim, que tendo chegado ao conhecimento do mesmo dr. Prefeito Municipal que diversos individuos procurão impedir a entrada de generos alimenticios no mercado da capital, comprando-os nas estradas que a ella se dirigem, manda publicar as seguintes disposições aprovadas em sessão de 10 de outubro de 1892. “Artigo 4º Fica estabelecida a multa de 200$000 e o dobro na reincidência, tantas vezes quantas se derem, a todo o negociante ou particular que atravessar pelas estradas ou ruas da cidade, generos de primeira necessidade. São considerados generos de 1º necessidade para os efeitos deste artigo, o milho, feijão, batatas, farinha, toucinho, carne de porco, charque, galinha e ovos, cem exepção de pequena porção para o gasto de casas particulares [...] § 2º Os generos de que trata este artigo são aquelles que, dos diversos municipios do Estado se dirigem ao desta capital”.37

Sabedores da forma quase palpável como o medo do recrutamento atuava no imaginário coletivo, espertalhões atravessadores espalhavam irresponsavelmente a notícia, obtendo lucros com mercadorias dirigidas ao abastecimento interno. Sobressai nessa notícia que os habitantes das áreas rurais ou suburbanas sentiam-se mais fragilizados e alvos fáceis dos alistamentos compulsórios, talvez pela sua ausência de ligações com as elites locais, que os poderiam defender (e suas famílias) dos famigerados recrutadores38. No ano de 1897, em Paranaguá, por ocasião de um processo eleitoral, o comissário de polícia precisou pronunciar-se, assegurando serem falsas as informações que circulavam: de que haveria recrutamento e da vitória dos “fanáticos” de Canudos na guerra. O comissário Pedro Scherer, procurando tranquilizar a população e principalmente os eleitores, garantindo a manutenção de seus direitos políticos e civis, atribuiu os “boatos” aos adversários do governo. Chegando ao conhecimento deste commissariado que os adversarios do Governo aconselham ao eleitorado o não comparecimento á eleição de 31 do corrente, amedrontando-o com o recrutamento, victoria de Canudos, etc. etc., declaro que tudo isso é uma inverdade : não haverá recrutamento nem os fanáticos serão vencedores em Canudos, cabendo me assegurar aos senhores eleitores que os seus direitos civis e politicos serão plenamente respeitados e garantidos. Paranaguá, 26 de maio de 1897.39

37

A República, Curitiba, ano 8, n. 241, 10 nov. 1893. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 23 jul. 2014. 38 A palavra atravessadores é mais antiga do que normalmente pensamos: Atravessador – “O que compra toda a mercadoria ou viveres, para regatear e vender a seu arbítrio, ele só.” (SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portuguesa. Tomo 1 e 2. Rio de Janeiro, Oficinas da S. A. Litho-Litotipographia Fluminense, 1922. (Edição fac-símile da 2. ed., de 1813, sendo a 1. ed. de Lisboa, Officina de Simão Thadeo Ferreira, em 1789) p. 125). 39 A República, Curitiba, ano 12, n. 114, 29 maio 1897. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2014.

48

Fossem ou não dignas de fé as notícias espalhadas, ou seja, quer se tratassem de possibilidades reais das ações de recrutamento ou de boatos, os dois casos ora referidos revelam o pânico e a desestabilização que a prática poderia acarretar, ainda nos anos iniciais da República. Esse terror representado pelo recrutamento acabou por se incorporar ao imaginário popular; assim como outros elementos da vida de todos os dias, tornou-se, em alguns casos, motivo de brincadeiras e gozações. O jornal A República traz um cartaz de propaganda de um circo europeu, a “Companhia Equestre Gymnastica e Acrobatica”, que se apresentava na capital do estado, cujo espetáculo seria finalizado com a pantomima (representação teatral por meio, basicamente, de gestos e movimentos) “O Recrutamento n’uma Aldeia”40. No mesmo número do jornal, também encontra-se uma referência à “brilhante atuação do Circo Petry,” cuja pantomima “Um casamento de costumes campestres” teve grande sucesso. O periódico resume o enredo do espetáculo e apresenta seus personagens: a história gira em torno da família de um ferreiro, cuja filha anda de namorico com um de seus empregados. Ao tocar a campainha para despertar os empregados, o mestre ferreiro flagra os dois conversando e despede imediatamente o empregado. Logo em seguida, entra em cena um oficial inglês recrutador e a filha do ferreiro; temendo o recrutamento do namorado (desempregado, vadio), a jovem oferece dois substitutos, que são aceitos. Então, o ferreiro autoriza o casamento da filha com o empregado a pedido do oficial41. O ano de 1850 anunciou o fim do tráfico negreiro, projetando mudanças que se fariam sentir, inevitavelmente, na política. A economia passou a viver uma fase de recuperação, incrementada pela produção cafeeira, que se projetava cada vez mais no mercado internacional. Também data desse ano a Lei de Terras, responsável por uma nova política de acesso a terra que restringiu ainda mais o acesso à propriedade fundiária. Tais mudanças promoveram certo rearranjo no sistema de recrutamento. As mudanças no interior do Exército foram promovidas basicamente pela reforma na Lei de Promoções, obra do Ministro da Guerra Manoel Felizardo de Souza. A nova lei [...] estabeleceu rigorosos requisitos de antiguidade bem como prêmios por instrução, de maneira que a lei de Felizardo proporcionou a homens de 40

A República, Curitiba, ano 8, n. 192, 20 ago. 1893. Brasil, p. 3. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2014. 41 A República, Curitiba, ano 14, n. 41, 21 fev. 1899. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2014.

49

condição modesta a chance de competir pelas promoções com os filhos da elite. Assim, mais de meio século após a Revolução Francesa, o Exército Brasileiro tornou-se uma carreira aberta ao talento. (SCHULZ, 1994, p. 24, grifo nosso).

Abria-se caminho para que a carreira militar se aproximasse mais de um modelo moderno de profissionalização, ao estabelecer que tempos de serviço e instrução, bem como o incentivo pela sua busca e aprimoramento, passassem a ser considerados critérios de promoção. Para ascender ou ganhar uma patente, era preciso ser alfabetizado, ter 18 anos e ter ao menos dois anos de prestação de serviços militares. As novas exigências colocavam-se um pouco além do mero favoritismo e clientelismo político, embora não tivessem o poder de impedir que estes continuassem a existir, como, de fato, permaneceram República adentro42. Outro desdobramento da lei de Felizardo, apontado por John Schulz, foi o de que “retirou da carreira militar parte da atração que esta exercia sobre os membros da elite”. O autor refere que, em 1895, apenas metade dos generais que entraram para o serviço ativo em torno da metade do século “vinha das famílias mais poderosas do Brasil; a outra metade vinha de famílias de pequenos fazendeiros, funcionários públicos médios e oficiais subalternos” (SCHULZ, 1994, p. 29)43. O autor ressalta que, a despeito dessas modificações nas origens sociais do generalato, as origens sociais dos oficiais subalternos permaneceu praticamente inalterada. Ao ingressarem no Exército, os soldados se deparavam com uma realidade de salários baixos, pagamentos de multas por coisas ínfimas e acomodações precárias em quartéis. A rotina da caserna era extenuante, com detenções frequentes, marchas e acampamentos, deslocamentos para guarnições distantes de suas comunidades de origem e participação forçada em 42

Alfredo Malan d’Angrogne, imigrante italiano, desembarcou em Montevidéu com a família em 1885, e instalou-se em Pelotas. Seguiu carreira e tornou-se engenheiro militar. Em carta enviada pelo general Alfredo Malan à sua mãe, em 1894, declara: “No entanto, agora, o único prazer, a única alegria, é de saber que vais ficar contente, minha mãe, e que ao receberes esta notícia poderás dizer que meu novo posto não devo à proteção e à influência de ninguém... Lembras-te quando meu pai me dizia: ‘non passerai di caporale...’?. Por fim, agora vou ter um soldo, vou usar uma espada, sou alguma coisa finalmente. Poderei reformar meu vestuário, o de que carecia; irei, tão cedo o possa, enviar-te o meu retrato que esperas faz tanto tempo [...]. Na verdade não sei como saí (Alferes), não tinha nenhum protetor, nenhum outro amigo a não ser os comandantes que me conheceram quando servi sob suas ordens; quanto aos da Escola, não sei qual deles se interessaria por mim... Creio firmemente não dever nada a ninguém...”. (MALAN, op. cit. p. 56, grifos nossos). 43 A base da hierarquia militar (os praças) incluía, nessa época, as seguintes graduações, em ordem crescente: Soldado, Anspeçada, Cabo (patente suprimida da escala hierárquica em 1924), Furriel, Segundo-Sargento e Primeiro-Sargento. Oficiais eram os militares que ocupavam os seguintes postos: Alferes, Segundo Tenente, Primeiro Tenente, Capitão, Major ou Sargento-mor, Tenente-General, Coronel. Depois desses, havia ainda os postos de oficiais generais: Brigadeiro, Marechal-de-Campo, Tenente-General e Marechal-de-Exército (CASTRO, Celso. Exército e nação: estudos sobre a história do exército brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012, p. 12).

50

campanhas eleitorais marcadas pela violência – rotina facilmente constatada quando analisadas as fés de ofício dos militares que foram a Conselho de Guerra (anexo A). Alfredo Malan (1977, p. 37) descreveu da seguinte forma a rotina dos soldados nos acampamentos: “Além das obrigações de faxinas, a prosa quarteleira, as esporádicas guardas com seu fraseado caracteristicamente impolido, a mínima conservação do armamento e do equipamento e, no mais, o lento escoar das horas.” Para muitos, ainda poderiam ser consideradas condições melhores do que as que desfrutavam antes de seu ingresso na carreira militar. O advento da República não trouxe, em seus anos iniciais, até 1916, mudanças substanciais nessa sistemática de preenchimento dos efetivos, nem mesmo em termos dos lugares sociais onde se operava o recrutamento (ALMEIDA, 2010, p. 158; SCHULZ, 1994). “Com exceção do Rio Grande do Sul, parece que o recrutamento de oficiais, ao longo do Império e da República adentro, passou a ser predominantemente dentro da própria organização e entre grupos sociais de renda mais baixa e status menos que nobre.” (CARVALHO, 1997, p. 187). Há tempos havia a intenção de se criar uma sistemática de recrutamento baseada em sorteio. Analisando a Lei do Sorteio, de 1906, Celso Castro (2012, p. 55) diz que, “Com a adoção do sorteio militar, todas as classes sociais passariam a estar representadas no Exército.”. O sorteio acabaria com o “divórcio monstruoso” – na expressão de Olavo Bilac, citado por Celso Castro como um dos defensores do sorteio – entre Exército e sociedade, “passando este a representar fielmente a composição da sociedade” (Ibidem, p. 56). Segundo Peter Beattie, o século XX começou com iniciativas de redução do número de crimes e faltas disciplinares com vistas a atingir significativas melhorias na imagem pública do Exército. Mudanças essas, observadas, de fato, especialmente a partir de 1916, que o autor atribui a transformações na composição e condições de serviço nas fileiras. A partir de 1920, observou-se a redução drástica de crimes de “deserção, insubordinação, assaltos e homicídios à medida que as fileiras estavam em fase de expansão e a hierarquia do Exército era fustigada pelas revoltas tenentistas”. (BEATTIE, 2009, p. 393). Feitas as considerações acima, voltemos o olhar de maneira mais específica ao Pessoal da Estratégica. Suas fés de ofício, emitidos pelo 5º Distrito Militar de Curitiba, contém informações detalhadas sobre o Alferes Torres, maior responsabilizado pelos crimes, e os outros quatro soldados que responderam a Conselho de Guerra. As fés de ofício assemelham-

51

se a fichas funcionais modernas, cujos registros vão desde as características físicas do indivíduo, dados sobre filiação, naturalidade, se ingressou no Exército de forma voluntária ou recrutada até os locais de passagem, por onde acampou, campanhas das quais participou, conflitos em que se envolveu e outros dados44. Sobre os demais indiciados, o volume de informações é menor, constante nos interrogatórios e demais componentes do processo. É certo que, quando se quer investigar o passado das camadas subalternas, a disponibilidade de registros é sempre muito reduzida, e suas histórias contrastam com aquelas de militares de origens mais nobres, que puderam até mesmo, em alguns casos, escrever e produzir discursos próprios sobre si45. Um processo criminal, em alguns casos, pode ser o único registro que se tem sobre a vida dos subalternos e, apesar de seu caráter institucional, interessa de maneira especial ao historiador, à medida que “permite o resgate de aspectos da vida cotidiana [...], penetra no dia-a-dia dos implicados, desvenda suas vidas íntimas, investiga seus laços familiares e afetivos, registrando o cotidiano de suas existências”. (MACHADO, 1987, p. 23). Embora os assassinatos de Estephanio e Lucio nos interessem de maneira particular, dadas as circunstâncias e especialmente os grupos sociais/culturais envolvidos, essas outras categorias de informações revelam os meandros da tessitura social, que nesse momento interessam mais aos historiadores do que aos juízes. 44

Sobre as fés de ofício, ver MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Inquéritos Disciplinares e Fés-de-Ofício: Fontes documentais para a análise do comportamento estudantil da mocidade militar no final do Império (Escola Militar/RS). Métis, Caxias do Sul, v.1, p. 43-172, 2004. 45 Outra situação é a dos oficiais, cujas trajetórias normalmente são bem documentadas, em fontes como revistas do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil e Ministério do Exército, relatórios, boletins emitidos pelo Exército, fontes produzidas pela imprensa e escritores, em sua maioria, militares; também em fontes documentais pessoais como cartas e diários. São ilustrativas as carreiras histórias de Francisco José de Souza Soares de Andréa, marechal, e de Alfredo Malan d’Angrogne, general. Trata-se de histórias que podem ser buscadas e contadas em raízes muito antigas que remontam ao período medieval europeu, suas lutas entre “guelfos e gibelinos”, na Gênova do século XIII (ANDRÉA, José. O Marechal Andréa nos relevos da história do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977, p. 15), e dos valdenses que “derramaram prazerosamente seu sangue para que se fortalecesse a fé que os norteava”, e que provêm do vale do rio Angrogne (MALAN, op. cit., p. 11); histórias de famílias honradas, cujas trajetórias de lutas tentam explicar as origens da honra e coragem de descendentes que agora se fazem militares e continuam a dar curso à trajetória dos ancestrais com a mesma força. O biógrafo de Andréa elaborou a árvore genealógica de 11 gerações da família Soares de Andréa (ANDRÉA, op. cit., p. 24), e afirma existirem, no acervo do biografado, cerca de “1.200 papéis inéditos, fichados em entidades oficiais, em torno de demarcações de limites, memórias militares e geográficas, relatórios, assentamentos individuais, ofícios, cartas confidenciais e os autógrafos sempre com apóstrofo (d’Andréa)” (ANDRÉA, op. cit., p. 25-26). Sobre a criação de arquivos pessoais, ver HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, Memória e Resíduo. Uma reflexão sobre Arquivos Pessoais e o caso Filinto Muller. Estudos Históricos, Rio de Janeiro (CPDOC-FGV), v. 10, n. 19, p. 41-66, 1997; FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o Arquivo de Gustavo Capanema. Estudos Históricos, Rio de Janeiro (CPDOC-FGV), v. 11, n. 21, p. 59-87, 1998; RIBEIRO, Renato Janine. Memórias de si, ou... Estudos Históricos, Rio de Janeiro (CPDOC-FGV), v. 11, n. 21, p. 35-42, 1998.

52

Fazendo uso das palavras de Susann Caulfield (2000, p. 39-40), pretende-se encontrar [...] nas entrelinhas dos depoimentos, evidências de como vítimas, réus e testemunhas descrevem não somente os acontecimentos que os levaram à Justiça, mas também diversos relacionamentos sociais e condutas que eles consideravam corretos ou errados. Mesmo quando mentem ou inventam posturas morais, fazem-no de uma forma que acreditam ser verossímil e, portanto, ajudam a traçar os limites da moralidade comum.

Com base nas informações disponíveis no processo-crime e na bibliografia já produzida sobre o tema, procuramos traçar um ligeiro perfil desses onze militares. O primeiro dado a ser observado diz respeito aos locais de seus nascimentos; todos são nacionais e provenientes dos seguintes estados brasileiros: Pernambuco (2 soldados); Paraíba do Norte (2); Bahia (2); Alagoas (1); Rio de Janeiro (1); Mato Grosso (1); Paraná (Curitiba) (1); e Rio Grande do Sul (1). Dentre os processados, dois deles, antes de serem destacados para a Comissão Estratégica, haviam sido destacados, um (Alfredo José Ribeiro) para a Colônia Militar de Chapecó, e outro (João Antônio da Silva) para a Colônia Militar de Chopim e, antes disso, para a Bahia, onde participou, em 1897, da campanha de Canudos. Quatro testemunhas de defesa do Alferes Torres, que depuseram no Conselho de Guerra, eram também militares – um de Pernambuco, um de Goiás e os outros dois paranaenses. Os documentos judiciais que envolvem militares, trazem como réus ou vítimas sujeitos oriundos, em sua maioria, da região. Destacamos o inquérito policial militar datado de 1900 em que foi réu o colono Antônio José Ferreira, o qual feriu com tiro de espingarda o Cabo de Esquadra do 14° Regimento de Cavalaria Oscar Antonio da Fonseca, no destacamento da Colônia Militar de Chapecó. Das sete testemunhas que prestaram depoimento, seis eram militares; destes, dois eram naturais de Pernambuco, dois da Bahia, um de Sergipe e um do Rio de Janeiro, sendo também a vítima natural da então capital federal46. Na Colônia Militar do Chapecó, o Relatório do Presidente da Província do Paraná de 1882 dizia que os soldados da Colônia e suas famílias provinham em sua maioria do Norte. O documento apresentava uma preocupação com as condições de salubridade desses soldados, habituados a condições climáticas diferentes. As condições do lugar, em geral, eram excelentes, mas “uma ou outra enfermidade que tem apparecido é devida ao clima frio

46

IP/1900/Colônia Militar do Chapecó.

53

d’aquella parte da Provincia que necessariamente deve influir na saude dos soldados e de suas famílias, em geral do norte do Imperio”47. As regiões Norte e Nordeste eram as maiores fornecedoras de soldados para as atividades militares do Sul. Boa parte dos soldados que lutaram na Guerra Farroupilha foram recrutados nessas regiões, por ocasião de rebeliões ocorridas naquelas províncias, e mandados para o sul do país (RIBEIRO, 2009)48. Tais práticas vinham ocorrendo desde os tempos de colônia. A política portuguesa de recrutamento para a Colônia do Sacramento, em fins do século XVIII, por exemplo, recrutou soldados em Portugal e no Brasil, sendo o maior contingente das capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, seguidas de Bahia e Pernambuco. A participação da Bahia foi constante, enquanto Pernambuco teve participação em momentos mais críticos, como quando do cerco à Colônia, de 1735 a 1737 (POSSAMAI, 2011, p. 20). Desterrar indivíduos considerados delinquentes era uma prática comum; remonta à Europa dos princípios da era moderna e encarnava os anseios das populações entre as quais se fazia a arregimentação: de se verem livres dos “indesejados”, que ameaçavam a ordem. Acabava sendo uma solução condizente com os paradigmas aceitos à época, de que os desajustados precisavam de disciplina, embora fossem tênues os limites entre o que se considerava delinquência ou vadiagem (RIBEIRO, 2009, p. 17-39). Ao mesmo tempo, tal forma de recrutamento constituía uma prática contraditória, uma vez que, ao obrigar criminosos e delinquentes a sentar praça, o Exército passava a abrigar os de baixo status e desajustados socialmente, trazendo para junto de si um desafio ainda maior. Uma vez que o Exército também tinha pretensões de disciplinar a população, especialmente nos casos de rebeliões, boa parte de seus membros era assim constituída justamente por aqueles que antes haviam sido potencialmente alvo de suas próprias práticas disciplinadoras (BEATTIE, 1999). Segundo o jornal O Militar, “O Exercito sendo caza de correcção, o soldado deixa de ser soldado para ser forçado; a farda não é o uniforme do defensor da patria, mas o distinctivo 47

CARVALHO, Carlos Augusto. [Relatório] 1º out. 1882, apresentado à Assembléia Legislativa do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 109. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. 48 Alfredo d’Angrogne, que frequentava a Escola Militar no Rio de Janeiro, começou sua carreira militar como soldado raso, destacado em Aracaju. Em suas Reminiscências da Escola, questionou: “Qual foi a minha falta? Ainda o pergunto!” e sugeriu como explicação: “Provavelmente por ter estado no dia 15 de novembro impedindo que Sua Majestade Deodoro fosse proclamado ditador! Provavelmente por ter tido alguma influência na minha Companhia! Provavelmente, também, por ter me destacado um pouco o ano passado.” (Revista dos Militares, 1912 apud MALAN, op. cit., p. 34).

54

de um criminoso que se corrige.”49 Além dos embaraços causados ao andamento das operações, o comportamento dos soldados preocupava os oficiais, cuja integridade física estava em jogo (MENDES, 1998, p. 50). Os dados a seguir nos permitem visualizar, de forma mais aproximada, a situação dos militares destacados em Jangada, em 1900.

Tabela 1 – Carreira militar do Pessoal da Estratégica Nome do indiciado

Patente na hierarquia militar

Ano de nascimento

Idade com que ingressou

Idade em 1900

Forma de ingresso

1870 1877 1879 1882

Ano de ingresso no Exército NI* 1898 1893 1898

Francisco Corrêa Torres Herculano Gomes da Silva Alfredo José Ribeiro Sebastião Bento Thomas do Nascimento João Antonio da Silva Manuel Joaquim de Araujo Marcelino Ferreira da Silva Liberino Paulo da Costa Benjamim Genésio Dorotheu Tito Correia de Mello José Freire da Silva

Alferes Cabo da Guarda Soldado Soldado

NI 21 15 16

30 32 21 19

NI Voluntário Voluntário Voluntário

Soldado Soldado Cabo de Esquadra Anspeçada Soldado Soldado Anspeçada

1877 1872 1872 1873 1879 1878 1862

1894 1900 1889 1897 1896 1898 1889

15 27 17 24 17 20 27

21 28 28 27 21 22 38

Voluntário NI Voluntário NI NI NI NI

Fonte: PC/1900/General Carneiro (elaboração do autor) * NI – Não Informado.

Das informações disponíveis, chama-nos especial atenção que quatro dos denunciados ingressaram no Exército, pode-se dizer, bem jovens (aos 15, 16 e 17 anos) – embora nem tão jovens para os padrões e condições de vida da época, em que os jovens eram forçados a trabalhar muito mais cedo do que nos dias atuais. Outro dado que nos ajuda a pensar a condição social desses militares é o fato de que, dos onze que compõem a amostra, cinco ingressaram voluntariamente. São dados que podem indicar que a carreira militar constituía uma alternativa para grupos sociais mais baixos, os quais, de outra forma, não ascenderiam socialmente. Silvia Capanema de Almeida (2010, p. 155).alerta para o fato de que “É preciso estar atento também para a existência de casos em que a carreira de praça de Marinha e do Exército podia ser uma alternativa, sobretudo para escravos, livres e libertos.” Quanto ao estado civil, são soldados em sua maioria solteiros (apenas o Alferes Torres, o Cabo Marcelino e o Anspeçada José Freire eram casados). A condição de pobreza 49

O Militar, Rio de Janeiro, ano 1, n. 7, 26 out. 1854. Brasil, p. 4. Disponível em: . Acesso em 17 jul. 2014.

55

podia, em muitos casos, constituir-se em impedimento para que oficializassem uniões matrimoniais. Para Beattie (2009, p. 243)., “Impostos matrimoniais e, em muitas áreas, a falta de clérigos tornavam a espera por uma cerimônia oficial insustentável para as camadas pobres.” De acordo com os autos criminais consultados, eram comuns os estados de uniões conjugais não oficializadas e, em vários desses casos, as amásias também provinham de estados do Norte e Nordeste, acompanhando os soldados. As situações de amasiamento geravam, por vezes, atritos entre os soldados. No caso ocorrido em 191750, em que o soldado do Regimento de Segurança de Palmas José Raymundo Vasconcellos atirou em Maria de Menezes, o réu teria questionado por que ela fê-lo gastar muito comprando coisas para a casa e depois não quis mais casar-se. As testemunhas eram procedentes dos estados de Pernambuco, Sergipe e Bahia. Dentre elas, algumas eram mulheres que acompanhavam os soldados, sendo uma delas irmã da vítima, amásia de uma das praças. A vítima, de 17 anos, afirmou em seu depoimento ter vindo de Curitiba iludida por cartas falsas do réu, e que não poderia ficar com o Soldado José Raymundo porque havia a questão da raça, “sendo ela branca e ele verdadeiramente negro”. Outro caso ilustrativo é o da menor Januária Maria dos Santos, de 14 anos, que veio de Curitiba com seu amásio, o Soldado Manoel Pereira da Silva Carneiro. No depoimento que prestou no inquérito aberto por conta de agressões físicas que recebeu do amásio, declarou que estavam separados há quatro dias e que as brigas entre o casal, que atribuiu à presença de sua mãe e filho, eram constantes. A tabela que segue apresenta dados relativos a características étnicas, ocupação e alfabetização dos réus, aos quais foram juntadas as fés de ofício. Sobre os demais, essas informações não constam nos autos.

50

PC/1917/Palmas.

56

Tabela 2 – Características físicas e ocupação dos indiciados pelos crimes de 1900 Nome

Cor

Olhos

Cabelos

Altura

Sabe ler e escrever

Ofício

Francisco Corrêa Torres Herculano Gomes da Silva Alfredo José Ribeiro Sebastião Bento Thomas do Nascimento João Antonio da Silva

NI Parda Parda Parda

NI Castanhos Pretos Pardos

NI Pretos crespos Pretos carapinhos Carapinhos

NI 1,60 1,75 1,66

Sim Sim NI Sim

NI Sem ofício Cozinheiro Tanoeiro

Preta

Pretos

Carapinhos

1,70

Não

Sem ofício

Fonte: PC/1900/General Carneiro (elaboração do autor)

Eis aí o “soldado típico”: “mestiço, sem qualificação, iletrado e solteiro” (BEATTIE, 2009, p. 240). Desses dados, os mais instigantes dizem respeito ao cuidado em registrar dados sobre a cor da pele e dos olhos, bem como sobre características dos cabelos dos acusados, o que revela relações de poder fundadas em um processo histórico que subjugou etnias51. Como a maioria dos envolvidos nos assassinatos são homens, negros, jovens e solteiros, é possível que questões de masculinidade e honra aí se cruzem. Celso Castro (2012, p. 84), falando sobre a origem social e étnica dos soldados, afirma que, segundo os oficiais do Exército, aqueles eram recrutados entre aquilo que a sociedade denominava “escória”, o “rebotalho” da sociedade. Além da cor da pele (parda e preta), a cor dos olhos e os detalhes dos cabelos (cor e tipo crespos ou carapinhos), na totalidade (onde aparecem os dados), caracterizam indivíduos de ascendência escrava, o setor social mais excluído e alijado do acesso aos bens e possibilidades de ascensão, mesmo econômica52. Salienta-se que, em fins do século XIX, houve uma “mudança real nas origens sociais dos

51

Esses dados são indícios de um debate e de um processo bem mais amplo, que envolvia a medicalização da sociedade e o racismo científico, ao que nos deteremos no capítulo 4 (ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993). 52 “Os assentamentos servem-se de quatro grandes categorias para cor da pele – branca, morena, parda e preta – e de três grupos menos comuns – fula (pele negra de pessoas originárias da Guiné), indiática (índios) e caboclo (geralmente uma mistura entre índios e brancos, também sugeria origem interiorana). Caso se reduzam essas categorias a branca, mestiça (parda e morena), negra (inclusive fula) e índia (indiática e cabocla), cerca de 20% dos soldados eram brancos, 25% negros, 2% índios e mais de 50% mestiços. Pelo censo de 1890, a população do Brasil era de 44% branca, 41% mestiça e 15% negra. Portanto, os negros e mestiços estavam super-representados enquanto os brancos estavam sub-representados. A composição racial dos praças refletia a hierarquia racial do Brasil.” (BEATTIE, Peter M. Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil, 1864-1945. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 239). Sobre as classificações de cores, debate muito em voga entre a intelectualidade europeia e brasileira da segunda metade do século XIX, ver MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: significado da liberdade no sudeste escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Ver, também, SOARES, Mariza. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

57

generais nos últimos anos do século XIX, a mudança nas origens sociais do oficial subalterno durante este período é, parcialmente, uma ilusão” (SCHULZ, 1994, p. 30). Segundo Beattie (2009, p. 238), os documentos “incluem descrições detalhadas dos aspectos físicos dos praças – uma prática não estendida aos oficiais”, o que explica por que não temos essas informações a respeito do Alferes Torres. Para o autor,

Antes que a fotografia se tornasse uma tecnologia viável para identificação, descrições escritas minuciosamente eram a melhor alternativa. Os retratos dos praças guardam uma semelhança com aqueles que descreviam escravos fugitivos publicados nos jornais antes da abolição. Eles incluíam altura, cabelo (cor e textura), olhos, nariz, lábio, cor da pele e outras marcas distintivas como cicatrizes e tatuagens. Como muitos estudos mostraram, a classificação racial no Brasil depende sobretudo dos olhos de quem vê. (BEATTIE, 2009, p. 238-239).

O registro de dados de natureza física era a alternativa para, semelhantemente ao procedimento adotado para encontrar um escravo fugitivo, encontrar soldados que abandonavam as fileiras dos quartéis. “Ao contrário dos censos, os arquivos do Exército visavam facilitar a identificação de desertores” (BEATTIE, 2009, p. 239). O número de deserções era menor entre os oficiais. Outro dado importante diz respeito à ocupação dos processados: entre aqueles sobre os quais o processo fornece informações, dois aparecem como sem ofício, um era cozinheiro e outro tanoeiro. Para José Iran Ribeiro (2009, p. 71), a categoria que aparece com mais frequência nos materiais que analisou é a de “sem ofício”; segundo o autor, trata-se dos considerados vadios53, aqueles que não eram protegidos por alguém influente, os “desclassificados sociais”, que se tornavam alvo do enquadramento das autoridades (ibidem, p. 15). O autor cita o exemplo de Pedro José de Santana, recrutado em Pernambuco, por

[...] conduta irregular e, principalmente, porque constava “com toda a certeza que ele intentava cometer um assassinato, que estando fora daqui não poderá executar”, e por isto deveria “passar para o Exército e servir no sul, a fim de que não volte aqui tão 53

Nos períodos da Colônia e do Império, vadios já eram classificados nos códigos. O Código Penal de 1890 rompeu com as ordenações ao extinguir a pena de morte, mas a mentalidade colonialista e escravocrata, sacramentada por séculos de história se manteve em artigos que mantiveram a “prisão com trabalho obrigatório para os vadios e capoeiras” (Livro III. Capítulo XIII: Dos vadios e capoeiras. Art. 399). Legislações posteriores (1902 e 1921) mantiveram artigos específicos com pena de detenção em Colônias Correcionais. Ver PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru, SP: Jalovi, 1980. Para uma origem mais antiga do uso do termo vadio e da forma como foi absorvido no Brasil, ver PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas: os degredados no Brasil-Colônia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil/Fundação Biblioteca Nacional, 2000.

58

cedo”; ou ao rio-grandense Vitorino Machado da Costa, caracterizado como alguém sem “família nem obrigação [...] se não for farrapo ou soldado [imperial] virá a ser ladrão”, melhor era sentar-lhe praça. Conforme o ministro da guerra, eram tipos a quem “convinha dar honesto meio de vida”. (RIBEIRO, 2009, p. 15).

Claro que o rótulo de vadio era uma forma de justificar o afastamento de certos indivíduos do convívio, certamente mais por incômodos que causava do que propriamente pela ausência de meios de vida.

O conceito de vadiagem se constrói na mente dos parlamentares no fim do Segundo Reinado basicamente a partir de um simples processo de inversão: todos os predicados associados ao mundo do trabalho são negados quando o objeto de reflexão é a vadiagem. Assim, enquanto o trabalho é a lei suprema da sociedade, a ociosidade é uma ameaça constante à ordem. O ocioso é aquele indivíduo que, negando-se a pagar sua dívida para com a comunidade por meio do trabalho honesto, coloca-se à margem da sociedade e nada produz para promover o bem comum. (CHALHOUB, 2001, p. 73-74).

No caso dos militares aqui estudados, quando têm profissão, são ocupações, de acordo com os padrões vigentes, de irrelevância – aparecem as profissões de cozinheiro e tanoeiro. José Iran Ribeiro (2009, p. 72) cita a profissão de tanoeiro entre os ofícios não especializados, comuns entre escravos, libertos e brancos livres pobres, profissionais de baixa condição social. É bastante conhecido o trecho da obra de Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, em que assim se refere a um de seus personagens: “Era tanoeiro de ofício, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria.” Quando o processo foi à esfera cível, as profissões declaradas pelos soldados, estabelecidos então na região de Palmas, foram de pedreiro, pintor e agricultor. Os crimes ocorreram num contexto fortemente marcado por transformações pelas quais passava o país na virada de século XIX para o XX, mas que, no entanto, demonstrava indícios claros de permanências de estruturas, práticas e mentalidades construídas ao longo de cerca de 400 anos de escravidão. Embora não estejamos buscando os culpados, os crimes nos intrigam justamente pela natureza social dos envolvidos. De um lado, militares subalternos recrutados entre a “gente miúda” da sociedade, mas, nesse momento, pertencentes a uma instituição que assume e chama para si a responsabilidade pela ordem e desenvolvimento do país – são eles que, entre outras coisas, constroem estradas estratégicas, acalmam a ira de camponeses embriagados. Do outro, camponeses imigrantes atraídos pela propaganda governamental, cujas vidas se

59

(re)constroem em um ambiente hostil e desafiador – vale lembrar que, além da violência sofrida pelos ataques citados, as comunidades de imigrantes poloneses estiveram em meio a constantes ataques de índios botocudos.

1.2.2 Poloneses/austríacos na colonização do Paraná

A criação do regime republicano no Brasil procurou ordenar, redefinir papéis sociais, romper com o “atraso” e a “ignorância” resultantes de cerca de 400 anos de escravidão. Cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro foram reformadas e modernizadas numa tentativa de se conformarem aos padrões de cidades europeias. Essa política afastou dos centros das cidades os pobres, indesejados, que não se encaixavam nos padrões de vida tidos como desejáveis para a época, e que contrastavam com o novo cenário pretendido54. No campo, o “atraso” era considerado ainda maior. O camponês pobre, incauto, considerado por muitos o típico Jeca Tatu, personagem doente e tomado de preguiça eternizado por Monteiro Lobato em suas obras de literatura infantojuvenil, constituía-se em um empecilho ao progresso. Campo e camponês precisavam integrar-se ao Brasil do progresso; fazia-se necessário levar os avanços da civilização às regiões mais distantes dos maiores centros urbanos da época. A frase da bandeira republicana sintetizava o desejo de setores das elites políticas e econômicas, e muitos esforços seriam envidados no sentido de se garantir a ordem e o progresso. Segundo José Murilo de Carvalho (2007, p. 131), o povo esteve presente nos anos iniciais da República, em revoltas, agitações e massacres, embora ausente de sua proclamação. Para o autor, o povo brasileiro possuía três caras: (1) a das estatísticas; (2) a que aparecia nos momentos legalmente determinados para a manifestação política – as eleições; e 54

Em reincidentes discussões, intelectuais e políticos debatiam sobre como resolver o problema da falta de um povo condizente com os padrões europeus de civilização e progresso. Geralmente essas discussões cruzavam dois grandes processos sociais: a abolição e a imigração, contempladas sob o prisma do racismo científico. Era preciso embranquecer o povo brasileiro com a importação maciça de imigrantes europeus, mas nem todos os estrangeiros que para cá vinham estavam preparados para enfrentar as expectativas que os cercavam em termos da moralização dos costumes que deveriam promover. Outrossim, atritos interétnicos foram frequentes, evidenciando as difíceis relações entretidas por grupos de procedência variada, que, em muitos casos, enfrentavam nas ruas e em suas próprias casas grupos socioprofissionais (como os militares) que se assumiam (com suas fardas e distintivos) como legítimos representantes da Nação. Ver CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim. 2. Ed. Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 2001; CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril – cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; VILLAS BOAS, Gláucia; GONÇALVES, Marco Antônio. O Brasil na Virada do Século: o debate dos cientistas sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

60

(3) a da rua: povo ativo, que agia por conta própria, direta ou indiretamente motivado pela política (ibidem, p. 133). Era necessário conter impulsos e maus instintos a todo custo55. Nesse contexto, o imigrante europeu foi considerado possuidor das aptidões necessárias à construção de um país pautado em valores de civilidade e trabalho, capaz de contribuir na construção de uma nação próspera. De certo modo, encarnou o tipo desejado, em oposição ao trabalhador pobre brasileiro, considerado incapaz. Esse desejo já se fazia presente no período do Império, e estimulou o “branqueamento”, pretendido nas esferas biológica e social. Boa parte dos imigrantes deparou-se com situações contraditórias em termos da propaganda que se fazia e a realidade que encontravam ao chegar ao país. Os olhares lançados sobre as trajetórias de imigrantes para o Brasil oscilaram entre a exaltação e supervalorização – o discurso recorrente dos “braços que construíram”, que “desbravaram” – e a desqualificação pura e simples – o imigrante como o “inapto”, que traz vícios de seu país de origem, discurso amparado por vezes em pressupostos pseudocientíficos. Enfim, esse contraste entre histórias de “sucessos escritos sob a luz da modernidade” e outras, interessadas em fazer emergir a “pobreza dos bastidores” (MENEZES, 1998, p. 2). Desde a vinda da Família Real Portuguesa ao Brasil, em 1808, o país passou a receber levas de imigrantes oriundos de diversos países europeus. Com a implantação do regime republicano, a imigração foi ainda mais estimulada. O decreto de 28 de junho de 1890, do Marechal Deodoro da Fonseca, estabelecia:

É inteiramente livre a entrada nos Portos da República dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal do seu país. A essa provisão liberal acrescenta-se a cláusula: Excetuando os indígenas da Ásia ou da África, somente autorizações do Congresso Nacional poderão ser admitidas, de acordo com as condições estipulados.56

55

Os soldados e marinheiros foram personagens assíduos nos documentos judiciários e policiais durante a República Velha (e mesmo antes). Suas manifestações coletivas e ações individuais expressavam sentimentos e percepções que muitas vezes se opunham ao encaminhamento político republicano. Ver CASTRO, Celso. Revoltas de soldados contra a república. In: CASTRO, 2004 op cit; CARVALHO, 1997, op cit. A historiadora norte-americana Joan Meznar pesquisou os pobres honrados e sua forma de se servir do recrutamento como forma de distinção da escória, dos remediados em geral. Assim, pensamos que crimes como o ocorrido em 1900 em General Carneiro só poderão ser compreendidos se inseridos nessas perspectivas de acirramento dos confrontos entre nacionais e estrangeiros. (MEZNAR, Joan E. The Ranks of the Poor: Military Service and Social Differentiation in Northeast Brazil, 1830-1875. Hispanic American Historical Review, n. 72, v. 3, p. 335-351, ago. 1992). 56 BRASIL. Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890. Regulariza o serviço da introdução e localização de imigrantes na Republica dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: Acesso em: 04 jul. 2015.

61

O decreto deixa claro quais eram as pretensões do governo recém-implantado no Brasil: eram desejados indivíduos “aptos para o trabalho” e que não apresentassem propensões ao crime, ou seja, o tipo ideal de cidadão que o novo regime pretendia; eram indesejados os “indígenas da Ásia ou da África”, sendo preocupante o fato de que os africanos e afrodescendentes já agregavam a população nacional em percentuais bem acima dos desejados. Após a abolição, lançados à própria sorte, sem nenhum amparo jurídico e tendo lhes restado ocupações informais e subalternas, passaram a ser encarados como vagabundos e avessos ao trabalho57. Segundo Lená Medeiros de Menezes, as políticas de incentivo à imigração expressavam clara preferência por algumas nacionalidades (mediterrâneas, italiana; os eslavos não estavam no topo da lista). Muitos imigrantes se estabeleceram no país em um momento crítico, tempo marcado por “distanciamentos profundos entre o discurso legal, que contemplava postulados liberais, e as práticas políticas autoritárias do cotidiano, enraizadas numa mentalidade escravista e latifundiária” (MENEZES, 1998, p. 3). Nesse contexto, o Paraná da segunda metade do século XIX era uma província jovem; seu governo incentivou a imigração como forma de preencher os “vazios demográficos” e a província passou a receber imigrantes oriundos de diversos países europeus. Para alguns pesquisadores, a colonização do estado diferenciou-se da observada em outras províncias como Santa Catarina e Rio Grande do Sul pela razão de que nestas a tendência foi a de se formaram núcleos de colonização mais específicos, cujas marcas das nacionalidades às quais se credita a ocupação são responsáveis pela formação de ilhas culturais, que insistem ainda hoje em reforçar diferenças étnicas. O presidente da Província do Paraná, José Francisco Cardoso justificou, em 1860, a necessidade de “encher de população activa o vasto territorio da provincia, onde tudo floresce á força da natureza”, defendendo que o imigrante teria facilidade em se adaptar dado o “clima

57 Ver AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004. A autora aborda uma preocupação que esteve presente nos debates que se deram no Brasil desde o século XVIII em relação ao negro: o que fazer com o grande contingente de população africana e afrodescendente que havia no país; esse debate dividiu opiniões de abolicionistas, escravocratas e intelectuais da época, cuja tendência era a de encarar a população negra com desconfiança, um problema para elites e governantes. Embora aspectos da história, interesses e a capacidade de autodeterminação dos próprios negros não fizessem parte da maior parte das pautas, o negro é tratado pela autora como importante sujeito da história e dos rumos que o debate tomou, como, por exemplo, em relação às questões abolicionistas. Ver também CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Negros, loucos negros. Revista da USP, São Paulo, n. 18, p. 146151, 1993. A autora analisa casos de escravos alforriados em Salvador no final do século XVIII que acabavam internados como loucos ou doentes.

62

análogo ao de seu paiz natal” e a “salubridade que tanto o distingue”, sendo tudo isso “título de mais para confíar do futuro que se antolha”58. A exaltação do imigrante europeu, laborioso e salubre, em oposição ao escravo brasileiro, é manifesta ainda no relatório que José Cezário de Miranda apresentou ao comendador Ildefonso Pereira Correia, ao considerar a “immigração como fator ethnico de primeira ordem, destinada a tonifícar o organismo nacional abastardado por vícios de origem e pelo contacto que teve com a escravidão”59. Nesse contexto, a imigração eslava (poloneses, ucranianos, austríacos) teve início na última década do século XIX, com incentivos na forma de transporte gratuito e concessão de terras por parte do governo brasileiro, numa política de substituição da mão de obra escrava e de ocupação de terras promissoras ao plantio. A partir da década de 1890, mais especificamente, entraram em cena os imigrantes austríacos, procedentes da região da Galícia Oriental. Região essencialmente agrícola, a Galícia apresentava um dos maiores crescimentos demográficos da Europa, cuja produção agrícola diminuía, fator que impulsionou o movimento primeiramente em direção aos Estados Unidos e, posteriormente, em direção ao Brasil; aqui foram recebidos e encarados como uma totalidade homogênea, sem diferenciação. No Paraná, os imigrantes poloneses e ucranianos ocuparam a região do vale do rio Iguaçu e parte das terras contestadas, cujas terras contavam com aproximadamente 84% de cobertura vegetal original. Em General Carneiro, começaram a se estabelecer por volta do ano de 1892 e dedicaram-se, inicialmente, à agricultura. As fontes apontam para a problemática da identidade étnico-cultural desses imigrantes que entraram no país, ora como austríacos, uma vez que a Galícia pertencia na época ao Império Austro-Húngaro, ora como poloneses, em função de semelhanças étnicas, possivelmente cultuais e biotípicas. Normalmente, as repartições brasileiras encarregadas dos migrantes denominavam de polacos austríacos os poloneses, e de polacos russos os ucranianos.

58

CARDOSO, José Francisco. [Relatório] 1º mar. 1860, apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná, p. 62. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. 59 RIBEIRO, Miranda. [Relatório] s/d 1888C, apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná, p. 26. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2014.

63

As testemunhas do processo criminal que deu origem a esse trabalho foram identificadas como naturais da Áustria (Galícia). Em outros documentos judiciais do período estudado, réus e vítimas, nos autos de qualificação e interrogatórios, mencionam sua nacionalidade austríaca, e a Galícia como o lugar de nascimento. Em alguns casos, os locais de nascimento são identificados de forma ainda mais específica: colônias Zastavi, Dinisca, Butine, Crevink, Meciun, Hauchel, Novosulki Przednic, Toruca, Kocochença, Martino, Presta, Listcha, Gesostau, ou, ainda, como poloneses “da Alemanha”, nascidos próximo a Varsóvia. Em função de que os ucranianos acabaram por se estabelecer em áreas ocupadas por outras etnias, tenderam a ser absorvidos pela etnia majoritária e considerados, especialmente pelos nacionais, como pertencentes ao grupo dos eslavos, poloneses, no caso, como se formassem uma cultura homogênea (BORUSZENKO, 1995, p. 1). Isso explica o uso comum do termo polaco nos processos criminais, inclusive nos depoimentos prestados pelos próprios imigrantes: é muito provável que, nesses casos, o emprego do termo tenha sido uma opção do escrivão e não do depoente. A província da Galícia era situada a noroeste do Império Austro-Húngaro, representava em torno de 10% de sua área total e abrigava 15% de sua população total. As relações de trabalho e produção remontavam à Idade Média: nobres proprietários asseguravam seus direitos de cobrança de obrigações e impostos feudais dos servos, em relações pautadas por ameaças e amedrontamento, que somente na segunda metade do século XIX passaram a sofrer alguma espécie de alteração. Por conta dessa realidade, quando vieram para o Brasil, em meados de 1890, os galicianos “trouxeram uma visão de mundo essencialmente camponesa e tradicional” (ANDREAZZA, 1996, p. 23). Os imigrantes oriundos da Galícia se autodenominavam rutenos, sendo que a denominação ucranianos passou a aparecer apenas após a década de 1920 em atas paroquiais consultadas por Andreazza (1996, p. 3)60. A Galícia e a Bukovina constituem a atual Ucrânia,

60

Nos processos-crime consultados, o termo mais usado, além dos nacionais, pelos próprios imigrantes, é polaco. O termo ruteno aparece no PC/1915/General Carneiro, fl. 4, no qual são réus João Clemente Tesseroli e outros. Em carta constante dos autos do processo, assinada por Guerino Lubi e endereçada a Inácio Kukhul, subdelegado do distrito de General Carneiro, o remetente, após descrever as circunstâncias em que se encontravam, na igreja da comunidade, diz: “João Tesseroli avançou-me com uma faca em punho dizendo hoje quero beber sangue de rutheno.”

64

sendo que à época do século XIX ambas encontravam-se sob o domínio do Império AustroHúngaro. Em sua própria língua, os rutenos denominavam-se rusyny (ibidem, p. 15)61. Os rutenos, em sua maior parte, eram camponeses submetidos à nobreza polonesa. Andreazza (1996, p. 17) cita um recenseamento feito em 1880, no qual consta que, de 5.958.907 habitantes, 40% eram poloneses e 40% rutenos, sendo o restante da população constituída de judeus e alemães. Os poloneses ocupavam a Galícia Ocidental na condição de proprietários e também de camponeses. Na Galícia Oriental, eram uma minoria que constituía uma nobreza detentora de terras. Naquela região, os rutenos – cerca de dois milhões e meio de habitantes – eram camponeses e viviam, em sua grande maioria, na zona rural. Opressão, violência, medo e ignorância marcaram a realidade do povo dessas regiões. Na primeira metade do século XIX, por parte da coroa austro-húngara, não havia um efetivo estímulo ao estudo na região da Galícia. Em 1842, apenas 15% das crianças frequentavam escolas, contra 94% na região da Boêmia – a média em todo o império era de 75%62. Para Andreazza (1996, p. 25), a população camponesa desempenhou importante papel na construção da identidade nacional ucraniana por preservar um “sagrado legado das canções, das histórias e dos costumes populares, bem como da língua vernácula”, tornando-se, assim, o “segmento mantenedor de tudo aquilo que a inteligenzzia resgatou e mitificou no sentido de canonizar como ethos nacional”63. Regiões do Leste europeu, periféricas em relação ao processo de industrialização observado em nações do ocidente, especializaram-se em suprir o mercado europeu com grãos, e isso levou a um aumento da produção e oferta dos produtos, o que prejudicou a atividade desenvolvida pelas massas camponesas, que optaram por emigrar.

61

A autora, partindo de W. J. Kaye, esclarece que bucovinos e galicianos eram denominações políticogeográficas, enquanto rutenos e ucranianos, designações étnicas do mesmo grupo. (KAYE, W. J. Early Ukrainians settlements in Canadá: 1895-1900. Dr. Joseph Oleskow's role in the settlement of Canadian northwest. Toronto: University of Toronto Press, 1964. p. xxiii). 62 HIMKA, J. P. Galician villagers and the Ukrainian national movement in the nineteenth century. Edmonton: Canadian Institute of Ukrainian Studies, 1988. p. xxiii apud ANDREAZZA, 1996. p. 16. 63 Peter Burke, ao estudar o fenômeno do interesse emergente em fins do século XVIII e início do XIX pela cultura popular na Europa, assegura que a descoberta da cultura popular “estava intimamente associada à ascensão do nacionalismo” e que foi, “[...] em larga medida, uma série de movimentos ‘nativistas’, no sentido de tentativas organizadas de sociedades sob domínio estrangeiro para reviver sua cultura tradicional. As canções folclóricas podiam evocar um sentimento de solidariedade numa população dispersa, privada de instituições nacionais tradicionais.” Para o autor, a cultura dita popular passou a despertar interesse de estudiosos no momento em que o avanço industrial ameaçava solapar valores e atitudes antes partilhados por camadas mais amplas da população. (BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 35-37).

65

Os embarques para o Brasil se davam no porto de Gênova. A emigração era, em boa parte, assistida por sociedades de imigração, que manifestavam constante preocupação com as condições em que se davam as viagens e as instalações dos emigrados em suas terras de destino. A jornada de Estanislau Klobukowski é citada por Maria Luiza Andreazza: sua viagem realizada ao Brasil e especialmente ao Paraná, em 1895, demonstrava “[...] a preocupação existente entre a inteligenzzia da Galícia para com o movimento migratório que se desenvolvia com bastante intensidade naquele período.” (1996, p. 46). Klobukowski apresentou, no conjunto de suas preocupações, a de verificar “[...] in loco as condições para esta imigração bem como esclarecer alguns pontos duvidosos e obscuros.”64 O governo do Paraná criou, em 1892, a Secretaria de Obras Públicas e Colonização, que comportava a Inspetoria Geral da Colonização. A imigração foi intensificada a partir daí, até as duas primeiras décadas do século XX. Andreazza diz que a imigração não foi uma aventura solitária, pois envolvia famílias mais ampliadas, compostas de pai, mãe, filhos e até mesmo avós, tios, primos. Para a autora, os rutenos constituíam um grupo à parte entre os imigrantes eslavos. Rutenos e polacos não possuíam tradições únicas – os próprios rutenos eram marcados pela diversidade cultural.

“Tudo indica que foi da comunhão de tradições e idiomas assemelhados com a prática de uma religião comum que se retiraram os marcos de sua contrastividade com os demais.” (ANDREAZZA, 1996, p. 80). Para Eric Hobsbawm (1990, p. 83), [...] as verdades universais estão freqüentemente em competição, e as pessoas que estão na fronteira de algumas dessas verdades podem, às vezes escolher outras como um distintivo étnico, como o fazem russos, ucranianos e poloneses para se diferenciarem entre si como católicos romanos, ortodoxos e uniatas.65

Quanto à imigração polonesa, ocorreu paralelamente à ucraniana, no momento da famosa “febre brasileira”. Desde as últimas décadas do século XIX até por volta do início da Primeira Guerra Mundial, cerca de 90 mil poloneses desembarcaram no Brasil; destes, 45%

64

KLOBUKOWSKI, E. Recordações de viagem. Anais da Comunidade Brasileiro-Polonesa. v. 4. Curitiba: Gráfica Vicentina, 1971. p. 17. 65 A divisão entre católicos romanos e ortodoxos deu-se em 1054, no Cisma do Oriente. Os uniatas mantiveram ritos ortodoxos, com o nome de rito greco-católico; rutenos, então, adotaram o rito grego; e poloneses, o rito latino. No jornal A República lê-se: “3) artigo “Quem tem culpa? (tratando das questões de Rio Claro, onde explica-se que o padre Nikon Rosdolski, admirador fanatico da Russia, é o maior inimigo dos Polacos e que elle provoca inimisade entre os Polacos e Ruthenos da mesma parochia).” A República, Curitiba, ano 15, n. 153, 13 jul. 1900. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 18 mar. 2014.

66

no estado do Rio Grande do Sul, 40% no Paraná e 15% em outros estados (WENCZENOVICZ, 2002, p. 50). Em 1865, o governo imperial propôs aos cônsules europeus o barateamento da passagem para quem aceitassem trocar a emigração para os Estados Unidos pela emigração ao Brasil (LAROCCA; LAROCCA; LIMA, 2008, p. 25). De 1889 a 1900, entraram no Paraná 53.047 imigrantes – polacos, prussianos e russos (26.027); austríacos: 20.020; e, em menor número, italianos, alemães e outros. Esses números sofreram queda brusca nos anos de 1893 e 1894, por ocasião do movimento federalista, e nos anos de 1897, 1898 e 190066. O nome Polônia originou-se de um grupo humano denominado polanos, camponeses que cultivavam a terra, daí Polska – Polônia (MARMILICZ, 1996, p. 21). Após três partilhas, ao longo dos séculos XVIII e XIX, entre Prússia, Rússia e Áustria, esta última apoderou-se da região sul da Polônia Menor (sudoeste da Polônia) e da região da Galícia, cuja população, em sua parte ocidental, era composta na maioria por poloneses (88%) e, na parte oriental, cerca de metade da população era composta de ucranianos (WACHOVICZ, 1970, p. 24). As fronteiras geopolíticas que se iam estabelecendo nem sempre correspondiam a recortes culturais ou históricos bem definidos, o que dificultou, entre outras questões, tentativas de construção de um estatuto de identidade polonesa67. Quanto ao termo polaco, utilizado do início ao fim do processo-crime de 1900, assume uma conotação pejorativa, negativando um conjunto de características culturais do grupo. No sul do Brasil, e em especial no Paraná, os poloneses foram tratados como “rústicos” e “ignorantes”. As características atribuídas ao negro tornaram-se epítetos do polaco: incapacidade, ignorância e atraso. Era comum o uso de expressões preconceituosas que ora faziam referência ao polonês como uma sub-raça – quando se dizia “polaco, negro ao avesso”; ora 66

CERQUEIRA, Arthur Pedreira. [Relatório] s/d 1900, apresentado ao Governador do Estado do Paraná, pelo Secretário dos Negócios de Obras Públicas e Colonização. Localização: Arquivo Público do Paraná, p. 31. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. 67 A situação da Polônia foi acompanhada com certo interesse em outras partes do mundo. “A ‘Lokalauzeiger’, de Berlim, informa que a Allemanha, a Austria-Hungria e a Russia entraram em acordo para reprimir os pruridos de liberdade que ora lavram entre os polacos. Este heróico povo que, desde o lendario Kosciusco, tanto sangue tem derramado para rehaver a sua perdida liberdade, procura agora novamente, despertado pela estupenda pertinacia dos boers, quebrar as cadeias que os trazem ajoujados ao ferreo jugo dos tres grandes Imperios.” (A República, Curitiba, ano 16, n. 283, 14 dez. 1901. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 21 mar. 2014). “Dez mil polacos, reunidos em comicio na praça publica em Chicago, protestárão energicamente contra os festejos em homenagem ao principe Henrique, da Prussia, membro da casa reinante na Alemanha e por conseguinte responsavel também pela tyrannia com que está sendo tratada a Polonia.” (A República, Curitiba, ano 17, n. 56, 11 março 1902. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 21 de março 2014).

67

remetiam à dominação da qual estiveram sujeitos: “polaco sem bandeira”; ou, ainda, depreciavam-no culturalmente na referência a mau gosto: “parece cor de polaco”, “vestido que nem polaco” (BUCHMANN, 1995, p. 41). Interessante notar que, em alguns processos criminais consultados, sujeitos de etnia polonesa ou negra aparecem discriminados pelos termos polaco e preto, ao passo que qualquer outro réu, vítima ou testemunha não é denominado pelo grupo étnico. Recentemente, autores como Ulisses Iarochinski (2003, 2010) e Mauro Baltasar Tomachelski (2104) têm-se utilizado do termo polaco sem a preocupação de que possa representar uma negatividade. Segundo os autores, o termo polaco é original e não há motivos para evitar seu uso; ao contrário, pode bem significar uma “autoafirmação positiva de assumir um termo ancestral, que somente no Brasil foi colocado no ostracismo” (TOMACHELSKI, 2014, p. 27). Para Iarochinski (2003, p. 32)68, esse ostracismo é explicado pelo fato de que

Foi a elite, tão ou mais ignorante que o imigrante, que passou a tratar o “Polaco” de forma ofensiva e pejorativa. “Polaco” passou a ser uma forma de chamar o imigrante de burro, de ignorante. Isso se agravou porque as comunidades de “Polacos” viviam afastadas dos centros urbanos, como Curitiba, e por serem, na maioria, lavradores acabaram convivendo pouco com outros imigrantes e até com os nativos. (grifos nossos).

Os polacos encontram-se, com frequência, nos boletins policiais e em jornais de fins do século XIX e início do XX; ora vistos como peças importantes para o desenvolvimento da nação, ora vistos como empecilhos, perturbadores da desejada ordem. Muitos manifestavam gratidão ao governo paranaense ou brasileiro; outros tantos, insatisfeitos, lançavam mão de críticas e protestos, longe de assumirem uma postura passiva. Por meio do jornal Prawda, posicionavam-se sobre todo tipo de questões que lhes diziam respeito. O jornal A República, editado em Curitiba, traz inúmeras manchetes nas quais poloneses são retratados em constante movimento, promovendo reuniões e debates, levantando pautas que tratavam dos mais diversos temas, como política, educação, justiça, questões fundiárias. Tradução da lingua polaca Grande reunião No Sabbado 15 de Fevereiro d’este anno as 10 horas da manhã haverá em Curityba na sala do Sr. Luiz Grunt grande reunião de todos os polacos 68 O autor defendeu tese de doutorado na Universidade Iaguielônica de Cracóvia, publicada no Brasil com o título Polaco: identidade cultural do brasileiro descendente de imigrantes da Polônia. Curitiba: Edição do Autor, 2010.

68

residentes n’este Estado do Paraná, em miro de satisfazer muito importantes interesses em politica, de terras, chacaras, escolas, justiça etc. No fundamento de se realizar tão importante interesse, é um santo dever para cada um polaco, que ainda sente em si o sangue polaco para apresentar-se pontual no dia e hora determinada. Apresentemo-nos valentes em uma linha como guerreiros e como o guerreiro defendamos o nosso assumpto. (grifos nossos).69

Esse texto vai assinado por uma comissão de trinta e três membros. As movimentações e pautas de discussões poderiam encontrar opositores, como se lê neste fragmento que aparece na mesma edição, logo abaixo do anterior:

Protesto Esta grande reunião annunciada acima, composta por pessoas declaradas, chamando todos os polacos d’este Estado para tal reunião – mostram bem claro que são desordeiros e nem sabem o que querem – por isso sem algum conhecimento de perfeita civilisação. Contra estes, protestamos nós abaixo assignados e mais outros, que não só não aceitamos tal proposta, mas temos vergonha por aquelles sujeitos que querem promover uma desordem; – e por isso pedimos justiça da competente autoridade para serem devidamente castigados pela desordem que promovem entre os outros polacos que vivem em paz e observam fielmente as leis do paiz. E principalmente agora, já sentimos mais melhorança, justiça e progresso para bem e por isso agradecemos de todo o nosso coração ao respeitavel Governo Provisorio Republicano e promettemos de todos os nossos esforços de ajudal-o de nossa parte. Viva a Republica Brazileira! Viva o cidadão Governador d’este Estado! Viva o Estado do Paraná!!! Castigo para os desordeiros que nos e outros inquietam e perturbam no progresso para utilidade publica! (grifos nossos).70

A ideia de “classes perigosas”, cujo policiamento se fazia constantemente necessário, é clara na nota a seguir, publicada dois dias depois: Noticias Perturbadoras Estamos autorisados a declarar que a reunião convocada por alguns polacos para o dia 15 do corrente foi directamente prohibida pelo dr. chefe de policia, por não poder consentir, no actual periodo, que se organisem meetings, com os intuitos de protesto irritante com que se havia convocado aquelle. O delegado de policia apenas funccionou nessa diligencia por ordem do dr. chefe de policia, que tendo denuncia do facto encarregou-o de fazer virem à sua presença os signatarios do boletim de convite. Sabemos mais que o dr. chefe de polica està resolvido a prohibir quaesquer reuniões que se apresentem com caracter da de que tratamos.71 69

A República, Curitiba, ano 15, n. 36, 12 fev. 1900. Brasil, p. 3. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2014. 70 Ibidem, p. 3. 71 A República, Curitiba, ano 15, n. 38, 14 fev. 1900. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 13 ago. 2014.

69

A nota assegura que a polícia cumprirá com seu papel no sentido de evitar a desordem por meio de meetings ou manifestações quaisquer que pudessem gerar tumulto. Dessas duas citações jornalísticas ora referidas, o que se depreende também é que se, por um lado, existia uma mobilização reivindicatória por parte dos imigrantes poloneses, por outro, este grupo não parece absolutamente uno, existindo atritos internos acerca de quem tinha o direito de liderálos e mobilizá-los. Seria ingenuidade não admitir a possibilidade de agentes da segurança estarem por trás desse aparente atrito interno, mas não podemos descartar a convivência de diferentes lideranças étnicas, que disputavam a representação do grupo e o seu diálogo com as autoridades constituídas – ou seja, talvez existisse ali uma disputa interna pela legitimidade de representação do grupo étnico no campo político72. Um interessante conjunto de fontes que nos ajuda a compreender melhor a saga da imigração polonesa ao Brasil são cartas que foram enviadas aos familiares que ficavam do outro lado do Atlântico. Temos acesso a narrativas que trazem fragmentos de suas trajetórias, desde a saída dos locais de origem até o estabelecimento em terras brasileiras. Essas narrativas, construídas pelos próprios imigrantes, contrariam, muitas vezes, narrativas construídas a posteriori por pesquisadores, memorialistas ou militantes engajados em investidas de produção de memórias da imigração. Produzidas no calor do momento nostálgico de revisitação das epopeias da imigração e colonização, tão ao sabor desde as últimas décadas do século XX, tenderam a romantizar suas trajetórias, em muito negando ou minimizando situações conflituosas ou embaraçosas. Uma perspectiva otimista retratada pelos próprios imigrantes encontramos nas epístolas analisadas por Tramontini (2005)73. Já Elane Tomich Buchmann (1995), que cruza as informações contidas nas cartas que analisou com relatos de viagem e memórias dos intelectuais Antônio Hempel e S. Klobukowski (o qual morreu próximo a Palmas, PR), aponta

72

Não nos alongaremos, pois extrapolaria as intenções deste trabalho, nas discussões sobre como se conformam as lideranças políticas, mas aventamos tratar-se aqui de uma disputa pelo que Pierre Bourdieau chamava de poder simbólico, ou seja, pela capacidade de “fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto, o mundo”. (BOURDIEU, 1989, p. 14). 73 O pesquisador debruçou-se sobre uma compilação de 29 cartas que compõem as Cartas de Imigrantes Poloneses no Brasil e Estados Unidos, publicadas em Varsóvia em 1973, pelo Frei Victor Stawinski. A publicação conta com 361 cartas, escritas em fins do século XIX e início do XX, por imigrantes que se estabeleceram no Rio Grande do Sul.

70

para uma perspectiva mais pessimista, exteriorizando os jogos de interesses que estiveram por trás do projeto imigratório brasileiro74. Voltando à questão da dicotomia ucranianos/rutenos – poloneses/austríacos, percebemos que ela obedece a uma lógica pouco objetiva e, para seus membros, isso assume pouca ou nenhuma importância, sendo “apenas os fatores socialmente relevantes” próprios para diagnosticar essa pertença. Ou seja, Não importa quão diferentes sejam os membros em termos de seus comportamento manifesto: se eles dizem que são A, em contraste com outra categoria B da mesma ordem, desejam ser tratados e ter seu comportamento interpretado e julgado como próprio de A e não de B. Em outras palavras, declaram sua adesão à cultura compartilhada por A. Os efeitos disso, comparados com outros fatores que influenciam o comportamento efetivo, podem então ser tomados como objeto para investigação. (BARTH, 2000, p. 33).

Os brasileiros não faziam distinção entre essas etnias, e o mais comum é que usassem o termo polacos para se referirem a todos os de origem eslava, sem distinção entre poloneses ou ucranianos. Nos processos consultados, as diferenciações são utilizadas entre os grupos étnicos imigrantes; os nacionais usam apenas o termo polaco, de forma generalizada. Assim vieram e assim foram tratados Estephanio Mikilita e o garoto Lucio Laskovsky, assassinados por praças do Exército na madrugada do dia 10 de junho de 1900, na Colônia General Carneiro, assim também vieram e foram tratados seus familiares e amigos, que presenciaram ou não os crimes. A tabela abaixo apresenta dados referentes aos polacos que testemunharam os crimes os ataques, quais eram as ocupações desses indivíduos que partilhavam sua vida com Estephanio e Lucio. Tabela 3 – Imigrantes testemunhas dos crimes de 1900

74

Elane Tomich Buchmann indica os Anais da Comunidade Brasileira-Polonesa – uma publicação da Superintendência do Centenário de Imigração polonesa no Paraná – como repositório das cartas que analisou. Algumas cartas analisadas pelos dois autores são dos mesmos remetentes, embora observem-se pequenas diferenças de tradução. “As cartas analisadas foram, em sua maioria, destruídas pelo fogo em 1944, durante o Levante de Varsóvia. Salvou-se um pacote de 250 cartas, dentre as quais, 60 provenientes do Brasil. Tais cartas estavam sendo secretamente estudadas por universitários durante a ocupação da Polônia pela Alemanha de Hitler e estavam nas mãos do polonês Witold Kula, que recolheu-as após o incêndio de Varsóvia, em 1945. Foram publicadas pelo historiador Marcin Kula em língua polonesa e traduzidas para o português por F. Dranka.” (BUCHMANN, Elane Tomich. A trajetória do sol: um estudo sobre a identidade do imigrante polonês no sul do Brasil. Coleção Farol do Saber. Curitiba: Fundação Cultural, 1995, p. 49).

71

Nome

Idade

Estado civil

Naturalidade

Ocupação

Anastácia Mikilita Seraphina Mikilita Nicolau Pavlichen Francisco Pavlichn Wasko Laskovsky Senka Kerella Gregório Hass Estephanio Dombrowsky Basílio Invarycz Carlos Pamics Antonio Rostawony Carpi Muzika

40 15 20 27 18 16 36 62 38 29 52 51

Viúva de Estephanio Solteira Solteiro Solteiro Solteiro Solteira Casado Casado Casado Casado Não informado Não informado

Galícia, Áustria Áustria Galícia, Áustria Áustria Áustria Áustria Galícia, Áustria Áustria Áustria Áustria Áustria Áustria

Lavradora Criada Lavrador Lavrador Lavrador Criada Lavrador Marceneiro Lavrador Lavrador Carpinteiro Lavrador

Fonte: PC/1900/General Carneiro (elaboração do autor)

Das doze testemunhas, cinco precisaram de intérpretes ao deporem. Outras referências a esses imigrantes, bem como análises mais detalhadas de suas falas, serão realizadas nos próximos capítulos.

1.3 O (DES)ENCONTRO ENTRE O PESSOAL DA ESTRATÉGICA E OS POLACOS

Um atrito que assumiu caráter de compleição étnica é talvez a primeira constatação a que se chega ao se ler os autos do crime de 1900. Embora os militares não tenham, ao que tudo indica assassinado Estephanio Mikilita e Lucio Laskovsky pelo simples fato de serem imigrantes, a constante recorrência ao uso do termo polaco e o uso de expressões como as constantes na defesa que o Alferes Torres apresentou ao Conselho de Guerra (“Trazem em si a macula original”, “São almas empenhadas em lucros certos” ou “Cobiça viroosa [sic] que reina no coração desse povo”) traduzem conceitos presentes no imaginário dos militares e que orientam seu olhar sobre essas populações – aspecto que será melhor abordado nos capítulos subsequentes. O debate antropológico em torno dos conceitos como o de etnicidade e identidade étnica vem apontando para fronteiras étnicas mais líquidas, não dadas, definidas ou desenhadas a priori, como se ali estivessem desde sempre, brotando naturalmente de um conjunto de traços culturais. Ritos, hábitos, crenças, símbolos, língua, regras de conduta, modos de ser e fazer, códigos de polidez, práticas de vestuário e culinária partilhados pelos indivíduos não se encontram perceptíveis e perfeitamente identificáveis assim que alguém se

72

interessasse em estudá-los e compreendê-los, ou simplesmente dar-se conta de que existem. Esses traços, que variam em sua diversidade, não permitem por si sós “abranger o traçado dos limites étnicos” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 61). Paul-André Rosental (1998, p. 155), partindo da obra de Barth, nos ajuda a entender o ambiente social como espaço de possibilidades latentes, cujas ações dos indivíduos estão longe de pautarem-se por normas preestabelecidas, comuns a uma coletividade. Para o autor, Barth considera que “[...] o mundo social não é perfeitamente integrado, e que todos os sistemas de normas são fraturados por incoerências. Nessa perspectiva, um comportamento não é mais a consequência mecânica da obediência a uma norma.” Ou seja, “O que observamos empiricamente não são ‘costumes’, mas casos de comportamento humano.”75 Fronteiras ou limites étnicos são constructos (imaginários, simbólicos) de determinados contextos muito específicos, e só quando levados em conta tais contextos é que nos é possível apreender sua emergência. Embora permeada pela subjetividade, tal emergência termina por fundamentar e orientar escolhas e ações muito concretas e, com isso, ultrapassa o objetivismo/subjetivismo. Se a identidade é uma construção social e não um dado, se ela é do âmbito da representação, isto não significa que ela seja uma ilusão que dependeria da subjetividade dos agentes sociais. A construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas. Além disso, a construção da identidade não é uma ilusão, pois é dotada de eficácia social, produzindo efeitos sociais reais. (CUCHE, 2002, p. 182).

Identidades étnicas distintivas só emergem quando contrastadas; e o que irá determinar a percepção do nós é a presença do eles. “A identidade é uma construção que se elabora em uma relação que opõe um grupo aos outros grupos com os quais está em contato.” (CUCHE, 2002, p. 182). Até que não existam eles, não se pode definir uma identidade a partir de um arcabouço de regras formais “independentes do contexto”. “Em consequência, a análise se desloca do conteúdo cultural do grupo étnico para a análise da emergência e da manutenção das categorias étnicas tais como elas se constroem nas relações intergrupos.” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 82). Rosental (1998, p. 157) constata que, 75 BARTH, Fredrik. Models of social organization. Process and form in social life, p. 35. In: ROSENTAL, Paul-André. Construir o “macro” pelo “micro”: Fredrik Barth e a “microstoria”. In: REVEL, Jacques (org.) Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Tradução Dora Rocha. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 155.

73

Para ele [Barth], uma das características principais da ação social é que seu resultado depende das ações paralelas, ou da reação, das outras pessoas. Resulta daí uma incerteza quanto às consequências de todo comportamento, a qual é levada em conta pelos indivíduos: ela os impede de contar abstratamente com um sistema de normas para ajudá-los a prever sem ambigüidade os efeitos dos seus atos. Estes últimos nunca refletem unicamente as “obrigações de conhecimento e de valor” mas também a “pragmática da cooperação e da competição”.

Dadas essas questões, fica-nos claro que “o que é preciso estudar, portanto, é menos o grupo étnico que ‘a matriz social ou história em perpétua mutação’ (Moerman, 1994) ou as ‘redes de sociedades’ (Amselle, 1990) de onde emergem os fatores de etnicidade” (apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 124). Sendo, então, que a etnicidade só se manifesta nas relações que se estabelecem com outros indivíduos e não em “condições de isolamento, [...] não é a diferença cultural que está na origem da etnicidade mas a comunicação cultural que permite estabelecer fronteiras entre os grupos por meio dos símbolos simultaneamente compreensíveis pelos insiders e pelos outsiders (Schildkrout)” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 124). No caso de poloneses/austríacos ou rutenos/ucranianos, esses termos emergiram em algum momento, de contextos históricos muito próprios, não se constituem em grupos étnicos que sempre estiveram lá, mas são o produto de uma sociedade. No caso de atribuições, endógenas ou exógenas, feitas a determinadas categorias étnicas, Barth (2000, p. 32) chama a atenção para o fato de poderem se constituir em atribuições categóricas: A atribuição de uma categoria é uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa em termos de sua identidade básica, mais geral, determinada presumivelmente por sua origem e circunstâncias de conformação. Nesse sentido, organizacional, quando os atores, tendo como finalidade a interação, usam identidades étnicas para se categorizar e categorizar os outros, passam a formar grupos étnicos.

O adjetivo polaco, usado para designar populações de imigrantes que podem ou não autodesignarem-se dessa forma, constitui assim uma atribuição determinante, uma vez que não se levam em conta vontades subjetivas muito específicas, como, por exemplo, o fato de o indivíduo se autodenominar ruteno ou ucraniano. O termo polaco é, visto desta forma, uma atribuição determinante, inclusive, porque o conjunto de categorias sociais e culturais que compõem esse grupo étnico foi construído a partir de padrões culturais e mentais e critérios de

74

julgamento de sujeitos que, em tese, não integram aquela cultura, como os epítetos negativos de rústico e ignorante, por exemplo, que aparecem em outros registros. Nesses casos, o nós (que aqui denominamos de forma genérica como brasileiros) acaba por criar/reforçar elementos de sua própria etnicidade na interação com eles. Concluise, com Barth (2000, p. 37), que a identidade étnica atribuída ao imigrante polaco é imperativa e tende a ser absoluta, uma vez que impõe restrições quanto ao comportamento das pessoas e acaba por colocar a identidade étnica em condições de equivalência ao “sexo e à posição social, pois ocasiona restrições em todas as áreas de atividade e não apenas em determinadas situações sociais”. Nesse espaço onde se estabelecem relações de forças (simbólicas), entre a autoidentidade e a exoidentidade (ou heteroidentidade), identidades definidas pelos outros acabam por promover a “estigmatização de grupos minoritários” (CUCHE, 2002, p. 184). Os assassinatos de 1900 geraram discursos em que, pode-se dizer, com Elane Buchmann (1995, p. 114),

[...] o estereótipo vivido pode ser a aprendizagem do processo de discriminação. E a discriminação racial parte de um “dualismo ingênuo” no dizer de Sartre, onde algumas raças representam o “Bem”, outras o “Mal”. Eliminando-se o “Mal” elimina-se instantaneamente, todas as contradições do mundo: este estará pronto e harmônico, porque o “Bem” já está “dado”. (grifos no original).

É importante frisar, com a autora, que, “nesse pré-determinismo biológico, está presente, fundamentalmente, uma visão de mundo estática, que camufla as causas mais profundas das discriminações étnicas: as causas político-econômicas” (BUCHMANN, 1995, p. 114). Ora, as reflexões aqui propostas nos apontam para a impossibilidade de se pensar tais conflitos de forma maniqueísta, uma vez que o que parece se tratar, a princípio, de grupos distintos muito bem identificados, no fundo, carrega toda a complexidade e, por que não dizer, riqueza da existência humana. O excerto de Barth (apud ROSENTAL, 1998, p. 156) é novamente ilustrativo: Os atores estão (sempre e essencialmente) posicionados [...]. Essas diferenças de posicionamento são a principal razão de ser da “longa conversa” por meio da qual os indivíduos interpretam e dividem suas experiências, e melhoram sua compreensão de sua própria vida e da vida dos outros. (grifo no original).76

76

BARTH, F. The analysis of culture in complex societies. Ethos, v. 54, n. 3-6, p. 120-142, 1989.

75

O processo que trata do conflito de 1900 pode se converter em uma armadilha quando analisado de forma apressada e isolada, ao nos apresentar o confronto entre dois grupos aparentemente coesos e homogêneos. A situação dada é, em princípio, de fácil solução, os atores estão facilmente identificados em suas posições sociais e, no caso específico, por ocasião do conflito, geográficas. Os imigrantes estão em suas casas, e os soldados, de certo modo, “invadem” esse espaço. A dinamicidade do processo histórico força os sujeitos a encontrarem-se constantemente posicionados de tal forma que sejam inevitáveis os enfrentamentos (nem sempre entendidos de forma negativa), e, então, (re)criam-se formas de ser, estar no e ver o seu próprio entorno; e, assim como a discriminação étnica camufla aspectos políticos e econômicos mais profundos, também o fazem as iniciativas românticas de fazer (re)viver traços culturais do passado, práticas que se vêm manifestando em várias “comunidades étnicas” nas últimas décadas77. Elementos de identidade étnica, memórias e demais traços culturais (lendas, canções) foram recorrentes em outras épocas e lugares, podendo emergir de interesses outros, econômicos e políticos, dos quais nunca estiveram dissociados. Ao longo da pesquisa, foi possível perceber que, no contato entre os militares e os imigrantes, suas trajetórias e falas desvendam universos assinalados por disputas políticas, cerceadas de profundos dilemas econômicos. 77

Partindo das análises construídas na obra organizada por Eric Hobsbawm (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997) e de sua definição de tradições inventadas, a autora Bernandete Ramos Flores desvenda os bastidores da invenção da Oktoberfest, a Festa de Outubro, que ocorre anualmente em Blumenau (SC) desde 1984. Estratégia de recuperação econômica e projeção turística, a festa prometeu “o retorno da história, da tradição e dos costumes”; criaram-se novos imaginários e “imaginários antigos foram recriados para um novo tempo” (FLORES, 1994, p. 13). Na esteira da Oktoberfest de Blumenau, cidades do vale dos rios Itajaí e Itapocu – a Alemanha Brasileira – passaram a promover suas próprias festas: “Fenarreco, em Brusque; Chuchoppfest, em Gaspar; Kegelfest, em Rio do Sul, no Vale do Itajaí; em Joinville e em Jaraguá do Sul, mais ao Norte, no Vale do Itapocu, surgiram, respectivamente, a Fenachopp e a Schützenfest.” (FLORES, 1994, p. 15). A autora, ao analisar os “produtos culturais” (casarios enxaimel, gerânios nas sacadas, jardins, ruas e sanitários muito limpos e moradores que presevam traços como a limpeza, bordados, culinária e música) oferecidos ao turista na Cidade do Chopp, com o intuito de criar uma imagem do povo alemão, com ethos de germanidade, define essas posturas como práticas de uma etnia narcisista. “A cidade turística tornou-se um modelo. Feita para o turista como cultura espetáculo para fruição e admiração, ela deve ser limpa, estetizada, harmônica, ecológica. Feita para ser contemplada, sua imagem é enquadrada num espelho.” (FLORES, 1994, p. 96). Inspirados pelo trabalho de Maria Bernardete Ramos Flores, começam a aparecer mais pesquisas que questionam tentativas de sacramentar determinados hábitos e atitudes, com investimentos recentes na memória da imigração germânica no vale do Itajaí. Ver os interessantes trabalhos publicados recentemente sob as referências MACHADO, Ricardo; VOIGT, André Fabiano (Orgs.). Desterritorializações do Vale. Blumenau: Liquidificador Produtos Culturais, 2012; VOIGT, André Fabiano. A invenção do teuto-brasileiro. Blumenau, SC: Liquidificador Produtos Culturais, 2103.

76

2 A VIDA NA ZONA ESTRATÉGICA DO PARANÁ: TENSÃO E CONFLITOS EM UMA REGIÃO FRONTEIRIÇA

77

Neste capítulo, aproximamo-nos mais da Zona Estratégica do Paraná e de seus habitantes, oriundos de diversos lugares, nessa conflituosa região de fronteiras que extrapolam meras linhas demarcatórias. Para além de limites geopolíticos, encontram-se fronteiras humanas, tensionadas pelos embates travados pelos sujeitos ali posicionados. Após breves ponderações sobre a emergência dessas fronteiras humanas, problematizamos as políticas públicas de catequização das populações indígenas que habitavam a região, seguida da análise das relações da Comissão Estratégica com a população local, destacadamente com os imigrantes polacos.

2.1 FRONTEIRAS

2.1.1 Fronteiras políticas e fronteiras humanas

As fronteiras foram sempre emblemáticas para o Brasil. Se entendidas apenas como linhas demarcatórias, as lindas (limites) ocuparam lugar de destaque nas discussões diplomáticas. As negociações com os países lindeiros meridionais – um “território capaz de passar do mapa de um país para o de outro” (McCANN, 1982, p. 57) –, especialmente com a Argentina, estão entre as que geraram mais impasses. Para além das demarcações de limites políticos, traçados em mapas (representações dos territórios) usados nos acordos, encontra-se uma geografia humana bastante complexa78. Traçados cartográficos desaparecem, e emergem outros limites, que demarcam realidades sociais que os cartógrafos não podem captar, em um dinâmico fluxo de pessoas e trocas econômicas e culturais. Nesse espaço de tramas e disputas, a presença humana “lugariza” o espaço, ao atribuir-lhe significados e ao estabelecer, com a natureza, uma relação sensorial. Nas palavras de Veiga-Neto (2002, p. 169), A separação medieval entre espaço interno (rígido, sensorial, percorrível, doméstico) e espaço externo (fluido, desconhecido, misterioso, mágico) foi substituída pela nova separação entre espaço e lugar. O cenário físico onde se dão nossas experiências concretas e imediatas passou a ser entendido, vivido e designado como um caso particular, inserido num espaço geral, abstrato, infinito e ideal. A esse cenário particular, sensorial e imediato do espaço, chamamos de lugar. O lugar, então, passa a ser cada vez mais entendido e

78

Ver: REVEL, Jacques. Conhecimento do território, produção do território: França, séculos XIII-XIX. A invenção da Sociedade. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.103-158.

78

vivido como uma projeção, neste assim chamado mundo sensível, de um espaço ideal. (grifos no original).

A linha que delimita essa abstração, concebida de antemão no campo do intelecto, como construção epistemológica, pode antecipar-se à ocorrência da disputa. Nesse sentido, a divisão de territórios pode preceder o surgimento da fronteira histórica, espaço da atuação dos sujeitos sociais, da (re)elaboração da cultura, a “fronteira do humano” (MARTINS, 1997, p. 15), onde o espaço converte-se em lugar. Sendo assim, nem sempre a projeção da linda pressupõe a existência da fronteira, entendida na segunda acepção. Mas o movimento contrário também é possível: a emergência da fronteira humana pode antepor-se ao traçado dos limites, e, nesse caso, a demarcação pode ser apenas “a etapa final do processo” (MAGNOLI, 1997, p. 240), sendo o resultado de movimentos de conquista que subjugam indivíduos mais precarizados. “A linha da fronteira nasce da etapa intermediária [...]” (ibidem, p. 240) entre o documento que a oficializa e a história, sugerida aqui como o desenrolar da vida, percurso dos acontecimentos. Dada essa polissemia do termo, e levada em conta sua historicidade, é possível falarmos em fronteiras cujos limites não sejam meros traçados geopolíticos que dividem estados mas que compreendem outras demarcações, como as que determinam até onde um grupo tem o direito de avançar. São fronteiras que separam territórios no seio de um mesmo espaço nacional, e se formam no espírito dos indivíduos, que se identificam por meio de conjuntos distintos (VIDAL, 2008, p. 102). Esses conjuntos são em muito definidos por atributos étnicos ou sociais, pela divergência de interesses econômicos e, sobretudo, pelo distanciamento histórico que os separa (MARTINS, 1997, p. 15). É possível visualizar essas formas de fronteira, por exemplo, desde em locais altamente urbanizados, confrontados com favelas e cinturões de pobreza, onde os despejos ordenados pelo Estado detentor da força determinam o que são áreas “legais” e áreas “ilegais” de ocupação, até em áreas rurais onde a produção econômica avança e expulsa populações tradicionais. Em síntese, a fronteira pode ser compreendida em três dimensões: 1) em seu sentido espacial; 2) em sua acepção jurídica; e, ainda, 3) como lugar do confronto entre histórias e interesses de grupos distintos, fronteira que se diferencia das demais formas por emergir

79

apenas da presença humana79 e, mais do que o lugar do encontro, pode se tornar o lugar onde o homem “se desencontra” (MARTINS, 1997, p. 12). Nessa última concepção, a emergência da fronteira advém da ação humana de avançar e ir adiante. Quem se desloca termina por encontrar o outro, esse exótico, de costumes diferentes, o bárbaro, nas acepções dos gregos (os que formularam o termo) e romanos da Antiguidade. “A invenção grega da fronteira [representa] o limite a partir do qual começam os outros; não propriamente o limite a partir do qual nos perdemos, mas o limite a partir do qual os outros passam a existir para nós.” (VEIGA-NETO, 2002, p. 165, grifos no original)80. As expressões “ir adiante” e “penetrar em” provêm de uma raiz indo-europeia, per, de onde também se originou o termo “perigo”. A fronteira pode ser, portanto, o local do perigo, da ameaça, “o limite a partir do qual a diferença começa a se fazer problema para nós” (VEIGA-NETO, 2002, p. 165, grifo no original). Isso não só porque nos põe em situação de confronto com sujeitos que podem colocar nossas representações de homem e mundo em xeque, mas também porque podemos desenvolver interesses por vezes distintos aos do governo central, em suas políticas de ocupação de determinadas áreas (MACHADO, 1998, p. 2). Um dos exemplos mais apropriados disso tudo é o das nações ibéricas, que, a partir de suas viagens marítimas, fabricaram fronteiras para muito além de seus limes continentais. “‘Esta é uma terra fronteiriça de conquista’, escreveu um frade missionário franciscano quando Goa estava no auge de seu precário esplendor, em 1587 [...]” (BOXER, 2002, p. 309310). A Ásia portuguesa de então “era um empreendimento militar” (ibidem, p. 310). O próprio termo “fronteira” tem origem militar; referia-se, inicialmente, às tropas que estavam à frente dos fronts, na vanguarda das batalhas, ou seja, que iam à frente. Na atualidade, as fronteiras encontram-se cada vez mais fluidas, e a compreensão do espaço implica sua dissolução, pois, “cada vez mais, elas [as fronteiras] mudam de lugar, ou se apagam, ou se pautam por critérios cambiantes” (VEIGA-NETO, 2002, p. 173). Para Alfredo Veiga-Neto (2002, p. 173), as fronteiras, na atualidade, “se estabelecem segundo

79

VIDAL, Dominique. Vivre sur Fond de Frontiéres. Les Migrants du Mozambique à Johannesburg. Cultures & Conflits (em ligne), n. 72, Frontiéres et Logiques de Passage, 2008. Apud COSTA, Gustavo Villela Lima da; OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de. Mestrado interdisciplinar em estudos fronteiriços/UFMS: perspectivas, discussões e pesquisas. Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 4, n. 6, jan./jul. 2012, p. 27-44. 80 Sobre a narrativa da alteridade e a fabricação do outro, ver: HARTOG, François. O Espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

80

combinações complexas em que as variáveis que agora entram em jogo pouco têm a ver com as variáveis tradicionais – como território, nação, língua, etnia e história comum”. O autor aponta algumas consequências dessa dissolução, que se configuram em novas formas de dominação militar. A dominação permanente de territórios inimigos demandaria altos custos, que não interessam mais aos Estados, e, paradoxalmente, as políticas internacionais tentam promover a extinção das fronteiras, o que lhes garante poder mais efetivo e mais vantagens econômicas, abrindo caminho para formas de exercício de poder não tradicionais (VEIGA-NETO, 2002, p. 174). O autor ora referido parte das análises de Zygmunt Bauman, para quem as fronteiras tradicionais podem “impedir o fluxo dos novos e fluidos poderes globais”, e é mais apropriado “expulsar da cabeça do inimigo o desejo de formular suas próprias regras, abrindo assim o até então inacessível, defendido e protegido espaço para a operação dos outros ramos, não militares, do poder” (BAUMAN, 2001, p. 19). Comentando os ataques ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001, VeigaNeto (2002, p. 176) sugere que as noções tradicionais ou clássicas de “fronteira”, em suas inúmeras tentativas de manter o “diferente”, este “inimigo”, do lado de lá, estão superadas. Não obstante as tentativas de homogeneização cultural, “mesmo que o diferente esteja para lá dos limites da fronteira, ele pode estar ao meu lado e ainda – e, agora, mais do que nunca – ameaçando-me”, afirma o autor.

2.1.2 Fronteiras meridionais do Brasil

O atual mapa político do Brasil encerra a “sua história”. Se concebida de forma singular, panorâmica, como a história do movimento de um povo – o povo português, depois luso-brasileiro – que formou uma nação e demarcou um território, então temos uma história que se resume à atuação de frentes de conquista, quase sempre no sentido leste-oeste. São avanços que forçaram o surgimento de novas e mais fronteiras, criadas em territórios ocupados inicialmente por populações indígenas, e onde o Estado-nação foi se impondo. Essa historicidade desaparece em discursos que isentam o território, “corpo da pátria”, de qualquer condicionamento histórico, como se tivesse simplesmente emanado da natureza (MAGNOLI, 1997, p. 239)81. 81 “Na realidade o que somos hoje, o que representam os nossos 8,5 milhões de quilômetros de território (sem falar nos 3 milhões da plataforma continental) com uma população de mais de cem milhões de habitantes, é o fruto da ação dos estadistas que, desde a época da colônia, dirigiram a nossa formação dominados por uma visão

81

Nas primeiras décadas do século XIX, conquanto as atuais fronteiras ainda não estivessem assim demarcadas ou consensuadas, já se fazia ouvir o discurso de que a nação era imensa em seu tamanho mas pouco explorada; um grande sertão despovoado, que precisava ser desbravado. Segundo o General Carlos de Meira Mattos, havia José Bonifácio, em 1821, despertado a consciência de que o país precisava se interiorizar (MATTOS, 1977, p. 109)82. Nísia Trindade Lima, (1999), analisa o papel de pensadores que compunham a intelligentsia brasileira, na construção da ideia do contraste existente entre o Brasil do litoral e o Brasil dos sertões, passando também pelo debate sobre a mais complexa das definições nacionais: a questão identitária do “ser brasileiro”. “Por que a idéia do contraste entre o Brasil do litoral e o Brasil dos sertões é tão presente no pensamento social sobre o país?” (LIMA, 1999, p. 13), pergunta a autora. “De um lado, a forma como os intelectuais percebem os caminhos da modernidade, particularmente no que se refere às distâncias sociais e culturais. De outro, a forma como eles têm representado seu próprio lugar – o de exilados, ou ‘desterrados na própria terra’.” (Ibidem, p. 13) As questões diplomáticas de ajustes de fronteiras políticas encontravam-se vinculadas a interesses de exploração econômica das terras, que esbarrava em questão demográficas, cuja população, considerada escassa e concentrada em núcleos litorâneos, constituía-se em “um fator de insegurança durante grande parte da história do Brasil” (McCANN, 1982, p. 208)83. No caso dos limites meridionais com a Argentina, e das disputas pela “Cunha de Palmas” (ver Mapa 1, cap. 1), aos olhos do Estado brasileiro, as terras estavam

muito nítida das danosas conseqüências que adviriam se não seguíssemos os caminhos que nos eram como que instintivamente apontados pela geopolítica. Das Capitanias hereditárias de D. João III até o Barão do Rio Branco, e tendo de permeio as figuras extraordinárias do Marquês de Pombal e Alexandre de Gusmão, toda a nossa evolução parece obedecer ao propósito da nossa expansão territorial, libertando-nos das limitações impostas pela linhas de Tordesilhas.” (VIANA FILHO in MATTOS, op. cit., p. 10). Luis Viana Filho percorreu vasta carreira política, sendo, inclusive, governador da Bahia durante o Regime Militar. 82 “O autor embasa sua afirmação na obra Lembranças e apontamentos do governo provizorio da provincia de S. Paulo para os seus deputados, mandadas publicar por ordem de Sua Alteza Real, Principe Regente do Brasil; a instancias dos mesmos senhores deputados, de José Bonifácio. José Bonifácio (...), ao escrever Lembranças e apontamentos, destinado a servir de guia aos deputados paulistas eleitos para as cortes de Lisboa, inspirou-se numa realidade cuja ótica não poderia fugir à sua época. Tratava-se de uma nação embrionária, com fronteiras mal definidas, uma população de cerca de 5 milhões de almas acumuladas principalmente nos dois núcleos de Recife-Salvador e Rio-São Paulo-Ouro Preto.” (MATTOS, op. cit., p. 81, grifo no original). 83 Frank D. McCann, no prefácio da obra A nação armada (1982), apresenta um conjunto de militares, dentre eles o General Carlos de Meira Mattos, que leram, discutiram e comentaram os ensaios que compõem a obra.

82

constantemente ameaçadas: 1) pelas investidas do país vizinho84; e 2) pelas incursões dos povos indígenas, que ameaçavam a proteção dos moradores locais. A segurança e a garantia de posse dessas terras passariam, então, por um conjunto de ações efetivas visando à conquista que se deu numa lógica ambígua de negação/integração do nativo – negação pela possibilidade de sua completa eliminação física, e integração pela tentativa de incorporá-lo ao processo produtivo. Ou seja, por meio do avanço das forças capitalistas de produção, poder-se-ia ocupar, de fato, as terras, convertendo áreas semisselvagens em áreas produtivas, algo que remonta à lógica do uti possidetis, já que o território aparecia como litigioso em alguns documentos85. A criação das colônias militares do Chapecó e do Chopim, como visto no capítulo anterior, associavam esses interesses. Deveriam garantir a presença mais efetiva do Estado e, à medida que as terras, distribuídas aos colonos, serviam como instrumentos na concretização dessa dinâmica produtiva, a região tornava-se sempre mais o espaço do trabalho, o que justificava, do ponto de vista ideológico, a integração (ou eliminação) do indígena. A catequese do indígena concebia a existência dessa outra fronteira, humana, para além da díade Brasil e Argentina86, onde encontravam-se os que precisavam ser assimilados. Para Nisia Trindade Lima (1999, p. 14),

A integração territorial diz respeito ao processo por meio do qual uma nação concebe a si própria como unidade geográfica, enquanto a integração dos estratos sociais é vista como o processo em que uma sociedade nacional assimila seus diferentes grupos e setores sob uma ideologia de participação.

84

Belarmino Lobo, o primeiro a chefiar a Comissão Estratégica, solicitou, em janeiro de 1890, ao governador do Estado, que não concedesse um pedido dos argentinos Antonio Zerrener e Samuel Alves de Azevedo, residentes em São Paulo, de privilégio por 30 anos para explorar, preparar e fabricar erva e plantas medicinais no território entre os rios Iguaçu, Paraná, Piquiry e Cavenoso, um total de 4 milhões de hectares de terras. Segundo Lobo, o atendimento do pedido dos estrangeiros, aniquilaria as fontes de renda da colônia militar que a comissão estava fundando, prejudicando em muito seu povoamento, já iniciado e em vias de prosperidade. (A República, Curitiba, n. 15, 18 jan. 1890. Brasil, p. 2 e 3. Disponível em . Acesso em 23 jul. 2014. 85 Ver: REICHEL, Heloisa. Fronteiras no Espaço Platino. In: REICHEL, Heloisa et al (Orgs). História geral do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Méritos, 2006; THOMPSON FLORES, Mariana Flores da Cunha; FARINATTI, Luiz Augusto. A fronteira manejada: apontamentos para uma história social da fronteira meridional do Brasil (século XIX); HEINZ, Flavio. Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma história comparada da América Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009. 86 “[...] do termo dyade, cunhado por Foucher (1991, p. 15) para designar ‘uma fronteira comum a dois Estados contíguos’.” (MAGNOLI, Demétrio. O Corpo da Pátria: Imaginação Geográfica e Política Externa no Brasil (1808-1912). São Paulo, Unesp-Moderna, 1997, p. 241).

83

Nesse espaço de fronteiras duplas ou triplas87, as colônias protegeriam as terras do ingresso dos argentinos (fronteira externa), e ao mesmo tempo suprimiriam as fronteiras internas, ao tentar criar a homogeneidade entre a população nacional. Na prática, essas políticas evidenciaram e realçaram ainda mais as fronteiras humanas já existentes e geraram outras, como as resultantes do incentivo ao estabelecimento de imigrantes. A instalação das colônias demandaria um apurado trabalho de pesquisa que nortearia o pensar estratégico da atuação militar na área fronteiriça; seria a construção de uma rede de saberes que permitiria determinar ou formalizar o espaço (FOUCAULT, 2001, p. 413). Para Costa e Oliveira (2012, p. 39), “O avanço das fronteiras e da produção de um território nacional demanda também uma incessante produção de conhecimento por parte do Estado, sejam pelos inquéritos, censos e principalmente a partir dos mapas.” Um dos argumentos fortemente apontados durante o impasse fronteiriço com a Argentina passava pela falta de informações cartográficas, como as relativas ao conhecimento da toponímia dos rios. Após alguns estudos88, definiu-se a localização da sede da colônia do Chapecó, tomada aqui como exemplo, que foi considerada estratégica, já que se encontrava no caminho geral entre Paraná e Rio Grande do Sul, em território não litigioso.

Sua posição fica ao sudoeste da villa de Palmas da qual dista 82 kilometros com as muitas tortuosidades do caminho, e a 60 kilometros da Bôa-Vista, pequeno, mas importante povoado ao occidente de Palmas. Para o sul até a margem direita do Alto-Uruguay a extenção da estrada é de 66 kilometros, e 79 á freguezia do Nonohay na provincia do Rio Grande. Desta succinta descripção resulta que a Colonia,achando-se aquem do rio Chapecó–pretenso limite da Confederação Argentina–, foi estabelecida em território não litigioso, como determinão as instrucções.89

Sobre a organização e funcionamento das colônias militares, os documentos apontam para algumas diretrizes: “Cada uma d’ellas terá um cndante geral, que deverá ser official do

87 Ver: NEUMANN, E. S. A fronteira tripartida: a formação do continente do Rio Grande - século XVIII. In: GRIJÓ, Luiz Alberto; KUHN, Fábio; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos; NEUMANN, Eduardo Santos (Orgs.). Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 25-46. 88 “Quatro mezes depois, a 14 de Março de 1882, foi difinitivamente escolhida para sede ou núcleo da Colonia a campina do Xanxerê (campo da cascavel), situada na zona intermediaria do Chapecósinho, affluente da margem esquerda do Chapecó, e ao Goy-Em ou Alto Uruguay Esta campina, que é atravessada pelo caminho geral da Provincia do Paraná à do Rio Grande do Sul, pelo lado do leste estende-se por uma suave collina em cuja chapada estabeleceu-se o centro da povoação que é contornada pelo arroio Xanxerê, tributario do Chapecó.” (D’OLIVEIRA, Brazilio Augusto Machado. [Relatório] 15 set. 1884B, apresentado à Assembléia Legislativa, pelo Presidente da Província do Paraná, p. 26. Localização: Arquivo Público do Paraná, p. 27. Disponível em Acesso em: 10 nov. 2014). 89 Ibidem, p. 26. Acesso em: 10 fev. 2014.

84

exercito; e até o numero de 50 praças de pret90, ás quaes serão dadas terra, casas e ferramenta para a lavoura”. 91 Foram nomeadas comissões que administrariam e seriam responsáveis pela ordem das colônias. Duas décadas depois, ao tratar da efetivação das colônias, o Relatório do Presidente da Província começa a revelar preocupações de ordem econômica: “Nos trabalhos das commissões serão empregadas praças tiradas do pessoal da colonia, as quaes se abonará uma gratificação diaria, não excedente de 300 rs.”92

Converter os postos militares destinados a defeza da fronteira em nucleos productores de modo que, pelo menos, fique o orçamento da guerra exonerado da dispendio a etape e forragens dessas guarnições, que é a verba mais avultada na manutenção do soldado, tal me parece deverá ser objetivo economico das colonias militares.93

As colônias militares foram extintas por Hermes da Fonseca, em 1909, passando para o regime civil, por considerar-se que já não serviam mais aos propósitos de proteção das fronteiras.

2.2 AS POLÍTICAS DE CATEQUIZAÇÃO DOS INDÍGENAS A presença do indígena94 em terras brasileiras foi sempre um empecilho, na lógica colonizadora. Parte da intelectualidade da época e diversos dirigentes políticos apostavam na miscigenação – “a infusão do sangue de raças mais energicas avigorará o organismo do povo brazileiro”95 – como alternativa de aculturação e incorporação do indígena à sociedade

90

Pret é igual a pré: "O vencimento diário de um militar de graduação inferior a oficial: praças de prét." LELLO. Novo Dicionário-Enciclopédico Luso-Brasileiro. v. 3. Porto: Lello & Irmão, s/d, p. 754. "Vencimento diário de um soldado". FIGUEIREDO, Antonio Cândido de. Dicionário da Língua Portuguesa. v. II. 11. ed. Lisboa: Livraria Bertrand, 1951, p. 745. 91 CARDOSO, José Francisco [Relatório] 1º mar. 1860, apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná, p. 67. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. 92 PEDROSA, João José. [Relatório] 16 fev. 1881A, apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná, p. 48. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. 93 D’OLIVEIRA, Brazilio Augusto Machado. [Relatório] 15 set. 1884, apresentado à Assembléia Legislativa, pelo Presidente da Província do Paraná. Localização: Arquivo Público do Paraná, p. 27. Disponível em Acesso em: 10 nov. 2014. 94 Não é nosso intuito discutir aqui as questões indígena e cabocla, campo de pesquisa de vários historiadores, antropólogos e arqueólogos. 95 BELLO, Luiz Alves Leite de Oliveira. [Relatório] 1º out. 1883B, apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná, p. 40. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014.

85

brasileira. Chegou-se a acreditar – e até a desejar – na completa extinção, pela sua eliminação física. O texto que segue, intitulado “Os botocudos”, extraído do jornal O Palmense96 (reproduzido do jornal curitibano A Notícia), revela a concepção partilhada pelos setores mais conservadores da sociedade da época. [...] O facto é bem eloquente para mais uma vez destruir teorias balofas desse sentimentalismo piegas a que, talvez por mero exhibicionismo ridículo, talvez por incrível desconhecimento completo da vida dos nossos sertões, têm se apegado alguns moços patrícios. O botocudo é radicalmente indomável. Uma experiência de largo numero de cyclos solares tem levantado em toda a sua altura a impossibilidade de solicitar essa tribu ferocíssima para dentro das fronteiras da civilisação branca. [...] O mais perigoso representante da raça animal, porque á innata perversidade do bruto, allia os requintes da intelligência do homem. Si é certo que foram forças militares para a região em questão, com o intuito de exterminar bugres, isto é, de varrer as nossas magnificas florestas desse elemento tão máo quanto pernicioso, gloria, cem vezes gloria a essas forças, porque cada cabeça de selvagem que rolar inanimada pelo chão será equivalente a uma porção de adubo chimico que irá fertilisar uma dezena de hectares por assim dizer incultiváveis. O botocudo deve desaparecer porque não é absolutamente apto para assimilar os nossos hábitos e os nossos surtos e porque é um perigo sem par para a segurança dos nossos sertões. Seremos um pouco bárbaros também, não há duvida, mas quantas vezes não temos nós sido ainda mais bárbaros para defender aquillo que chamamos razões de Estado? Questões ainda muito mais frívolas tem arrastado à morte milhares e milhares de homens civilisados. Zeno Silva. D’A Noticia. (Grifos nossos).

A nota do jornal considera “balofas”, de “sentimentalismo piegas” teses contrárias aos paradigmas dominantes, as que partiam em defesa das comunidades indígenas, “mero exhibicionismo ridículo”, coisas de moços que não conheciam a realidade da vida dos sertões. O jornal A Notícia, de onde o texto foi extraído, em número posterior, criticou as posturas do etnógrafo Alberto Fric, da Liga Catharinense de Catechese97, um dos exemplos de partidários da questão indígena a quem as críticas do texto indiretamente se dirigiam. O jornal curitibano A República, em data muito próxima da que foi veiculado o texto acima, também publicou uma nota com o mesmo teor, alegando que a eliminação dos índios se tornava um esforço dispendioso, em função do número ainda elevado de selvagens; tornava-se difícil dizimá-los98.

96

O Palmense, Palmas, ano 6, n. 146, 4 fev. 1906. Brasil, p. 2. A Notícia, Curitiba, ano 3, n. 508, 17 jun. 1907. Brasil, p. 1. Disponível em: hemerotecadigital.bn.br>. Acesso em: 23 jul. 2014. 98 A República, Curitiba, ano 21, n. 14, 17 jan. 1906. Brasil, p. 14. hemerotecadigital.bn.br>. Acesso em 23 97

jul. 2014.

86

Na região de Porto União a Palmas, a ocorrência de notícias de ataques de índios botocudos à população que ia ocupando a região é mais numerosa do que em outras regiões do estado. Isso evidencia, inclusive, os resultados da construção da Estrada Estratégica para as populações nativas, e seu “sucesso” do ponto de vista governamental, que em muito considerava os confrontos entre nativos e colonizadores, como o avanço progressivo da civilização que ia penetrando por esses sertões. No arquivo do Fórum da Comarca de Palmas, encontram-se inquéritos datados de fins do século XIX e início do XXI abertos para apurar denúncias de chacinas de indígenas. São documentos de poucas páginas, que não resultaram em processos, não foram adiante nas investigações, prova do pouco caso com que autoridades, de maneira geral, tratavam a questão. Dois desses inquéritos são particularmente interessantes pelas denúncias de formação de escoltas que teriam penetrado os sertões à caça dos botocudos. Um deles, de 1911, apresenta uma solicitação de instauração de inquérito policial pelo Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, Inspetoria do Paraná99, órgão do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Segundo ofício dirigido à polícia de Palmas, o jornal Xanxerê, em sua edição de 15 de junho de 1911, dirigiu carta aberta ao inspetor José Ozorio, assinada por seu redator, Gonçalino Santillan Silva, denunciando matança de índios na fazenda Santa Rita, em Palmas, e apontando como autores Durval Pinto e Mariano Roméro. As testemunhas ouvidas, em número de seis, declararam que os réus lideravam uma comitiva que extraia erva-mate e que encontraram grande quantidade de animais mortos e carne moqueada (assada em grelhas), e também armas de uso dos indígenas, como flechas e arcos. Parte das testemunhas afirmou que a comitiva foi em busca dos índios responsáveis pela matança dos animais, mas não encontrou nenhum. Outras testemunhas afirmaram que alguns participantes da comitiva não se enveredaram pelo mato por medo: “Não foram, nem tiveram vontade de ir, pois conhecem muito bem os costumes dos índios e tinham medo de alguma emboscada [...]”, declarou a 4ª testemunha, um fazendeiro local. O inquérito foi arquivado em 14 de fevereiro de 1912. O outro inquérito, datado de 1916100, também apresenta solicitação do mesmo Ministério. Segundo a denúncia recebida pela inspetoria, em 2 de fevereiro, na Estrada Estratégica de Porto União a Palmas, no trecho compreendido entre Iraty e o Horizonte de 99

Ofício n. 207, 7 ago. 1911. IP/1911/Palmas, Fazenda Santa Rita. IP/1916/Iraty.

100

87

Palmas, foi encontrado um grupo de cerca de doze pessoas armadas, entre os quais um fazendeiro, Moyses Mendes, que carregavam diversos maços de flechas e outros objetos de uso dos índios botocudos “bravios”. O grupo teria declarado que fora em perseguição aos índios que fugiram à sua aproximação, índios que andavam rondando as fazendas, incendiando paióis e destruindo plantações. Nenhum dos componentes da referida escolta nominados pelas testemunhas foi interrogado. O inquérito foi arquivado um mês depois, em 4 de março. Os ataques do colonizador aos índios botocudos foram normalmente descritos numa lógica maniqueísta e dicotômica, justificados como uma reação à ação do indígena, que em suas “correrias” (termo empregado nos documentos) assaltava casas, incendiava e matava seus moradores, cometendo toda sorte de atrocidades, como se vê neste trecho:

Correrias de selvagens. Algumas novas correrias dos selvagens bravios soffrerão este anno os municípios de Rio Negro e Palmas. No Rio Negro, quarteirão da – Estiva – os Botocudos assaltárão os sitios de alguns moradores mais proximos das matas, matando suas criações e aggredindo algumas pessoas, que ficarão feridas [...]. No municipio de Palmas, nos campos denominados de S. João, os Coroados, a 30 de Setembro transacto, invadirão as roças de Antonio Ferreira de Freitas, e assassinarão tres filhos deste, unicas pessoas que alli se achavão na occasião, roubando tudo que encontrarão dentro de um rancho proximo.101

A força empregada pelo colonizador, por meio de escoltas e “caçadas”, passou a ser tacitamente tolerada pela população local e até encarada como legítima quando contrastada com a violência empregada pelo indígena, o selvagem que agia de forma covarde, por meio de emboscadas. Os discursos são muito mais amenos quando se reportam ao colonizador, representado quase sempre como vulnerável e imbuído da missão civilizadora e regeneradora dos costumes, atingida pelo trabalho. No caso citado anteriormente, segundo o relator, “O subdelegado, activo e incançavel, sr. Martim Mader, com os poucos recursos de que dispunha, procurou tranquillisar os habitantes do lugar assaltado, afugentando os aggressores, cujo numero era extraordinário.”102 Uma das estratégias das autoridades, na prática da catequese, era a de cooptar parte dos membros das comunidades, favorecendo-os de uma forma ou outra, com presentes ou 101

PEDROSA, João José. [Relatório] 16 fev. 1881A, apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná (APP), p. 18. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. 102 Ibidem, p. 18.

88

gratificações, assim se utilizando do próprio indígena para formar forças defensivas, empregadas contra os demais103. A cooptação de lideranças se mostrou ainda mais eficiente, e chegou-se a estipular gratificações mensais104. Quando chefes indígenas cooperavam com o colonizador e suas autoridades, construíam-se discursos inversos aos citados anteriormente, podendo ir da simples exaltação até a heroicização. O caso de Vitorino Condá é bastante ilustrativo. O cacique dos índios coroados auxiliou as autoridades da Colônia do Chapecó, vindo a receber “soldo de capitão”. Por ocasião de sua morte, o jornal O Dia, de Florianópolis, dedicou em sua edição do domingo 1º de maio de 1904 considerável espaço para prestar-lhe homenagens póstumas.

Na colonia militar do Chapecó, n’este Estado falleceu ha dias o benemerito cacique Victorino Condá, chefe da tribo de índios coroados que vivem n’aquellas paragens. O nome de Condá está ligado à fundação de Palmas. Tanto elle como sua mulher Chaneré muito contribuíram para a catechese dos bravios índios que por aquellas regiões dominavam. Era o valente e destemido cacique resputado (sic) por todas as tribus das Missões, reconhecendo sua supremacia. Muitos foram os serviços que em vida prestou: assim, em 1865, nos trabalhos de abertura de uma estrada de Palmas a Corrientes, realizados pelo engenheiro Jeronymo Rodrigues de Moraes Jardim [...] durante todo o tempo defenderam a commissão contra as correria dos índios bravios [...]. Foi encarregado pelo então Conde de Caxias, presidente do Rio Grande, na catechese dos índios de Nonoay, vencendo soldo de capitão. Condá muito nos merece. Em toda aquella zona muito sentida tem sido a morte n’aquelle respeitado chefe. Seu nome muito perdurará na nossa historia e preito devemos a quem tanto se esforçou para trazer á civilização grande numero dos seus companheiros aborigenes.105

As lideranças políticas locais procuraram imortalizar os gestos de Condá batizando com seu nome, posteriormente, um estádio no município de Chapecó e uma escola indígena

103

“Comprehendendo que qualquer auxilio de força seria inefficáz para prevenir futuras incursões, representei ao Governo Imperial sobre a conveniencia de restabelecer-se o aldeamento de Papanduva, afim de para ahi serem attrahidos alguns desses selvagens, constituindo-se com elles uma guarda defensiva contra novos assaltos dos que persistirem bravios.” (Ibidem, p. 18). 104 “Catechese dos Indios. Por aviso de 4 de abril próximo findo, o ministério da agricultura concedeu a quantia de 2:000$000 rs. para ser aplicada ao serviço da catechese dos Indios do municipio de Guarapuava e fixou a gratificação mensal de 20$000 réis a cada um dos caciques Bandeira; Gregorio e Jangjó, que governão as tribos selvagens das margens do rio Pequiry, dos affluentes do Corumbatahy, dos campos da Atalaia e suas circunvizinhanças.” PEDROSA, João José. [Relatório] 8 maio 1881B, apresentado ao Presidente da Província Sancho de Barros Pimentel, por ocasião da transmissão do cargo. Localização: Arquivo Público do Paraná, p. 11. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. 105 O Dia, Órgão do Partido Republicano Catharinense, Florianópolis, Ano 4, n. 991, 1º maio 1904. Brasil, p. 3. Disponível em: . Acesso em 23 jul. 2014.

89

na aldeia kaingang situada no atual município de Ipuaçu, hoje denominada Escola Cacique Vanhkre. As políticas de catequização traziam resultados esparsos, e estiveram longe de promover total conversão do indígena às práticas culturais do colonizador. Na maior parte das vezes, a ação catequética acabava por promover a desestruturação de seu modus vivendi, negando assim sua própria condição humana. A fronteira aqui assume “caráter litúrgico e sacrifical, porque nela o outro é degradado” (MARTINS, 1997, p. 13). A Comissão Estratégica, mergulhada nessa realidade, por vezes também atuou nesse policiamento106 dos botocudos, e seus membros foram também vítimas de seus ataques, notícias correntes nos jornais. Um dos ataques mais marcantes ocorreu em 1906107, fazendo nove vítimas, entre mulheres e crianças. De acordo com o jornal A República, que reproduziu informações de telegrama encaminhado pela Comissão, os índios vinham há dias rondando o acampamento, atirando flechas. A Comissão encontrava-se acompanhada de um contingente de praças de engenharia, que haviam levado mulheres e filhos, e estava acampada a cerca de um quilômetro de Pouso Bonito. Os soldados estavam a cerca de dois quilômetros de distância do acampamento, na estrada, quando os índios atacaram, às 5 horas da tarde de 14 de janeiro, um domingo. Morreram a mulher do Soldado-mandador Manoel dos Passos e três filhos do casal, a mulher do Cabo de Esquadra Manoel Tertuliano da Silva e dois filhos, mais a mulher do Soldado Ricardo do Nascimento e o menino José, filho do Soldado-mandador Candido Mariano. Trinta praças do 1º Batalhão de Engenharia seguiram para reforçar a segurança da Comissão. O emprego desta na repressão aos indígenas foi por vezes criticado, e os soldados empregados nesse serviço, alcunhados de bugreiros108. A tomada de posse das fronteiras não eliminou fisicamente esse “outro” (índio, caboclo) que a ocupava, mas condenou-o a certa invisibilidade. Ao lado do mito do vazio demográfico, terminou por construir outro mito, o do pioneirismo daquele que trouxe a modernização e transformação da sociedade. Este assumiu ares de herói nos discursos políticos e historiográficos que passaram a se construir a partir de então. 106

“Da comissão estratégica, atualmente nessa comarca, partiram 20 e poucos praças do 1º Batalhão de Engenharia, acompanhando o tenente Fleury para afugentar índios indomáveis que estão cometendo depredações na fazenda Campo Alto. Cerca de 200 indios matando gado e ameaçando incendiar habitações.” (O Palmense, Palmas, ano 6, 12 jul. 1906. Brasil, p. 2). 107 A República, Curitiba, ano 21, n. 13, 16 jan. 1906. Brasil, p. 2. 108 A República, Curitiba, ano 21, n. 15, 18 jan. 1906. Brasil, p. 1 – rebate críticas feitas pelo jornal Diário, que chamou aos soldados enviados de “bugreiros”.

90

2.3 A COMISSÃO ESTRATÉGICA E A POPULAÇÃO LOCAL

Para as camadas populares, a presença do Pessoal da Estratégica e suas atividades de abertura de estradas oscilaram entre a proteção e a ameaça. De um lado, a possibilidade de oportunidades

de

trabalho

e

negócios109,

segurança

(presença

de

autoridades

militares/policiais) e auxílio em situações diversas. De outro lado, a tensão de conviver com homens armados e intrusos, que poderiam representar exatamente o contrário: insegurança, abuso e violência de uma força que poderia matar. A Comissão acampava-se em locais previamente estudados, onde seu trabalho fosse facilitado, e dividia-se em turmas, empregadas em trabalhos de instalação, reconhecimento, estudos e levantamento de plantas110. Construía-se uma infraestrutura semelhante a uma pequena vila, formada de casas (também denominadas ranchos), escola, enfermaria (a Comissão era acompanhada de, ao menos, um médico), casas de armas ou munição, barracões para depósito de materiais. Tratava-se de uma estrutura que demandava gastos e tempo; às vezes, os soldados ficavam afastados do acampamento, trabalhando na estrada. Por vezes, as famílias dos militares casados (ou amasiados) acompanhavam-nos. Além do pessoal militar, moradores locais eram empregados para trabalhar nas obras da Comissão, podendo inclusive residir nas casas construídas em seu entorno111. Formava-se assim uma microcomunidade que, em âmbito local, passava a influenciar diretamente a vida dos moradores, organizando, dirigindo e, às vezes, causando-lhes sérios problemas. A construção 109

Além das casas de negócio que começaram a aparecer às margens da Estrada, a manutenção dos destacamentos poderia também representar oportunidades de lucro para comerciantes. Em 1889, o Ministério da Fazenda publicava edital para licitação dos produtos necessários aos acampamentos. “Aguardente; Arroz; Araruta; Açucar redondo de 1ª qualidade; Açúcar refinado de 2ª qualidade; açúcar refinado de 3ª; azeite doce; bacalhau; banha de porco; batata inglesa; bolachas de 50g; café em grão; café moído; carne fresca de vaca; carne seca da terra; cerveja nacional; cerveja inglesa; chá yson; farinha de mandioca; farinha de milho; feijão preto, frango, fumo em rolo; galinha; goiabada em latas grandes; querosene inexplosivo; querosene; laranja; maisena; maisena inglesa; marmelada; massa para sopa; mate em kg; ovos, pão 460g; polvilho litro; queijo nacional; roscas 50g; sabão em caixa kg; sabão da terra; sal litro; toucinho; velas de composição, maço 250g; velas de cebo kg; vinagre de Lisboa; vinho branco; vinho tinto do Porto; vinho fino em garrafa; verduras e temperos; ração potreiro e pastagem; diária.” (A República, Curitiba, ano 4, n. 63, 14 dez. 1889. Brasil, p. 3). 110 OLIVEIRA, Conselheiro Candido Luiz Maria de. [Relatório] s/d 1885, apresentado à Assembléia Geral Legislativa, pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 38. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. 111 “Na estrada em construção, da vila união para Palmas, o denunciado, turbulento, perseguiu com taquara apontada a Antonio Gervasio de Araujo, que entrou no rancho de Manoel Candido, onde estavam acampados diversos trabalhadores da estrada.” (PC/1905/Iraty).

91

da estrada reconfigurava também a paisagem humana da região, ao levar soldados que terminavam por ficar residindo nas proximidades, e ao estimular a vinda de nacionais e estrangeiros para os trabalhos de construção. A documentação consultada dá conta de percorrer o andamento da Comissão112, desde Porto União até Palmas, passando por Iraty e outras localidades, o que cobre um período de cerca de oito ou nove anos – exatamente o tempo que nos interessa na análise dos desdobramentos que tiveram os conflitos de 1900. A Estrada de Porto União a Palmas começou a ser construída em 1886; em 1900, foi interrompida; e retomada em 1903. Em 1906, havia 82km construídos, com 494 “obras de arte”, como eram chamadas as pontes, bueiros e outras construções anexas.

2.3.1 A cobertura dada pela imprensa às atividades da Comissão Estratégica: os jornais A República e O Palmense

Sobre as reações das elites econômicas e políticas e suas relações com a Comissão, encontram-se registros em fontes tidas tradicionalmente como oficiais (os relatórios dos governos) e muito nos jornais escritos. Os jornais vão escrevendo a história dos altos escalões, registrando seus passos, ritualizando seus gestos. Dos oficiais, há uma quantidade maior de dados sobre suas vidas íntimas, como casamentos, nascimentos de filhos, aniversários, viagens, festas, publicações de sonetos, banquetes113. A imprensa, desde os seus primórdios, esteve fortemente vinculada a propósitos políticos, e não raros foram os jornais e folhetins criados com a única finalidade de promover interesses de famílias ou conglomerados políticos ou industriais. São oligarquias que detêm o poder em âmbito regional, e cujas alianças servem também de sustentáculo para o exercício dos poderes nos estados e no país, convertendo-se em forte “instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social” (PINSKY, 2006, p. 118).

112

Não é o propósito central deste trabalho investigar a fundo as atividades da Comissão Estratégica, como a construção da Estrada, por exemplo. Essas atividades nos interessam à medida que nos ajudam a situar a comissão entre a população local, a fim de perseguirmos nosso objetivo principal: analisar as relações desses militares com essas parcelas da população. 113 A República, Curitiba, ano 2, n. 64, 19 mar. 1906. Brasil, p. 1 e 2 – registrou um banquete oficial que o governador do estado ofereceu, no Palácio do Governo, ao General Bernardino Bormann. Detalhadamente narrado, cita até mesmo o cardápio (em francês) e o repertório da orquestra que tocou em seguida.

92

Segundo Charaudeau (2006, p. 36), “a informação não existe em si, mas é pura enunciação. Ela constrói saber e, como todo saber, depende ao mesmo tempo do campo de conhecimentos que o circunscreve”. A imprensa é o mecanismo que cria uma “visão oficial” sobre uma determinada realidade social, que constrói os fatos, dita certas verdades, já que registra, documenta; suas versões são sacramentadas por meio da escrita, mais difícil de ser contestada, e assim terminam por criar o consenso, a “palavra final”. Em muitos casos, os jornais são órgãos oficiais, que divulgam os atos dos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) nos municípios. Em tempos passados, nos pequenos municípios, era quase impossível dissociar as representações de poder das imagens criadas pela letra escrita. Aos poucos, os jornais (que detêm a letra escrita) se impõem e substituem a oralidade. A exemplo dos depoimentos registrados nos processos criminais (na maioria dos casos, o único registro de que dispomos), o que foi dito somente passou a ter valor quando escrito, ou seja, quando “reduzido a termo”. É grande o contraste entre o que se publica sobre os oficiais e a respeito das praças. Quando os pobres aparecem, é devido à necessidade de controle e alerta dos perigos que podem representar. No caso dos soldados, são citados em termos indignos de serem lembrados: “desertor”, “abandonou os quartéis” ou “deve ver-se processar”. Os soldados são aqueles que, convocados a construir a ordem, são mais interessados na desordem114. Dos jornais que mais nos utilizamos, o primeiro deles, A República, surgiu em março de 1886, sendo um órgão do Club Republicano destinado a propagar os ideais antimonarquistas, e encerrou suas atividades em 1930. Seu fundador, o engenheiro civil Eduardo Gonçalves, contava com a colaboração de Alvaro Teixeira Ramos, seu cunhado, e dos cidadãos Emiliano Perneta, Rocha Pombo e Nestor Victor. Vicente Machado, depois governador do estado, foi um de seus diretores (PILOTTO, 1976, p. 16). O jornal O Palmense, em circulação desde 1901 na cidade de Palmas, foi fundado por João Manoel da Cunha Sobrinho, que também foi promotor público da comarca. Como outros órgãos de imprensa, terminava por legitimar o direito e o poder de falar, de dizer a verdade. Afinados com os ideais republicanos, os diretores do jornal O Palmense (redator doutor Ribeiro Vianna, gerente Flavio F. Nogueira) eram também membros do Club Republicano e do Partido Republicano, sempre em diálogo com o jornal curitibano A República. O Palmense exaltou a guerra, a ação militar, a edição de 1º de março de 1908 114

Expressão empregada na QUARTA PALESTRA MILITAR. Revista do Exército Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 4, n. 4, p. 84, 1885. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015).

93

saudou as Guerras dos Farrapos e do Paraguai, com homenagem prestada como uma espécie de abertura do jornal:

1845 --1º MARÇO --1870 GUERRA DOS FARRAPOS - GLORIA: - GUERRA DO PARAGUAY Ao Exmº. Snr. Major Dr. Souza Amorim, digno Chefe da Commissão Estrategica de Palmas e o maior representante do Exercito Nacional nesta zona paranaense levamos as nossas effusivas congratulações pela memoravel data que a Patria registra em sua grandiosa historia.115

Os republicanos, ao contraporem-se ao extinto regime monárquico que empenharamse em desmoralizar, serviram-se largamente de símbolos, imagens e cultos a heróis na construção de memórias que legitimasse seus princípios e práticas.

[...] para o contexto brasileiro (como aquela que opunha a liberdade dos antigos com a liberdade dos modernos), quanto nas disputas acerca das versões da proclamação, dos heróis da República, das representações femininas da República, das representações da bandeira e do hino, há um combate acirrado pelo controle do imaginário enquanto instrumento de construção da legitimidade do novo regime. (ALVAREZ; SALLA; SOUZA, 2003, p. 4).116

Em 1906, por ocasião do 114º aniversário da execução de Tiradentes, o jornal O Palmense dedicou longo espaço, em primeira página, a render ao líder da Inconfidência Mineira homenagens póstumas fazendo uso de termos como “verdadeiro apóstolo do bem”, e “mártir da fé”. No mesmo espaço foram citados líderes da Confederação do Equador, como Frei Caneca e Padre Roma, que o texto referiu-se como “patriotas que afrontaram as iras monárquicas”117. O periódico acompanhou o andamento da Comissão, seu percurso, as obras construídas, inaugurações de pontes118. Elogiou abundantemente as ações de suas lideranças,

115

O Palmense, Palmas, ano 8, n. 243, 1º mar. 1908. Brasil, p. 1. (Em 1º de março de 1845, representando o lado farrapo, o comandante-em-chefe do Exército Republicano, David Canabarro, assinou o Tratado de Ponche Verde. Em 1º de março de 1870, morreu Solano López em Cerro Corá). 116 Ver, por exemplo, CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 117 O Palmense, Palmas, ano 6, n. 154, 22 abr. 1906. Brasil, p. 1. 118 “Conforme noticiamos no ultimo numero terá logar hoje, à 1 hora da tarde, a inauguração da bella e solida ponte construida pela Commissão Estrategica sobre o rio Caldeiras, na estrada estrategica em construcção. A assistir a inauguração destacamos um nosso companheiro de lutas, o qual no próximo numero escrevera relativamente a esse grande melhoramento. Desde já levamos os nossos agradecimentos a bríosa Commissão,

94

tanto militares como de caráter pessoal, com destaque para o Major Antonio Felix de Souza Amorim119, engenheiro militar que estava na condição de Capitão do destacamento de Jangada, por ocasião dos crimes de 1900, e que prosseguiu por bom tempo no comando da Comissão. Sua chegada a Palmas, por exemplo, foi saudada como sendo de grande importância para o desenvolvimento da cidade, considerado seu pessoal como de “maneiras delicadíssimas e competentes”. COMMISSÃO ESTRATEGICA Depois de longo tempo em esperanças fagueiras começamos a gozar a realidade d’ellas ; pois na semana ultima foi dado principio a mudança da séde de tão importante commissão do Iraty para esta cidade. Prende-se essa mudança a conclusão dos serviços da União da Victoria até a sahida dos nossos excellentes campos, ao atacamento de serviços que se vai fazer no percurso dos campos e aos estudos que se vão começar d’aqui ao Barracão, hoje Villa General Dionysio. As duas emprezas hervateiras que se acham em serviços neste vasto municipio paranaense já trouxa não pequena animação á população palmense e agora a mudança da sede da Commissão Estrategica para esta cidade vem encher de jubilo essa população; pois, ella acredita que esse facto vem enormemente concorrer para o desenvolvimento desta cidade. Essa Commissão composta de um pessoal competente e de maneiras delicadissimas em tudo vem trazer para Palmas um efficaz concurso para o seu engrandecimento breve. Interpretando os sentimentos da população palmense de antemão saúdamos os illustres e operosos membros componentes da Commissão Estragegica, aos quaes Palmas já bastante deve na pessoa do Sr. Te Oscar Paiva que já se acha entre nós.120

Esse excerto dá-nos a ideia da posição assumida pelos dirigentes do jornal em relação à Comissão Estratégica e seus líderes. Para fazendeiros e industriais da extração de madeira e erva-mate, a estrada representava a possibilidade de redução dos trajetos percorridos para o escoamento dos produtos, significando economia e aumento nos lucros. A chegada da Comissão foi assim aclamada por se tratar de um anseio e reivindicação antigos, pelo periódico que, no dizer de seus editores achava-se empreendia “verdadeira luta em favor do adiantamento desta zona paranaense”121.

que tanto se tem esforçado pelo nosso adiantamento.” (O Palmense, Palmas, ano 8, n. 243, 1º mar. 1908. Brasil, p. 2). 119 “Ao nosso illustre e distincto amigo exm. sr. Major Antonio F. Sousa Amorim e sua extremosa Consorte respeitosamente apresentamos os nossos effusivos parabens pelo feliz nascimento de seu galante bambino NEWTON, à 25 do corrente, ao qual os humildes escriptores d’este hebdomadário desejam um porvir todo cheio das maiores venturas.” (Ibidem, p. 2). 120 O Palmense, Palmas, ano 7, n. 183, 1 mar. 1907. Brasil, p. 3. 121 O Palmense, Palmas, ano 6, n. 179, 2 dez. 1906. Brasil, p.4.

95

Em outubro de 1906, o jornal fez alusão à “descoberta da América”, da qual “o Brasil ufana-se de uma das partes mais salientes”. Apesar das chuvas, houve festa com jogo de bilhar, e destacou-se a turma composta pelo Major Doutor Amorim, pelo Doutor Abelardo, Tenente Doutor Paiva, e pelos majores Gueriós e João Fernandes122. Às 19 horas ocorreu a posse do presidente eleito do Clube Palmense, Major Amorim. Em função do temporal, o baile programado foi suspenso, mas ocorreu no dia 14, domingo. O jornal traz uma narrativa lisonjeira e romantizada do baile, em que se prestou homenagem ao Major: BAILE N’um frisson electrisante de enthusiasmo, empolgdo (sic) todos os que o assistiram, correu o grande baile offerecido pelos amigos e admiradores do Snr. Major Dr. Antonio de Souza Amorim, no edifício do Club Civico Palmense, como prova de sympathia e consideração de que se fez S. S. merecedor pela limpidez diamantina de seu caracter de cavalheiro distinctissimo. Achavam-se os salões do Club, faustosamente decorados e feericamente illuminados quando, ao som de uma banda musical, foi a selecta onda de convidados prevenida da próxima chegada de S. S. De facto a alegria irradiava em todos os semplantes e cavatinavam, em festas, todos aquelles corações amigos, ao se approximar do edifício social do Club Civico Palmense, o Snr. Major Dr. Souza Amorim acompanhado por sua Exmª. Familia. E um murmúrio de satisfação avassalou os assistentes como si naquele expressivo momento, uma só idéa os abarcasse em circulo de affectos puros, ciciando-lhes n’alma um “ecce homo”, como o clarinar a rebate nos campos floridos da expontanea e lealíssima sinceridade da homenagem que se ia prestar. S. S. chegou acompanhado por sua Exmª Familia. Recebido pela commissão respectiva foi S.S. introduzido no salão principal do Club, acompanhado dos mais salientes vultos do nosso meio social, S.S ia pelo braço do Exmº Snr. Dr. Julio Abelardo Teixeira, digno Juiz de Direito da Comarca. Grande, compacta, fina e selecta era a massa de assistentes. Aquilo que Palmas tem de fino, de elevado e de elegante se achava ali, irmanado num só halo de sentimentos, expontaneos, grandiosos, sinceros, a render um preito de homenagem e de Justiça. Delegado pelos amigos e admiradores do Dr. Amorim, o normalista Costa Pinto, em rápido improviso, trouxe a S.S. as suas felicitações, fazendo o oferecimento do baile, como lhe haviam pedido. A bella oração foi constantemente interrompida pelos applausos calorosos do auditório, que, na eloquência característica de Costa Pinto, via perfeitamente exposta, atravez (sic) das suas inspiradas flores oratórias, a intenção que lhe invadia o espirito, ao cultuar o digno e dedicado amigo. O Dr. Amorim, em palavras de acrysolada sinceridade e perfeito cavalheirismo, agradeceu, penhorado, a significativa prova de estima e sympatia, que lhe acabavam de dar, os seus amigos.

122

O Palmense, Palmas, ano 6, n. 224, 20 out. 1906. Brasil, p. 2.

96

Em seguida, ao espoucar do champague (sic), foram ainda erguidos diversos brindes, primando sempre pela característica fidalguia e nobres expressões [...]123

A narrativa romanesca imita o que faziam outros órgãos de imprensa, como o que narrou o banquete oficial que o governador do estado ofereceu ao general Bernardino Bormann124. A edição do jornal que narrou o baile reportou-se a uma visita às instalações do jornal feita pelo major Souza Amorim, que foi agradecer “as merecidas referências” que o jornal vinha lhe fazendo, e à sua briosa comissão. A nota encerra assim: “Labutadores, posto que medíocres, em prol de tudo quanto se prende ao desenvolvimento e progresso desta vasta zona paranaense, é de nosso dever louvar todos que, como o illustre militar, vemos sacrificarem-se por esse desenvolvimento e progresso.”125

2.3.2 A Comissão Estratégica e as camadas populares

Quanto aos soldados e todos os demais pobres “indesejados” e “perigosos”, precisamos percorrer os registros policiais e judiciários, onde são vigiados, controlados e enquadrados. Dois documentos judiciais são particularmente reveladores do cotidiano da Comissão, e trazem uma riqueza de detalhes sobre a organização da vida em seu entorno. Trata-se de casos que envolvem mais diretamente o pessoal da estratégica, bem como terceiros que se encontravam direta ou indiretamente envolvidos em suas atividades. O primeiro documento registra um caso ocorrido no dia 25 de abril de 1907, uma quinta-feira, que envolveu e colocou na condição de réus alguns membros da família Guedes, e outros126. Uma confusão teve início na casa de negócios de Mazini Rossetti, localizada às margens da Estrada Porto União a Palmas. A confusão teria tido início quando os Guedes, migrantes gaúchos que trabalhavam com a Comissão e moravam provisoriamente no acampamento, começaram a “falar mal dos gringos”. Além dos Rossetti, naturais da Itália, os autos registram ainda a presença de Pedro Gueller, também natural da Itália, João Janson, natural da Suécia (que em outro inquérito aparece como comerciante), e Sebastião Gomes (ofendido), natural da Argentina, ervateiro. 123

Ibidem, p. 2. A República, n. 64, op. cit., p. 1. Acesso em 13 maio 2014. 125 O Palmense, n. 224, op. cit., p. 4. 126 PC/1907/Palmas. Foram réus Bazílio de Paula Guedes, Francisco Guedes, João Rosa Guedes, Sebastião Gomes, Noé Ferreira Colaço, Reynaldo Rossetti e Mazini Rossetti. 124

97

Reinaldo Rossetti, filho do negociante Rossetti, declarou que os réus entraram na casa de negócios de seu pai e provocaram a discussão que resultou em ofensas físicas. Então, ele dirigiu-se ao acampamento da turma do Tenente Polycarpo Ferreira Leite127 para dar parte. A testemunha Pedro Gueller também afirmou que foi comunicar o Tenente Policarpo, “visto ser este uma autoridade militar” (o chefe da Comissão era o major doutor Antonio Felix de Souza Amorim). O Tenente Policarpo declarou, ao prestar depoimento, que os Guedes e Noé Ferreira Colaço (outro envolvido) eram seus trabalhadores, empregados da Comissão há dois anos, e que se comportavam “de acordo com a disciplina exigida nos acampamentos”. Os autos do processo revelam esse dia a dia da Comissão, as atitudes de seus membros, a forma de se relacionarem e de como ia impondo ordem e disciplina entre os que se sujeitavam aos seus ditames. Outro processo judicial teve como réu o ex-soldado Jorge Manoel da Silva. Jorge, natural de Minas Gerais, era peão do fazendeiro Duca Arlindo na época em que o crime ocorreu

128

. No dia do conflito, o réu contornava a casa de residência do Comandante da

Comissão, acampada na localidade denominada Cedro, montado em uma mula, tocando uma vaca. Foi repreendido pelo Comandante, 1º Tenente, Geraldo Lins Caldas, que “chamou-o à ordem” e deu parte ao contingente que acompanhava a Comissão. O Comandante Geraldo declarou em seu depoimento que o réu, “Além de dar-se ao vício habitual de alcoolismo, em cujo estado encontrava-se [...] [era] também de máos precedentes sua conduta [...]”, e que, denunciando-o, pretendia prevenir eventualidades futuras. Disse também que nem todos os soldados presenciaram o fato porque estavam distantes, na construção da estrada. Uma testemunha disse que o réu falou ao tenente Geraldo: “Filha da puta, tome você conta da vaca, se quiser, e vai para o diabo que te carregue, pois eu não sou mais soldado, fique você sabendo disso.” Outra testemunha declarou que o réu vinha pela estrada definitiva e se enveredou pela estrada provisória, que falou impropérios ao Comandante na frente de sua esposa e filhas. Aqui o documento nos auxilia a pensar questões como a condição dos soldados que se desligavam da Comissão e ficavam residindo nas redondezas, sujeitos agora a outros senhores, fazendeiros e demais lideranças locais. Também é possível refletir sobre as atitudes

127 128

Um dos auxiliares da comissão declarou ser solteiro e ter 35 anos. IP/1908/Cedro, acampamento da comissão Jorge Manoel da Silva.

98

moralizadoras da Comissão e as representações de autoridade militar de oficiais e praças – questões que serão melhor exploradas no próximo capítulo. Em outro processo, encontramos um documento emitido pela Comissão cujos réus foram responsabilizados por terem atirado e atingido a cabeça de um dos frades129 da guarda de uma ponte, recém-construída sobre o rio Caldeiras. Algumas famílias achavam-se às margens do rio para assistir a uma orquestra, e os réus e seus amigos fizeram tiro ao alvo tendo por alvo uma garrafa colocada em uma parte da superestrutura da ponte. Os disparos atingiram o frade da ponte130. No documento emitido pela Comissão, assinado pelo tenente Oscar Saturnino de Paiva, responsável pela Estrada, considerou-se que os danos materiais não eram grandes mas poderiam comprometer a superestrutura da ponte, “destinada a utilidade pública”. Os réus foram tachados de irresponsáveis pelo tenente Paiva, por terem disparado tiros em um espaço público de circulação de pessoas, e por tratar-se aquela de uma atividade proibida pela polícia. O tenente solicitou providências ao Alferes José Rodrigues Sampaio de Almeida, comissário de polícia de Palmas. Foram maneiras das quais serviu-se a Comissão para impor-se como autoridade policial moralizadora. Outro registro de maior importância é um inquérito policial datado de 1905, que nos ajuda a analisarmos, inclusive, o impacto que os ataques aos polacos, em 1900, tiveram para a população local. O documento contém uma pequena memória do que fizeram alguns militares da Estratégica que por ali passaram, que nos ajuda a perceber a ação truculenta que o Exército poderia assumir131. Trata-se de um conflito que ocorreu em 8 de abril de 1905, também na Colônia General Carneiro, e envolveu praças e moradores. Na casa de comércio de Ignacio Kukul, os soldados Joaquim do Nascimento de Sant’Anna, Francisco Candido Rodrigues e Joaquim de Andrade e o Cabo de Esquadra Silvino Soares Peixoto desentenderam-se com o civil Antonio Paz de Almeida. Segundo as testemunhas132, Antonio vinha da venda de José Tesseroli133,

129

Frade: "Marco de pedra levantado à entrada de ruas ou à esquina das casas para impedir o passo de veículos ou o roce das rodas" (BRUNSWICK, Henrique. Novo Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa. 3. ed. Lisboa: Empresa Literária Fluminense, [19--?], p. 564). 130 IP/1908/Palmas Isidoro Costa Pinto. 131 IP/1905/General Carneiro. 132 Ignácio Kukul, negociante, 30 anos, casado, natural da Prussia. Hypolito das Chagas de Jesus Christo, 56 anos, natural de Santa Catarina, residente em General Carneiro, lavrador, sabe ler e escrever. Adolpho Brandt, 27 anos, casado, natural de Rio Negro, residente em Jangada, sapateiro. Francisco Fortes Nogueira, 22 anos, solteiro, natural do Rio Grande do Sul, residente em General Carneiro, sapateiro.

99

onde já havia tido altercações com o também civil João Candido, e houve uma discussão entre este e as praças. Antonio se retirou, voltando momentos depois, e as provocações prosseguiram, havendo então luta corporal que resultou em agressões produzidas com espada e facão em duas praças, e também detonação de tiros. Antonio também saiu ferido, mas não compareceu para o exame de corpo de delito quando intimado pelo subcomissário de polícia da Colônia General Carneiro, Laurindo Jose Garcia da Costa. Segundo as testemunhas, a discussão começou em função de insultos que as praças dirigiram a Antonio, relativos à sua etnia. A praça Francisco teria dito que “o arreio de caboclo não presta”, e que, nesta ocasião, entrava o acusado e, “entendendo que esta palavra era para maltratar os paisanos por ouvir dizer caboclo não presta”, teria dito em resposta “caboclo134 também só eu e voceis não são melhores do que os caboclos”. O termo “negrada” também foi empregado. Nas versões das testemunhas, Antonio não estava armado de pistola e não agrediu as praças. Já o subcomissário, em seu relatório, diz que as praças que se apresentaram para o exame de corpo de delito “não tinham ferimentos feitos por outros” e apresentavam “algumas esfoladinhas [feitas] por eles mesmos soldados, em seus serviços”. O caso de que tratam esses registros, ainda que não tenham passado de inquérito policial, traz um conjunto de curtos mas ricos depoimentos que nos ajudam a percorrer as problemáticas levantadas, onde mesclam-se questões sociais que evidenciam concepções e práticas racistas e autoritárias por parte do pessoal da Estratégica. Os diálogos citados pelas

133 As casas de comércio de Ignácio Kukul e José Tesseroli eram uma espécie de centro da vida social em General Carneiro, aparecendo com certa frequência nos documentos judicias consultados. 134 No léxico das mestiçagens do Novo Mundo, como caboclos geralmente são descritos os indivíduos com ascendência indígena (CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Selo Negro, 2000, p. 102). Freyre reporta-se várias vezes ao caboclo, principalmente no livro Sobrados & Mocambos, descrevendo-o como não branco e morador dos cortiços. Chama a atenção que nesses lugares moravam também brancos, quando "integrados na situação social de caboclo" (FREYRE, G. Sobrados e Mocambos. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961). PAIVA, E. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Belo Horizonte. Tese apresentada ao concurso de Professor Titular, Universidade Federal de Minas Gerais, 2012. A antropóloga Giralda Seyferth, ao falar de alguns motivos que favoreceram a imigração para o Rio Grande do Sul, diz que o estado possuía imensas áreas de terras devolutas, “que, apesar da existência de população indígena e de posseiros caboclos, eram considerados ‘vazios demográficos’, a espera de um povoamento racional”. Da mesma forma que afirma que “poucos brasileiros receberam terras em áreas de colonização no sul [...] este fato nada tem a ver com os imigrantes, mas com a própria política de colonização, que privilegiou o imigrante europeu como colono ideal, alijando os nacionais do processo.” (SEYFERTH, Giralda. A identidade teutobrasileira numa perspectiva histórica. In: MAUCH, Claudia; VASCONCELLOS, Naira (Orgs.). Os Alemães no Sul do Brasil. Canoas: ULBRA, 1994, p. 12-13).

100

testemunhas evidenciam questões raciais e de cor, muito presentes entre a população brasileira, empregadas em manifestações de poder e status social. Quando recorremos a documentos judiciais, que nos permitem escutar as vozes desses indivíduos que viviam nesse meio rural nos anos iniciais do século XX, percebemos o quanto a sociedade brasileira é racializada, ou seja, como circula cotidianamente um variado léxico gramatical que define os lugares sociais pela questão da cor. A declaração de Antônio Paz de Almeida é significativa também de uma certa autorrepresentação, assumindo ser caboclo em contraste com indivíduos outsiders.135 O depoimento que mais nos interessa nesse momento é o do pai de Antonio, Manoel Paz de Almeida, de 74 anos de idade136. Segundo ele, seu filho foi ofendido com um tiro que recebeu do soldado Sant’Anna, e o tiro foi ouvido por todos os moradores próximos. Quando seu filho chegou em casa, viu-o atingido (chumbiado) no braço direito. Perguntado por que não apresentou seu filho Antonio na hora do exame, já que ficou ciente que ia se proceder o auto de corpo de delito, explicou que

[...] seu filho não quiz por modo nem nium ficar em casa, receando que o Tte Escobar por alguma mentira dos seus soldados, viesem mandado por elle armados e fazer grande estragos em casa, eu lhe disse que não éra possivel acontecer isso, elle repetiu-me que éra capaes acontecer, essitou-me [sic] os acontecidos de outros officiaes que aqui rezediram os melitar que por enrredos de soldados contra paizanos, os seus comandantes, mandavam prender, castigar; até se deu que por enrredo de soldados um Alferes mandou matar paizanos, fazendo grande judiaria e como eu disso tenho conhecimento, dechei que se retirasce em virtude de eu ser um homem velho e doentio, só com minha velha e minhas filhinhas tambem reciei. (grifos nossos).137

O velho Manoel, certamente lavrador em um pequeno terreno de sua propriedade, chama em seu auxílio a opinião da comunidade, dizendo que o disparo da arma de fogo fora ouvido por todos os seus vizinhos. Talvez na casa desses vizinhos ou no mato, como fizeram os polacos vítimas dos ataques dos soldados, Antônio tenha procurado abrigo temporário contra os desmandos desses outsiders, incômodos, atrevidos e armados.

135

O termo aqui é empregado com conotação de “alguém que chega depois”. Abordaremos mais essa questão nas considerações finais deste capítulo. Ver: ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma comunidade. Tradução Vera Ribeiro; tradução do posfácio à edição alemã, Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 136 Casado, filho de José Paz de Almeida, natural de São Paulo, lavrador, sabe ler. Testemunha informante. 137 Chama a atenção o fato de que, no registro do depoimento, diferentemente dos demais, a linguagem empregada é a oral. Apenas nesse caso o escrivão empregou essa linguagem, e optamos por manter a forma constante no documento.

101

O subcomissário de polícia ordenou que os autos fossem remetidos ao promotor público, ainda que o Tenente Francisco Escobar Araujo, do 1º Batalhão de Engenharia, insistisse em processar Antonio. O promotor público João Manoel da Cunha Sobrinho, o mesmo que conduziu o processo de que tratam os crimes de 1900, sugeriu o arquivamento do inquérito, situação que deveria ser decidida pelo juiz; e o caso foi, de fato, arquivado. Não se trata de afirmar que as relações entre os militares e os demais componentes da sociedade tenham se pautado apenas por práticas autoritárias e violentas, mas de pensar o quão poderiam assim se tornar. A Comissão Estratégica traz o progresso; em dados momentos, pode se tornar auxílio para os moradores locais, em outros, torna-se sinônimo de autoritarismo, violência e morte. “A violência dos praças alimentava temores populares aos soldados e ressentimento frente ao Exército.” (BEATTIE, 2009, p. 281). O depoimento de Manoel revela uma condição de medo e desconfiança; o argumento dado por seu filho Antonio para não comparecer ao exame de corpo de delito, refere-se a outros momentos em que os oficiais agiram de forma truculenta e abusiva, por conta de altercações ocorridas entre praças e paisanos, com destaque para o caso em que um Alferes, por enredos de soldados, mandou matar paisanos “fazendo grande judiaria”. É muito provável que o pai de Antonio esteja se referindo aos ataques aos polacos praticados em junho de 1900, pela verossimilhança entre o fato narrado e o ocorrido em General Carneiro. O emprego do termo “enredo”138 esclarece bem o sentido das histórias contadas pelas praças aos oficiais. A insistência do tenente em processar Antonio também é reveladora dessa mentalidade hierárquica, em que o poder de comando, de garantia da ordem precisa se fazer respeitado, não se tolerando quaisquer possibilidades de insubordinação ou questionamento. Aproximações e confrontos marcaram o convívio entre o Pessoal da Estratégica e a população local. Além dos imigrantes poloneses, recentemente estabelecidos, havia outros imigrantes, italianos, russos, alemães, suecos, sírios, que ali se estabeleceram mais ou menos no mesmo período, bem como caboclos, indígenas e demais nacionais oriundos de outras partes do país139. As praças interagiam com essas parcelas da população e participavam, em boa medida, de sua vida social, frequentavam suas atividades festivas e religiosas, eram, por vezes, seus companheiros de trabalho. 138

A palavra “enredo” tem origem na palavra "rede", o que sugere o entrelaçamento, o emaranhado, o envolvimento. É também o ato de criar intrigas que ocasionam aborrecimentos, inimizades. 139 Jornais, inquéritos policiais, processos criminais e relatórios emitidos pelo governo do Paraná fazem referência com frequência a índios botocudos, e a documentação explorada revela a existência de uma diversidade muito grande de sujeitos, lugares de origem e profissões.

102

Uma das testemunhas dos crimes de 1900, Estephanio Ponbrowsky, era carpinteiro da Comissão, e declarou, em depoimento, que, na ocasião do conflito, acreditando que, por ser conhecido das praças, seria capaz de intervir e evitar maiores problemas, foi solicitado por eles a se afastar justamente por ser-lhes conhecido. A testemunha Senka Kerella afirmou ter sido agarrada pela praça Alfredo, e que este, ao reconhecê-la, pediu aos demais que não lhe fizessem mal, já que era “criada do senhor Modesto”. O soldado Manuel Joaquim de Araújo, ao ser atingido por uma paulada, no primeiro conflito, dirigiu-se à casa de um caboclo de nome Candido para receber um curativo. Seraphina, de 15 anos, e Senka, de 16, as mais jovens a deporem, citaram os nomes das praças e suas patentes, e a viúva Anastácia disse conhecer os nomes por informação, o que provavelmente procedeu da filha, mais familiarizada com a presença das praças (quando respondeu aos quesitos do Conselho de Guerra, disse que “a filha mais velha que fala e entende o português disse que os gritos eram: ‘Fogo’ e ‘Mata’”). As duas jovens foram identificadas como tendo a ocupação de criadas, ou seja, certamente trabalhavam em alguma residência local, na colônia Jangada (moradoras “do Jangada” é como são identificadas nos interrogatórios), e estavam em maior contato com as praças140.

2.4 OS POLACOS NOS AUTOS JUDICIAIS

Os polacos são também encontrados em outros autos criminais, na maior parte das vezes, em conflitos internos às suas comunidades, na condição de réus, vítimas, testemunhas, em casos que envolveram outros moradores, peritos em exames de corpo de delito. A organização da vida social dava-se, em boa medida, em torno das atividades religiosas, a igreja e seu entorno era o espaço de maior interação. Os casos judiciais mais expressivos deram-se como resultado dessas atividades religiosas e festivas, em que as casas de negócio eram uma espécie de prolongamento dos encontros, onde bebia-se e conversava-se sobre diversos assuntos. Os polacos também trabalharam na construção da estrada, também envolveram-se em conflitos com os botocudos e, como os demais, armaram-se. Em 1916, o polaco Guerino 140 É possível, ainda, que as indicações precisas das funções dos militares deva-se ao fato de que foram transcritos por componentes do Exército, mais conhecedores dessas atribuições e mais habituados a uma disciplina que trata os militares pelas suas patentes.

103

Lubi foi roubado em sua residência, sendo que os criminosos levaram duas Winchester’s, um revólver Browning e uma caixa de balas141. Um caso interessante ocorreu no ano de 1909, em processo em que foram réus os polacos Bazilio Wascovisky e Paulo Okpis. Segundo as testemunhas, Bazilio estava com outros polacos e Paulo aproximou-se e chamou-o de ladrão, acusando-o de ter ficado com boa parte do dinheiro arrecadado para a construção da igreja da Colônia General Carneiro, que já se achava construída. A injúria resultou em agressões físicas por parte dos dois réus142. Para além dos fatos criminosos, os autos registram esses passos cotidianos, aparentemente tão simples, do andamento da vida dos imigrantes, como a organização para a construção da igreja, que nos vão colocando em contato com suas crenças e costumes, recriados e ressignificados nas novas colônias. Bazílio Waskovsky foi réu, juntamente com o carroceiro Thomas Gaiowis, em outro caso, ocorrido em 1913143. Após uma cerimônia religiosa, no domingo dia 23 de novembro (uma das testemunhas disse que veio da igreja dos rutenos), dirigiram-se à casa de Carpi Muzika (um dos feridos nos crimes de 1900, que se tornou comerciante), onde beberam aguardente, conversaram amigavelmente e trataram negócios de compra e venda de milho. Segundo a vítima André Mussauncky, os réus o haviam convidado para tocar rabeca, pois era bom músico; aí chegou Navaro Angilis, em completo estado de embriagues, e André pediu-lhe que se retirasse, para evitar problemas. Os réus teriam tomado as dores de Navaro e agrediram a vítima verbalmente, inclusive atacando sua crença e religião. Em seguida, arrastaram-no para fora dali e agrediram-no com pauladas e pedradas. Boa parte dos casos foi justificada pela embriagues de seus responsáveis, como o caso em que Antonio Gelasky Atirou em Pedro Drabek em frente à casa de Carpi Muzka. Ambos, réu e vítima, haviam bebido144. Pedro Drabek foi réu em outro processo, de 1908: após cobrar por um serviço prestado a João Tropak (que se declarou natural da Rússia), agrediu-o fisicamente. Também foi considerado um crime motivado pela embriagues o cometido por Rinko Kolub145. O réu, que se declarou comerciante, morador do Jangada, matou Maria Horabathuk a tiros de pistola de fogo central calibre 450. 141

PC/1916/General Carneiro. Guerino Lubi declarou ser natural da Áustria, ter 36 anos e ser casado. PC/1909/Jangada. 143 PC/1913/General Carneiro. 144 PC/1912/Jangada. 145 PC/1909/General Carneiro. 142

104

O crime aconteceu após uma festa de casamento que se deu em casa de Carpi Muzika. Um grupo de polacos saiu do baile, que se estendeu até por volta das 8 horas da manhã; seguiam os noivos até sua residência quando, a cerca de 600 metros da casa de Carpi, dispararam tiros de salvas. A vítima, que trazia à mão uma criança, foi atingida no peito por um dos disparos que causaram sua morte. Em fevereiro de 1910, o promotor requereu o arquivamento do caso, alegando que o fato imputado a Rinco Kolub “foi todo casual, assim, não tendo havido crime”. O juiz absolveu o réu, com base nos argumentos do promotor. Cobranças de dívidas e desacertos com outros imigrantes e demais moradores também levaram os polacos a terem suas trajetórias registradas em autos criminais. Em abril de 1915, estava a comunidade reunida para uma festa religiosa em sua igreja em General Carneiro quando ali entraram João Clemente Tesseroli146, Damaso Soroca e Alexandre Sernoski. Os recém-chegados disseram “pesadas pilhérias”, ofendendo as famílias ali presentes. Guerino Lubi e Miguel Tchaicovski, duas lideranças entre os polacos, pediram aos desordeiros que se retirassem, pois estavam profanando o lugar. Momentos depois, Guerino e Miguel conversavam no prédio escolar, ao lado da igreja, naquele dia se ocupavam justamente de sua mudança, e os réus voltaram, provocando novas discussões. Por fim, agrediram Guerino e sua esposa, que estava grávida, no trajeto de volta para casa. O réu Alexandre teria declarado, momentos antes, a Francisco Viliquevis, uma das testemunhas, que tinha uma conta a acertar com Lubi. O jornal A República noticiou o caso147.

É possível pensarmos as relações entre os militares – nacionais – e os imigrantes pela dinâmica proposta por Norbert Elias (2000) entre os estabelecidos e os outsiders. O sociólogo analisou relações entre habitantes de uma comunidade da Inglaterra, Winston Parva (nome fictício), em que os moradores mais antigos, sem que houvesse qualquer diferença social ou étnica em relação aos demais moradores, assumiram uma posição de superioridade, fundada no princípio da antiguidade, ou seja, pelo fato de terem sido os primeiros a chegar, a se estabelecer no local, e terminaram por estigmatizar e marginalizar os últimos, moradores mais recentes. Embora partilhassem em muito suas vidas com os 146

PC/1915/General Carneiro. João Clemente Tesseroli e outros. No caso em que Guerino Lubi foi roubado em sua residência, ocorrido em 1916, alegou que teria sido José Tesseroli, o pai de João Clemente, o mandante do crime. As famílias pareciam alimentar alguma desavença. 147 A República, Curitiba, ano 29, n. 102, 6 maio 1915. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em 21 jul. 2014.

105

moradores recentes (outsiders), entendiam que deveriam fazer valer o direito a comporem uma espécie de casta privilegiada. Federico Neiburg, na apresentação à edição brasileira que faz à obra de Elias, esclarece o emprego dos termos que compõem o título do livro. Segundo Neiburg, na língua inglesa, os termos establishment e established são empregados para designar “grupos e indivíduos que ocupam posições de prestígio e poder” (NEIBURG apud ELIAS, 2000, p. 7), sendo um establishment

[...] um grupo que se autopercebe e que é reconhecido como uma “boa sociedade”, mais poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma combinação singular de tradição, autoridade e influência: os established fundam o seu poder no fato de serem um modelo moral para os outros.

Na outra ponta, estão os outsiders148, os “[...] não membros da ‘boa sociedade’, os que estão fora dela. Trata-se de um conjunto heterogêneo e difuso de pessoas unidas por laços sociais menos intensos do que aqueles que unem os established.” (NEIBURG apud ELIAS, 2000, p. 7, grifo no original). Não chegam a constituir um grupo social, e vivem estigmatizados por “todos os atributos associados a anomia, como a delinquência, a violência e a desintegração” (ibidem, p. 7), ou seja, são os que apresentam uma conduta considerada ilícita. As relações observadas entre os sujeitos que são nosso objeto de estudo podem ser pensadas nos termos do modelo proposto por Elias em dois vieses: 1) em termos da superioridade que os militares assumem sobre os moradores, em especial sobre os imigrantes; 2) no interior do próprio destacamento, reprodução de contradições sociais e históricas que assinalaram a construção da nação brasileira. Embora os militares não estejam em seu locus, suas cidades, onde têm suas raízes, suas histórias, enfim, nas comunidades onde nasceram – encontram-se ali destacados, ou seja, temporariamente –, há um conjunto de fatores identitários comuns que os aproximam. Se pensados em termos de país, são os moradores mais antigos, ocupantes desse (amplo) espaço há mais tempo que os imigrantes poloneses – recém-chegados, estrangeiros, outsiders.

148

O termo outsiders foi inicialmente traduzido por “marginais” e ‘desviantes”, significando o “marginal” como “alguém que está do lado de fora, para além das margens de determinada fronteira ou limite social”. Posteriormente o termo manteve-se em sua composição original, já que seu uso tornou-se consagrado nas ciências sociais. Ver: BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 15.

106

Essa antiguidade, mais a possibilidade de fazerem uso legítimo da força, detendo o monopólio legal das armas e de, nesse momento, representarem uma importante e forte instituição nacional – o Exército – confere-lhes algum sentimento de superioridade e autoridade em relação aos polacos, esses “desordeiros” que, ao serem chamados a servir um copo d’água a passantes, atacam e agridem com paus, pedras e garrafas. Em tese, pode-se dizer que o primeiro grupo encontra-se “bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído” (ELIAS, 2000, p. 23), o que lhe possibilitaria “estigmatizar outro [grupo] com eficácia” (ibidem, p. 23). Para Neiburg, o uso da força física, a violência e o assassinato são virtualidades de toda relação entre estabelecidos e outsiders (NEIBURG in ELIAS, 2000, p. 7). Segundo Monsma (2004, p. 50-51), que analisou interações entre imigrantes europeus e negros no oeste paulista na virada do século XIX para o XX,

A maior parte dessas interações explosivas entre italianos, de um lado, e pretos, mestiços ou caboclos, de outro, envolvia lutas sobre quem tinha o direito de mandar e quem devia acatar. [...] Quando um brasileiro negro agredia um italiano, era tipicamente em resposta a uma atitude de superioridade ou autoridade que este havia assumido, sem ter uma posição que formalizasse tal prestígio. Quando um italiano feria ou matava um preto, pardo, mulato ou caboclo, em geral era depois de este ter afirmado sua igualdade e dignidade abertamente, insistindo em trato igual ou até, em alguns casos, tendo a audácia de aconselhar ou mandar em um italiano.

Outra possibilidade de se pensar nossos sujeitos em termos propostos por Elias é a partir do interior do próprio destacamento, essa microssociedade, regida por regras próprias e que encerra características da macrossociedade brasileira. Concordamos com Elias (2000, p. 16) quando afirma que “Os problemas em pequena escala do desenvolvimento de uma comunidade e os problemas em larga escala do desenvolvimento de um país são inseparáveis.” Os militares estão posicionados diferentemente, no Exército e na sociedade: uma posição é a das praças, parte da escória, “catada a laço” em sua maior parte em estados nordestinos, a quem o conceito de anomia – a inadequação às normas, indignos de confiança – se aplica perfeitamente quando pensamos em termos da mentalidade militar149 da época. As

149 “A idéia defendida por Huntington e que nos levou a aproximação entre os dois autores é de que a melhor técnica para a análise da mentalidade militar é a que privilegia a análise das fontes militares, admitindo que toda expressão de atitude e de valor militares vindos de uma fonte militar reflete a mentalidade militar.”

107

fés de ofício das praças – juntadas para o Conselho de Guerra – apontam para um comportamento, salvo algumas situações de exceção, tido como indisciplinado. Outra posição é aquela em que se encontra o Alferes Torres e demais oficiais, de modo geral, componentes da boa sociedade. No caso das praças, ainda que possam assumir, diante dos estrangeiros, a condição de estabelecidos, no contexto amplo da sociedade brasileira, enquadram-se mais na categoria de outsiders, já que não fazem parte da boa sociedade. Embora, em tese, a constituição de 1891 lhes tenha conferido o caráter de cidadãos, diante dos imigrantes polacos, sobre os quais recaem inúmeros estigmas, encontram-se, em questões de tratamento e consideração aos direitos, em condições desiguais. Nenhum polaco foi processado, embora suas ações também tenham sido de certo modo julgadas ao longo das investigações, como se verá especialmente na defesa apresentada por Torres ao CG. “Em Winston Parva, como em outros lugares, viamse membros de um grupo estigmatizando os de outro, não por suas qualidades individuais como pessoas, mas por eles pertencerem a um grupo coletivamente considerado diferente e inferior ao próprio grupo.” (ELIAS, 2000, p. 23). É exatamente isso que fará Torres, na referida defesa, em relação aos polacos. Os soldados estão na parte mais fraca da corda. Em relação a seus conterrâneos, sabem e reconhecem que fazem parte de uma sociedade na qual estão subjugados, onde, semelhantemente à realidade das casernas, existem superiores. É o que se pode facilmente constatar na recomendação que fez aos demais o soldado Alfredo, ao agarrar a jovem Senka Kerela, de que não a molestassem, já que era criada do Senhor Modesto150. Ao passo que a esses nacionais, pobres, oriundos dos substratos sociais mais inferiores e descendentes, em boa parte, de escravos, a cidadania – acesso a terra, bens, educação, direitos sociais, políticos e civis – lhes tenha sido historicamente negada151, aos imigrantes, o (MANCUSO, Amanda Pinheiro. A profissão militar: uma revisão de conceitos. XII Congresso Brasileiro de Sociologia. 31 de maio a 03 de junho de 2005 Fafich/UFMG – Belo Horizonte, MG, p. 3). Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2014). 150 Ao longo do processo, aparecem dois cidadãos com o nome de Modesto: um que participou dos exames de delito e o outro proprietário de um hotel, espécie de ponto de encontro onde reuniam-se moradores locais e viajantes, onde uma das testemunhas que depôs na esfera cível hospedou-se na noite dos crimes. 151 Na verdade, a compreensão e o debate em torno da cidadania, na época, era ainda bastante incipiente. E mesmo a constituição de 1988 ainda suscita questionamentos. “Louis Dumont é agudo no tratamento da matéria. Em seu “Homo Aequalis” aborda diretamente o tema dizendo que há uma diferença fundamental entre as sociedades ditas tradicionais, nas quais a hierarquia aparece como valor supremo, e as sociedades igualitárias, onde o igualitarismo reina como um dos valores cardeais. O contraste hierarquia/igualdade é só uma parte da questão. Existe um outro ponto, subjacente ao primeiro e de aplicação mais geral: as sociedades tradicionais valorizam, em primeiro lugar, a ordem, isto é, a conformidade de cada elemento com o seu papel no conjunto.” “A sociedade brasileira, como já foi dito, apresenta uma peculiar fusão dos modelos igualitário e hierárquico de

108

governo brasileiro de certo modo promove, à medida que incentiva sua vinda ao Brasil, com subsídios para a viagem, concessão de terras a preços “acessíveis”, ferramentas e algumas outras garantias. Os soldados, na expressão de Flávio dos Santos Gomes (CUNHA; GOMES, 2007, p. 13), encontram-se numa condição de “quase-cidadãos”, partilhada por ex-escravos e “livres de cor”. Uma realidade diante da qual o autor questiona: “O que fazer então com as marcas físicas e simbólicas desse passado, inalteráveis mesmo diante de operações jurídicas, institucionais e simbólicas diversas?” Ressalva-se, como já dito, que nenhum polaco foi processado, a despeito de lhes terem recaído acusações de agressões físicas, e sua causa mereceu destaque da imprensa e a preocupação do Governo, por meio do Ministro da Guerra, Marechal Mallet152, e do Capitão do destacamento, Antônio Felix de Souza Amorim, que considerou os ataques como gravíssimos153. Os dois paralelos exemplificam o que Elias denomina de “propriedades gerais de toda relação de poder” (NEIBURG apud ELIAS, 2000, p. 8). No primeiro exemplo, que considera os militares e os imigrantes a partir do binômio estabelecidos-outsiders, existem elementos mais distintivos entre os dois grupos que podem servir de justificativa aos nacionais, estabelecidos, para o tratamento brutal dispensado aos colonos, estrangeiros, exóticos. Seja como for, ressalvadas nacionalidades e etnias ou culturas diferenciadas, ou outros elementos que possam ser considerados, há algo que aproxima os dois grupos. O primeiro traço comum é a situação de pobreza e marginalização de soldados e imigrantes, ainda que resultantes de contextos socioeconômicos um tanto diferenciados. Outro fator de certa aproximação, condicionado ao primeiro, diz respeito à sua presença em terras da Zona Estratégica. Embora com propósitos um tanto distintos, ambos buscam, em primeiro plano, garantir sua sobrevivência. Os imigrantes querem estabelecer-se, sobreviver do trabalho na terra, construir suas famílias e suas vidas na terra que, para eles, é nova; os militares, embora apenas construam uma estrada, também asseguram sua sobrevivência, seja ingressando voluntariamente ou pelo sistema de recrutamento, isto é, não

sociedade.” (MENDES, Regina Lúcia Teixeira de. Brasileiros: nacionais ou cidadãos? Um estudo acerca dos direitos de cidadania no Brasil em perspectiva comparada. SJRJ, Rio de Janeiro, n. 20, p. 61-80, 2007). 152 Essa repercussão será analisada no capítulo 4. 153 Cf. telegrama encaminhado pelo Capitão a Francisco da Rocha Callado, em 13 de junho de 1900. Fl. 131 do PC/1900/General Carneiro.

109

pretendem permanecer, fincar raízes, como os imigrantes, embora muitos terminaram por ficar e jamais voltem aos seus locais de origem. A despeito disso tudo, há um interesse que se sobrepõe, do governo brasileiro, de ocupar essas terras despovoadas, fazendo com que se tornem produtivas e povoadas, como forma de garantir uma posse que vem sendo questionada pela nação vizinha. Daí a construção da Estrada Estratégica e o incentivo à formação de colônias de imigrantes, numa investida de modernização capitalista. Pode-se então dizer que os dois grupos estão “ao mesmo tempo, separados e unidos por um laço tenso e desigual de interdependência” (NEIBURG apud ELIAS, 2000, p. 8). São exemplos claros os citados casos do polaco Estephanio Ponbrowsky, carpinteiro da Comissão, e das menores Seraphina e Senka, criadas em casas de moradores locais. O Estado promove uma mobilização exploratória que envida esforços que devem recair sobre os indivíduos dos dois grupos, que se utilizam, inclusive, de serviços e favores uns dos outros, tornando-se mais e mais interdependentes. Segundo Norbert Elias (2001, p. 33),

Quando os outsiders são necessários de algum modo aos grupos estabelecidos, quando têm alguma função para estes, o vínculo duplo começa a funcionar mais abertamente e o faz de maneira crescente quando a desigualdade da dependência, sem desaparecer, diminui – quando o equilíbrio de poder pende um pouco a favor dos outsiders.

Essas considerações talvez nos ajudem a pensar o fato de que houve um certo favorecimento por parte do governo republicano, que incentiva a presença dos imigrantes, e que não culpou nenhum polaco, embora na totalidade do processo estes não tenham sido “favorecidos”, já que nenhum acusado foi condenado, apenas estiveram presos alguns deles, por algum tempo. Isso talvez deva-se mais ao corporativismo do Exército. No segundo modelo, o que analisa as relações estabelecidos-outsiders no interior do Exército, amostra da sociedade brasileira, na análise dos posicionamentos de Torres e das praças, fica evidente a demarcação de posições. O Alferes Torres, que se converte em uma espécie de personagem central nesse drama, desde o início, coloca-se naturalmente na posição de alguém que – embora também cumpra ordens – comanda, determina, encontra-se em posição de superioridade. Para Norbert Elias (2000, p. 25-26), trata-se de uma “imagem que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre outros e, por conseguinte, de seu próprio status como membro

110

desse grupo.” Nos autos judiciais, juntam-se assentamentos (as fés de ofício) que indicam os antecedentes do acusado, e servem “para demonstrar, segundo o caso, a conformidade do acusado com o modelo sociofamiliar, sua origem respeitável etc.” (FAUSTO, 2001, p. 31). Segundo Peter Beattie (2009, p. 276), “os oficiais usavam os assentamentos para abrandar ou intensificar as punições”. No caso das praças, podem atestar, com raras exceções, exatamente o contrário, sua “má conduta” que os torna, segundo concepções científicas e ideológicas da época, “humanamente inferiores”. A ideia de superioridade pode ser vista nos ataques aos elementos étnicos no inquérito citado, de 1905, em que soldados e moradores locais trocam acusações permeadas por características de cor de pele, que foram historicamente empregadas como sinônimos de “inferioridade”/“superioridade” e status. “Com frequência, os próprios nomes dos grupos que estão numa situação de outsiders trazem em si, até mesmo para os ouvidos de seus membros, implicações de inferioridade e desonra.” (ELIAS, 2001, p. 27). Nas duas hipóteses ora pensadas, com base nas conclusões de Norbert Elias, entendese que os confrontos revelam uma complexa rede de relações em que “Superioridade social e moral, autopercepção e reconhecimento, pertencimento e exclusão são elementos dessa dimensão da vida social que o par estabelecidos-outsiders ilumina exemplarmente: as relações de poder.” (NEIBURG apud ELIAS, 2000, p. 8). Essas elações de poder, marcadas pelo autoritarismo, presentes tanto no interior do Exército, direcionadas pelos seus princípios de hierarquia e disciplina, como nas relações dos militares com os paisanos, serão mais acentuadamente analisadas nos capítulos que seguem.

111

3 A JUSTIÇA MILITAR E A LEGISLAÇÃO PARA CRIMES MILITARES

Neste capítulo, discorremos sobre a história da Justiça Militar no Brasil e da legislação aplicada aos crimes considerados tipicamente militares nos primeiros anos do regime republicano. Em seguida, analisamos as tendências manifestadas pelos juízes/oficiais que deliberavam e suas implicações nos resultados dos julgamentos, concluindo com uma reflexão a respeito de como, na instauração de um processo judicial, podem concorrer diferentes versões/verdades que irão competir na indicação dos culpados.

3.1 QUEM JULGA OS MILITARES?

112

A Justiça Militar é um ramo dentro do Direito Penal que foi, progressivamente, passando por certa especialização, denominando-se Direito Penal Militar154, e ocupa-se de um gênero de crime que, deixando de ser considerado comum, passou a denominar-se militar. O Direito Penal Militar não dispõe de uma definição clara e precisa de crime militar. Suas origens são remotas, comumente situadas entre o Direito Romano e o Direito Germânico: “Desde o instante em que se passou a cominar penas severas (distintas das meramente disciplinares) aos guerreiros faltosos, pode-se dizer que surgia o Direito Penal Militar.” (OLIVEIRA, 2010, p. 215). No início do século XIX, Esmeraldino Bandeira, jurista bastante citado entre os autores que tratam do tema, definiu crimes militares como “infrações específicas e funcionais da profissão do soldado” (BANDEIRA, 1919, p. 30). Tais crimes são normalmente divididos em crimes propriamente militares e crimes impropriamente militares. Crimes propriamente militares são normalmente aqueles cometidos como decorrência da especificidade das funções que os militares ocupam, de alcance apenas dessa ocupação em específico, embora possam, em determinadas circunstâncias, ser praticados por paisanos155.

Como exemplos citam-se os crimes [propriamente militares] de deserção, abandono de posto, desacato a superior, motim etc. Os impropriamente militares são crimes comuns, que adquirem a feição militar, em virtude de algum elemento especializante, como o local em que [é] praticado, o tempo, o bem atingido etc. Desse modo, a receptação de armas militares, por exemplo, é crime impropriamente militar em razão da natureza do bem tutelado, integrante do patrimônio militar. (DUARTE, 2011, p. 95).

Dito de outro modo, crimes impropriamente militares podem ser definidos como os crimes que os militares cometem e que poderiam ser cometidos por quaisquer outros

154

Ao Direito Penal Militar, somam-se outras disciplinas que constituem campos específicos do saber no campo jurídico, tais como: Direito Processual Penal Militar; Direito Administrativo Militar; Direito Disciplinar Militar; Direito Previdenciário Militar; Direito Internacional Humanitário (DUARTE, Antônio Pereira. A construção científica do ordenamento militar. Revista do Ministério Público Militar. Ano 37, n. 22 (nov. 2011). Brasília: Procuradoria-Geral de Justiça Militar, p. 90). 155 Em 2013, o procurador-geral da Justiça Militar Marcelo Weitzel Rabello de Souza chamava a atenção para o fato de que “O direito também não pode fugir da realidade social do país e como tal o direito penal militar. No Brasil, civis adentram em Unidades Militares com o objetivo de subtraírem material bélico. Explodem caixas eletrônicos dentro de Organizações militares, sem falarmos na praga da corrupção que não só tenta mas atenta a gestão de contratos em geral e o fornecimento de bens em particular, como ainda, espalha-se por meio de traficantes que buscam melhor aparelhamento militar. Tais fatos, aqui rapidamente exemplificados, exigem uma conceituação e consequentemente um campo procedimental diverso para a figura do crime propriamente militar, haja vista o enorme campo de agentes civis que podem cometer tais delitos.” (SOUZA, Marcelo Weitzel Rabello de Souza. Esse tal crime propriamente militar. Busca de um conceito. Revista do Ministério Público Militar. Ano 38, n. 23 (nov. 2013). Brasília: Procuradoria-Geral de Justiça Militar, p. 22).

113

indivíduos, ou seja, que não se encontram associados, necessariamente, à prática de uma profissão, a militar, por exemplo156. Considerado o ramo mais antigo de justiça especializada no Brasil, a Justiça Militar é a instituição que “conseguiu manter-se de forma independente diante dos mais diversos movimentos sociais e políticos que se sucederam, atravessando períodos de maior ou menor instabilidade nacional” (PEDRA, 2014, p. 214). A defesa da necessidade de foro especial para julgar crimes militares justifica-se, em boa medida, em função das condições próprias da vida e atividades da caserna, em que hierarquia e disciplina constituem-se em pilares básicos da organização militar. Diferentemente de qualquer civil, que tem a liberdade de deslocar-se, “O militar é obrigado a obedecer e a permanecer, anomalia essa que se não vê na vida civil.” (GUSMÃO, 1915, p. 316). Sendo assim,

Condutas que, no Direito Penal comum, porventura seriam até mesmo consideradas de pequeníssimo potencial ofensivo, são graves delito (sic) militares, como a deserção, o desrespeito à superior, a embriaguez em serviço, o abandono de posto, dentre outros crimes propriamente militares, que podem ser desastrosos ao controle das Forças Armadas e, por consequência, à soberania de nação. (OLIVEIRA, 2010, p. 230).

Os argumentos permaneceram praticamente inalterados ao longo do tempo. A manutenção da ordem, a soberania, a segurança e a própria existência do Estado só se efetivam, aos olhos de seus defensores – sobretudo dos que falam de dentro das instituições militares –, quando fundados sobre os dois bens jurídicos que a norma penal visa tutelar:

156

“Após exaustiva pesquisa histórica e no Direito Comparado, observa-se a ausência de uma única classificação que possa abranger a quantidade de crimes militares e, entre esses, os que seriam própria ou impropriamente militares, haja vista sempre apresentarem alguma falha quando se tem em conta o bem jurídico tutelado. O autor espanhol [Guimerá] [...] chega a elencar após o seu estudo diversas classificações, tais como: a) fundamentalmente militares. Aqueles que exclusivamente vulneram um interesse jurídico militar; b) Eminentemente militares, nos quais se lesiona um bem jurídico militar e também um comum; c) delitos militares pelos quais se descreve fundamentalmente um tipo comum, porém certas circunstâncias acabam reclamando sua presença no Código Penal Militar; como ainda o que a doutrina denominou de delitos militarizados que seriam inicialmente de caráter comum, porém, têm uma relevância militar, haja vista entender o legislador que a descrição contida no tipo comum é insuficiente para proteção do bem jurídico militar, ou então, por terem sido atraídos para o fórum militar em razão da apenação contida na legislação castrense ser mais grave. Por último, descreve ainda uma outra característica de crime militar que se trata na realidade de um delito comum com a qual concorre alguma característica militar. As classificações relacionadas tiveram pelo autor a companhia de diversos exemplos colacionados na legislação em geral.” (SOUZA, 2013, op. cit., p. 18, com base em GUIMERÁ, J. F. H. Curso de Derecho Penal Militar Español. Barcelona: Bosch, 1990. p. 314 e 315).

114

disciplina e hierarquia157. Segundo Lendel Fernandes Oliveira (2010, p. 215), “As bases sobre as quais se organizavam as antigas legiões de guerreiros romanos e sobre as quais se fundam as forças militares dos estados modernos são as mesmas: a disciplina militar e a hierarquia.” O julgamento de militares no Brasil, durante quase todo o período colonial, deu-se por meio de uma legislação – ordenanças, alvarás, decretos, portarias, ordens do dia, avisos, provisões – esparsa e fragmentada, verdadeira “legislação de retalhos”158, oriunda da metrópole portuguesa, destacando-se o Livro V das Ordenações Filipinas159, que regia sobre sistemas de vigilância, julgamento e punição. A primeira legislação propriamente militar criada no País foram os Artigos de Guerra do Conde de Lippe160, de 1763, que vigoraram até a implantação da República. Com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, o Alvará de 21 de abril criou o Conselho Superior Militar e de Justiça (inciso I), princípio do atual Superior Tribunal Militar; também criaram-se os conselhos de guerra. Outra criação do período imperial foi o Código Criminal do Império (1830), destinado à punição dos crimes comuns, que se constituiu, além de uma obra de caráter jurídico, em um autêntico documento sociológico e histórico, revelador de uma estrutura econômica colonial que permaneceu praticamente inalterada com a emancipação política (MACHADO NETO, 1977, p. 9).

157

O capítulo III do Estatuto dos Militares dispõe: “Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico. § 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antigüidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade. § 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo. § 3º A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados.” (BRASIL. Lei nº 6.880, de 09 de Dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015. 158 Expressão empregada pelo deputado Cândido Mota em exposição feita na Câmara dos Deputados em 25 de agosto de 1911. (BANDEIRA, Esmeraldino O. T. Direito, justiça e processo militar. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1919). 159 Criadas em 1603, as Ordenações Filipinas (precedidas pelas Ordenações Afonsinas (1480) e Ordenações Manuelinas (1514) constituíam-se em uma mistura de ideias políticas e concepções religiosas em que crime e pecado eram constantemente confundidos e cujas penas lembravam uma espécie de exorcismo, indo desde açoite, marca de fogo, galés, até a morte natural, morte natural para sempre, morte natural cruelmente e até mesmo a queima do acusado (vivo) até ser reduzido a pó, para que nunca mais de seu corpo pudesse haver memória, em casos de bigamia, incesto, adultério ou falsificação de moedas. (PIERANGELLI, op cit). 160 Oficial de artilharia do Exército alemão que reorganizou o Exército português. “Frederico Guilherme, Conde de Schaumburgo – Lippe era general alemão, que era meio mercenário e meio paladino, foi nomeado marechal do exército Português em 1762, encarregado do comando superior das tropas e diretor-geral de todas as armas.” (LOUREIRO NETO, José da Silva. Embriaguez Delituosa. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 39). Os Artigos passaram a ter força de lei pelo Alvará de 6 de abril de 1800.

115

O fato é que, durante o período do Império, a legislação penal militar continuava abundante e confusa, não esclarecendo com nitidez os diversos tipos penais, embora se tenha tentado criar uma estrutura jurídica que rompesse com a herança portuguesa, preocupação que manifestaram os debates ocorridos em torno da Constituição de 1824 e do Código Criminal de 1830. É curioso que, embora isso não estivesse explicitado no referido Alvará de 1808 e nem mesmo na Constituição do Império de 1824, os militares contavam com foro especial, para redimir tanto questões disciplinares quanto criminais. A partir de então, o debate em torno do conceito de crime militar mobilizaria vasta energia de juristas e políticos ao longo da história (LEMOS, 2012, p. 62). A Provisão 359, de 20 de outubro de 1834, por exemplo, declarou quais seriam os crimes puramente militares, diferenciando-os de crimes civis; os crimes meramente militares seriam considerados “todos os declarados nas leis militares, e que só podem ser commettidos pelos cidadãos alistados nos Corpos Militares do Exercito, ou Armada”161. Essa imprecisão jurídica e organizacional, Esmeraldino Bandeira, jurista do início do século XX, ironizou ao dizer que estava condicionada “ao alcance dos projéteis e à têmpera das baionetas’” (apud LOUREIRO NETO, 1999, p. 21). Preocupado em diferenciar-se dos princípios monárquicos, com os quais dizia ter rompido162, o novo regime empreendeu esforços para promover modificações nessa legislação penal, esparsa e anacrônica, visando “assegurar a ordem social de que o Estado republicano se constituía como garantidor” (LEMOS, 2012, p. 67). O período que compreendeu a passagem do século XIX para o século XX, marcado por transformações políticas e sociais, consolidou a implantação da ordem burguesa, fundamentada na ética do trabalho como mecanismo de controle social. Ainda no século XIX, a dinâmica do espaço urbano se tornava cada vez mais intensa e tudo o que se relacionava com o crime passou a interessar a sociedade, tornando-se um componente integrante do dia a dia do cidadão (CANCELLI, 2001).

161

Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1834. Parte Primeira. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, Rua da Guarda Velha, 1866. p. 272. 162 Mesmo em termos de legislação, o novo governo ainda se utilizava de leis do Império. O Decreto n. 1293, de 4 de março de 1893, por exemplo, utilizava-se de uma autorização conferida pelo Art. 4º da Lei n. 589, de 9 de setembro de 1850, ainda em vigor por meio do Art. 83 da Constituição Federal, abrindo ao Ministério da Guerra um crédito extraordinário, destinado a despesas resultantes “das occurrencias que se estão dando no Rio Grande do Sul e da necessidade urgente de lançar meios energicos para manter a ordem e defender a Republica”.

116

Segundo Carlos Fernando Mathias (2009, p. 239), a última década do século XIX e as primeiras décadas do XX foram as mais férteis em elaboração de códigos legislativos. Entre 1890 (ano referencial na organização judiciária no regime republicano, que se instalara), até a reforma constitucional de 1926, tem-se um período pródigo na edição de importantes diplomas no ordenamento jurídico brasileiro, como, por exemplo, o código penal (1890), o Regulamento Alvim (1890), o código civil (1916) e o Decreto Legislativo nº 938, de 29 de dezembro de 1902.

Segundo Paulo Alves (1997, p. 12), o Código Penal de 1890 e a Constituição constituíam-se em dispositivos de ordem, as “primeiras medidas republicanas que vieram definir o modo de governar e gerenciar o poder do novo Estado [...] marcaram nitidamente o modo de pensar e de fazer a política republicana”. Para o autor, a preocupação dos novos dirigentes com a questão da ordem era tamanha que a criação do Código Penal antecedeu à da própria Constituição, feita de forma apressada em menos de um ano, uma “cópia aperfeiçoada” do Código Criminal do Império (ibidem, p. 13). A Constituição de 1891 colocou a Justiça Militar na condição de justiça especial, ainda que mantida fora do Poder Judiciário, ao qual passou a integrar-se apenas com a Constituição de 1934.163 A Constituição Federal de 1891 estabeleceu que “Os militares de terra e mar terão fôro especial nos delictos militares.” (Art. 77)164. Segundo Lobão (2009, p. 48-49),

Finalmente o conceito de crime militar evoluiu ao que se tem hoje. A Constituição de 1934 foi a responsável por extremar de vez do conceito de crime militar o sujeito ativo do delito. O foro castrense passava a ser reservado não aos militares, mas aos crimes militares, removendo-se de vez a ideia de um foro privilegiado. A partir daquela Carta Política, o critério de definição de crime militar que seria adotado no ordenamento pátrio seria definitivamente o ratione legis, ou seja, é militar o crime que a lei assim o diz. 163

Até os dias de hoje a necessidade de uma justiça especializada para julgar crimes militares é polêmica, dividindo opiniões de pesquisadores, legisladores e sociedade leiga. Ver: SILVA, Sabrina Souza da. Todos são culpados? Uma etnografia na auditoria de Justiça Militar do Estado do Rio de Janeiro. 2013. 208 f. Tese (Doutorado em Antropologia) Programa de Pós Graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2013. 164 “§ 1º Este fôro compor-se-ha de um Supremo Tribunal Militar cujos membros serão vitalicios, e dos conselhos necessarios para a formação da culpa e julgamento dos crimes. § 2º A organização e attribuições do Supremo Tribunal Militar serão reguladas por lei.” A Constituição de 1891 havia identificado o crime militar por meio de critérios de ratione materiae, resultante da conjugação do ratione personae e do ratione materiae. Ratione materiae: “é necessário o concurso simultâneo de duas condições: ser o delinqüente militar e o crime militar por sua natureza ou por alguma razão especial” (LOBÃO, Célio. Direito Processual Penal Militar. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009. p. 48); Ratione personae: “aqueles cujo sujeito ativo é militar atendendo exclusivamente à qualidade de militar do agente” (ASSIS, Jorge César. Comentários ao código penal militar. Curitiba: Juruá, 2004, p. 35); Ratione legis: que a lei define assim.

117

A Constituição de 1946 referiu-se expressamente à tipificação dessa espécie de infração: “crimes militares definidos em lei” (Art. 108), definição mantida pelo Art. 124 da Constituição de 1988: “à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”165. Nessa “ânsia codificadora” dos primeiros anos da República, criou-se, então, o primeiro Código Penal Militar – o Código da Armada166 – em março de 1891, ampliado para o Exército em setembro de 1899167 e aplicado em seguida à Aeronáutica, sendo editado como Código Penal Militar apenas em 1944. Atualmente, e desde 1º de janeiro de 1970, vigora o Código Penal Militar, expedido pelo Decreto-lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969 (LOUREIRO NETO, 1999, p. 21). Em julho de 1893, organizou-se o Supremo Tribunal Militar (antigo Conselho Supremo Militar e de Justiça168 e atual Superior Tribunal Militar) e,

165 “A Justiça Militar da União está prevista na Constituição Federal em seus artigos 122 a 124. Segundo previsto na Carta Magna, são órgãos da Justiça Militar o Superior Tribunal Militar e os Tribunais e Juízes Militares instituídos por lei, sendo que o Superior Tribunal Militar é composto de quinze Ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo três dentre oficiaisgenerais da Marinha, quatro dentre oficiais generais do Exército, três dentre oficiais-generais da Aeronáutica e cinco dentre civis. Quanto aos militares das três Forças, todos são da ativa e do posto mais elevado da carreira. Os Ministros civis são escolhidos pelo Presidente da República dentre brasileiros maiores de trinta e cinco anos, sendo três dentre advogados de notório saber jurídico e conduta ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional; e dois por escolha paritária, dentre juízes auditores e membros do Ministério Público Militar. O art. 124 da Constituição Federal prevê que à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei, sendo que o seu parágrafo único prescreve que a lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar. Com efeito, a Lei nº 8.457, de 4 de setembro de 1992, trata da organização da Justiça Militar e regula o funcionamento dos seus serviços auxiliares. A aludida lei divide o território nacional em doze Circunscrições Judiciárias Militares, fixando-lhes a abrangência territorial. Distribuídas pelas Circunscrições Judiciárias Militares, existem dezenove Auditorias Militares que lhes correspondem e que funcionam como órgãos jurisdicionais de primeira instância, acrescidas da Auditoria de Correição, com sede na Capital Federal e com jurisdição em todo o território nacional. Na Auditoria de Correição, o Juiz-Auditor Corregedor exerce as suas funções, sendo que as Auditorias Militares são dotadas de Juízes-Auditores e Juízes Auditores Substitutos, que compõe os órgãos judicantes de primeiro grau: os Conselhos de Justiça.” (PEDRA, Justiça militar da união em evolução: a mais tradicional justiça brasileira e os desafios da atualidade. Revista do Ministério Público Militar. Ano 39, n. 24 (nov. 2014). Brasília: Procuradoria-Geral de Justiça Militar, p. 209-210). 166 BRASIL. Decreto n. 18, de 7 de março de 1891. Estabelece novo Codigo Penal para a Armada. Disponível em . Acesso em: 12 jul. 2015. 167 BRASIL. Lei n. 612, de 29 de setembro de 1899. Aprova e amplia ao Exército nacional o Codigo Penal para a Armada, que acompanhou o decreto n. 18, de 7 de março de 1891. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2015. 168 Nos meios militares, já se discutia a necessidade de uma reforma nesse conselho. No Relatório do Ministério da Guerra de 1892, lê-se: “É este Conselho uma das mais antigas instituições do nosso paiz e, como tal, necessita de uma reorganização, de acordo com os progressos da sciencia do direito e da sociedade actual, de modo que possa preencher seus fins, concorrendo para a sustentação dos grandes princípios que constituem a força armada a garantia da ordem, da tranquilidade e da honra nacional.” MOURA, Francisco Antonio de. [Relatório] maio 1892, apresentado ao Vice Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado dos Negócios da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 7. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014.

118

em 16 de julho de 1895, foi instituído o Regulamento Processual Criminal Militar (RPCM). Esses dispositivos eram ainda complementados com toda uma série de decretos, justificados pela necessidade de manutenção da ordem e defesa do novo regime. O RPCM possuía 318 artigos, distribuídos em três partes: Organização judiciária militar; Da instrução do processo criminal militar e sua forma; Da organização dos processos, dos recursos e execução de sentenças. No título I – Dos tribunais militares, sua composição e competência –, artigo 1º, criavam-se os seguintes órgãos: a) Conselhos de Investigação; b) Conselhos de Guerra; c) Supremo Tribunal Militar. O regulamento não se restringia a prever apenas casos de envolvimentos de militares propriamente em crimes, já que colocava na categoria de crimes considerados militares também os cometidos por paisanos “em tempo de guerra e nos lugares em que operassem forças do Exército ou da Armada” (Art. 27, § 2º). O Conselho de Investigação, que praticamente corresponde ao atual inquérito policial militar (IPM), seria composto de três oficiais de patente superior ou, na falta, de igual posto ao do denunciado, assim distribuídos: o mais antigo ou mais graduado na função de presidente; o imediato, de interrogante; e o mais moderno (de ingresso mais recente no Exército), de escrivão do sumário (Art. 4, Cap. II: Dos Conselhos de Investigação e sua composição). O Conselho de Guerra era composto de sete juízes, sendo presidente um oficial superior, e os demais oficiais com graduação superior ou igual à do réu, atuando um destes como interrogante, e o auditor togado serviria de relator169, salvo em casos em que o conselho devesse julgar oficiais generais170. Quanto ao Supremo Tribunal Militar, teria sua sede na Capital Federal, composto de 15 membros vitalícios, sendo oito do Exército, quatro da Armada e três juízes togados (Art. 19)171. Seus membros gozavam do tratamento de Ministros do Supremo Tribunal Militar (Art. 9, § 1º do Decreto n. 149).

169

Art. 13 do RPCM: “Os conselhos de guerra em geral serão compostos do mesmo numero de juizes determinado no artigo anterior com a distincção de que terão como presidente um official superior e os officiaes que os compuzerem serão de graduação immediatamente superior a do réo, ou pelo menos igual, um dos quaes com as funcções de interrogante, e o auditor togado, relator com voto.” 170 Art. 12 “Os conselhos de guerra que tiverem de julgar officiaes generaes, serão compostos de sete juizes, sondo um presidente, que terá graduação ou antiguidade maior que a do réo, o auditor togado, redator com voto, e cinco officiaes generaes, um dos quaes com funcções de interrogante, todos estes de graduação superior, igual, ou inferior á do réo, na falta absoluta do outros de superior ou igual graduação.” 171 Composição conhecida como Escabinado (ou Escabinato), composta por militares leigos e juízes togados.

119

Formada a culpa no CI172, o réu seria julgado, em primeira instância, no CG173 e novamente julgado, em segunda instância, no STM.174 Os militares indiciados nos crimes de 1900 foram julgados, na esfera militar, de acordo com o Regulamento (normas processuais) e com o Código da Armada (normas penais) – atualmente correspondentes, respectivamente, ao Código de Processo Penal Militar e Código Penal Militar, publicados em 1969. Feitas essas considerações, voltemos ao debate em torno dos pilares da ética militar: disciplina e hierarquia. Nos primeiros anos da República, o Ministério da Guerra, em relatório apresentado ao Presidente da República, assim se posicionava sobre a necessidade de disciplina em suas fileiras: “Attributo de tão incontestavel culminancia na organisação dos exercitos, a disciplina requer, para sua indefectível conservação, justo apreço por parte dos superiores e das autoridades.”175 À disciplina, o ministério associava a justiça: “A disciplina, pois, coexiste com a Justiça.” À página 22 do Relatório, o aprendizado da disciplina é associado à compreensão das coisas justas:

A disciplina não se fortalece, nem viceja em terreno sáfaro, convem beneficial-o. Ella firma-se no espirito e na vida, pela comprehensão do justo e do bem. O soldado inculto e bisonho aprende logo a ser obediente porque vê obedecer; deprehende dos factos que a justiça, irmã gemea da disciplina, espreita-o a cada passo; abraça-o e permeia-o se lhe rende culto, condul-o à barra do tribunal quando a despreza.176

Nesse discurso, dirigido especificamente ao soldado, a disciplina é posta como o principal atributo e estímulo que deve nortear a vida do soldado, e de sua observância dependerá se será exaltado ou castigado, vindo a cair nas garras dos tribunais. 172

Ao CI, competia formação de culpa aos militares indiciados em crimes militares; formação de culpa aos paisanos indiciados em crimes considerados militares; formação de culpa aos militares que cometessem crime comum em território inimigo ou aliado o em lugares em que o governo mandasse observar as leis para o estado de guerra e; proferir despacho de pronuncia ou despronuncia do indiciado (Art. 27, §§ 1º a 4º). 173 Sobre a competência do Conselho de Guerra, o capítulo VI do regulamento dispunha “julgar, em primeira instância, os militares ou paisanos pronunciados pelo CI, em crimes considerados militares (Art. 30, §§ 1º e 2º); julgar, em primeira instância, os militares pronunciados pelo CI em crimes comuns praticados em territorio inimigo ou de aliados, e nos lugares em que o governo mandasse observar as leis militares para o estado de guerra e; julgar, em primeira instância, os militares ou paisanos que, arguidos de crimes considerados militares, e que, não tendo sido pronunciados pelo CI, o despacho deste não seja confirmado pela autoridade que tiver convocado o mesmo conselho.” (§§ 3º e 4º). 174 O Art. 31, §§ 1º a 7º, dispunha sobre suas funções, para além das funções consultivas declaradas no Decreto Legislativo de 18 de julho de 1893. 175 MALLET, João Nepumoceno de Medeiros [Relatório] maio 1901, apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 21. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. 176 Ibidem, p. 22.

120

A necessidade de foro especial para dirimir crimes praticados por militares é justificada pelo Ministério da Guerra com o argumento de que só os que fazem parte desse universo, conhecem suas especificidades e vivem na pele suas dificuldades e agruras é que teriam as reais condições de julgar tal contexto. Ou seja, seriam ou únicos capazes de avaliar os danos causados por possíveis descumprimentos de deveres e ordens.

Àquelles que estão investidos de autoridade para manter a ordem e a disciplina no seio da classe, que apalpam e sentem todos os das as difficuldades e a utilidade em tornal-a effectiva e inabalavel, convém ser entregue o julgamento dos delictos e crimes. [...] A existencia de uma justiça e fôro reservado para os militares, não é, de resto, doutrina para provocar controversias; data dos tempos mais remotos. Privilegio embora, os exercitos regulares nunca alheiaram a jurisdição privativa, conservada intangivel em todas as reorganisações, mesmo nos paizes onde hajam estas sido radicaes. Juvenal, que viveu muitos anos antes de Justiniano, cita os tribunaes militares como um uso contemporaneo dos tempos de Camillo, isto é, no IV seculo da republica romana.177

Ao lado da familiaridade e do conhecimento que só podem possuir os que partilham a realidade do dia a dia das Forças Armadas em atuação, a antiguidade da existência e da prática de uma justiça diferenciada também é fortemente evocada. Nas palavras de Sérgio Adorno (apud FAUSTO, 2011, p. 14), “é surpreendente como permanecemos apegados ao passado quando dirigimos o foco de nossa atenção para a lei e a ordem”). Continuando em suas justificativas, o Relatório apela para elementos de ordem subjetiva. Citando o Direito Penal belga, compara a caserna a uma família, cuja coesão encontra-se fortemente vinculada ao espírito de coletividade, dependendo inteiramente da obediência ao superior.

Os commentarios sobre o direito penal militar belga, judiciosamente reflectem que,– “para organisar uma fracção de povo em massa compacta, marchando como um só homem à voz do chefe, não fazendo movimentos que não lhe sejam ordenados, obedecendo prontamente às ordens, por estranhas que pareçam, é preciso não sómente leis excepcionaes e penalidades severas, como um espirito de collectividade, uma especie de laço de família, mais forte que todas as coerções legaes. Ora, o exercicio do direito de punir aquelle à quem a lei o confiou, tem um caracter de algum modo patriarcal; este direito parece derivar mais da potencia paterna, que de uma convenção

177

Ibidem, p. 21.

121

social. No exercito, que é uma especie de familia, este direito é o mais poderoso dos laços que prendem o inferior ao superior.178

O superior, ao exercer o comando sobre o inferior, ao punir o inferior, não apenas exerce um poder coercitivo e desprovido de propósito, mas faz aquilo que um pai de família faria no intuito de, paternalmente, ou seja, amorosamente, corrigir e proteger seu subordinado, como o pai que castiga para evitar o mal maior. Peter Beattie (2009, p. 353) afirma que, com a Lei do Sorteio Militar, no período de 1916 a 1945, buscou-se converter os quartéis em “casas” e fazer do Exército uma “família”. Os argumentos do Ministério fazem ainda hoje eco nos textos de especialistas e estudiosos do assunto. Antonio Pereira Duarte, membro do Ministério Público Militar da União, por exemplo, enumera outros parâmetros, valores a serem cultivados, que representam em si a continuidade dos argumentos do Ministério, mais de 100 anos depois, e que podem ser encontrados em textos antigos.

O alicerce científico das disciplinas militares tem nos princípios reitores da hierarquia e disciplina sua fundamentação, muito embora outros parâmetros contribuam para a formulação da base jurídica militar, ressaltando-se, por exemplo, o pundonor militar, o decoro de classe, a ética militar, o espírito de camaradagem, a lealdade etc., que são valores a ser cultivados em toda ambiência militar, irradiando-se sobre os institutos jurídicos. Com efeito, a plasmar todos os ramos jurídicos da árvore militar, estão os princípios da hierarquia e da disciplina. (DUARTE, 2011, p. 95, grifo nosso).

Conhecimento especializado, antiguidade como sinônimo de convicção e certeza179, apelo a valores subjetivos de certa afetividade e cumplicidade foram e vêm sendo algumas das principais razões apontadas para a manutenção da Justiça Militar como justiça especializada, suscitando controvérsias toda vez que volta à pauta o debate em torno de sua possível revisão. Tratam-se, segundo os próprios militares, de fatos e valores “especialíssimos”, que exigem um conjunto de regras também especialíssimas. Para fatos especiais, valores especiais e normas especiais, “O fato é que os integrantes das instituições militares são os únicos de 178

Ibidem, p. 22. “[...] a Justiça Militar, ao longo dos mais de dois séculos de sua existência, não só acompanhou como também se adaptou às mudanças da sociedade brasileira, sem que, no entanto, deixasse de existir como Justiça Especializada. Essa manutenção da Justiça Castrense ao longo do tempo se deve pelos mesmos motivos que foram detectados pelos especialistas que se reuniram no início do corrente ano para debater o estudo realizado pelo grupo de trabalho do CNJ: não há como se colocar na mesma balança, para aferição sob os mesmos critérios, os ilícitos criminais de competência da justiça comum e os crimes militares da competência da Justiça Militar.” (PEDRA, op. cit., p. 222).

179

122

quem a lei exige o sacrifício da própria vida. A nenhum funcionário público, na verdade a nenhum cidadão, exceto aos militares, lei alguma impõe deveres tão especiais, deveres que podem implicar a obrigação de morrer e até de matar [...]” (BIERRENBACH in RIBEIRO, 2008. p 14). Intrínseco a esse raciocínio, o Estatuto dos Militares, lei 6.880/80, conceitua os deveres militares: “Art. 31. [...] vínculos racionais, bem como morais, que ligam o militar à Pátria e ao seu serviço, e compreendem, essencialmente: I - a dedicação e a fidelidade à Pátria, cuja honra, integridade e instituições devem ser defendidas mesmo com o sacrifício da própria vida [...]” . Recentemente, em fevereiro de 2014, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou debate com o propósito de definir o futuro da Justiça Militar no Brasil, com a participação de representantes do Judiciário, Ministério Público, Congresso Nacional e diversas entidades. “A realização do seminário foi decidida pelo grupo de trabalho do CNJ encarregado de propor a reorganização ou a extinção dos tribunais militares.”180 Segundo Ricardo Moglia Pedra (2014, p. 219)., analista judiciário da Justiça Militar da União, os especialistas que participaram desse encontro “reafirmaram a necessidade de manutenção de uma justiça especializada para julgar os crimes militares”. Para o autor,

Assim como o Direito do Trabalho possui como linha mestra a defesa dos direitos do empregado, o Direito Consumerista visa proteger o consumidor, a quem recai a presunção de hipossuficiência na relação de consumo e o Direito da Criança e do Adolescente é regido pelo princípio da prevalência dos direitos do menor, o Direito Penal Militar visa à defesa da hierarquia e da disciplina militar, princípios estes que garantem não só o equilíbrio no cotidiano da caserna, como também são mantenedores da ordem das instituições militares. (PEDRA, 2014, p. 223).

No próximo capítulo, analisaremos as partes (como são chamados os documentos de comunicação interna entre militares), depoimentos da inquirição sumária e o relatório final elaborado pelo presidente Antonio Gonçalves Pereira181, que compõe o Inquérito Policial Militar, fase inicial das investigações. Os acusados prestaram depoimentos entre os dias 23 e 25 de junho de 1900, onze dias após o ocorrido, intervalo de tempo em que o comandante do 180 “Oficina debaterá competência e estrutura da Justiça Militar. 27/12/2013 - 09h33 Gilson Luiz Euzébio Agência CNJ de Notícia. Disponível em . Acesso em: 22 ago. 2014. 181 A partir da folha 32 PC/1900/General Carneiro.

123

5º Distrito Militar, Francisco da Rocha Callado, mandou a Jangada os oficiais que dirigiram os interrogatórios. O inquérito policial no Brasil foi criado pela Lei n. 2033, de 20 de setembro de 1871. Suas origens são mais antigas, segundo Michel Foucault, “foi na Idade Média que o inquérito apareceu como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica [...] para saber quem fez o quê, em que condições e em que momento”. O século XIX registrou o surgimento do exame (examem), cujas “formas de análise [...] deram origem à Sociologia, Psicologia, Psicopatologia, Criminologia e Psicanálise” (FOUCAULT, 1996, p. 12, grifo no original). São ciências interessadas no comportamento humano e, mais do que isso, na possibilidade de controle ou direcionamento do comportamento, na explicação e cura de patologias e anomalias que dariam aos estudos da delinquência um caráter científico. O inquérito policial passou a ser o documento que registra a ação criminosa, e pode influenciar decisivamente o andamento das investigações. Do IPM, temos uma primeira feição dos acontecimentos. É já um afastamento do ocorrido e também uma certa interferência, à medida que há uma ordenação das ações, feita pelos agentes militares, que acabam, dessa forma, “descontextualizando os fatos” (MIRANDA; PITA, 2011, p. 63). Segundo Mariza Corrêa, sua influência pode se dar também à medida que já apontam para quem estará presente nas investigações, com direito a palavra, e o que deve ou não constar como prova nos autos (CORRÊA, 1983, p. 35). Para a autora, “a complexidade da situação inicial do caso já é reduzida no inquérito policial – primeiro serviço prestado à ordem jurídica, o de limpeza, expurgo do que não cabe na realidade ordenada onde ele vai penetrar” (ibidem, p. 305). Luís Antonio Francisco de Souza, analisando as mudanças na atuação da polícia, ocorridas com a implantação da República, identificou continuidades marcantes em relação a práticas anteriores, do Império, que remontam ao período colonial, com suas práticas inquisitoriais. Classificou as reformas ocorridas como “meramente nominais”, já que, “subjacentes à nova concepção de ordem social, os pressupostos de uma sociedade hierárquica permaneceram intactos”. Sobre o processo criminal, o autor afirma que em sua substância não mudou e repôs a tradição inquisitória presente na atuação do Santo Ofício e no Livro V das Ordenações Filipinas: “Na realidade, o inquérito policial não só fornece elementos para a denúncia como também prefigura a culpabilidade do indivíduo.” (SOUZA, 2007, p. 75).

124

A apuração dos crimes praticados pelos militares que atacaram a residência de imigrantes poloneses na colônia General Carneiro na noite de 10 para 11 de junho de 1900 começou na manhã do dia 11, na sede da própria Comissão de Estradas Estratégicas, na colônia Jangada, sob a direção do capitão Antônio Félix de Souza Amorim. As investigações tramitaram no interior da Justiça Militar por cerca de um ano e dois meses, até agosto de 1901, sendo posteriormente transferidas para o Poder Judiciário, jurisdição da Comarca de Palmas (PR).

3.2 COMO JULGAM OS MILITARES? O COMPORTAMENTO DA JUSTIÇA MILITAR

Partindo das considerações de Michel Foucault (1989, p. 183), de que o poder “nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado [...] funciona e se exerce em rede”, percorreremos os trâmites da Justiça Militar tendo em conta a diversidade de seus sujeitos que podem, em maior ou menor proporção, influenciar os resultados finais. Muito do conteúdo que vai parar nos papéis oficiais – os anais – são “verdades” construídas nos bastidores, no boca a boca travado em encontros, por vezes fortuitos, que ocorrem nos corredores ou rodas de amigos; enfim, em diálogos que não acontecem apenas nos tribunais e não se restringem aos sujeitos diretamente envolvidos, e nem sempre correspondem a suas vontades reais, de dizer ou fazer. Os oficiais dos conselhos militares e o Supremo Tribunal Militar, que, em tese, decidem pela aplicação das penas, compõem essas redes, juntamente com muitos outros sujeitos – diretamente envolvidos ou não, nos casos julgados – que podem bem exercer suas “oportunidades de poder” (ELIAS, 2000, p. 13) ou simplesmente sofrer a ação do poder (FOUCAULT, 1989, p. 183). A autonomia desses oficiais, que julgam desde paisanos e soldados rasos até seus próprios pares, pode esbarrar em toda sorte de tentativas de favorecimentos, interesses em elogios ou mesmo promoções, ou em desafetos que podem pesar de forma desfavorável para os réus. Segundo Peter Beattie (2009, p. 275), “o controle sobre o tribunal militar facilitava livrar-se ou pressionar inimigos dentro das Forças Armadas ao mesmo tempo em que se mantinha uma fachada de imparcialidade judicial”. O relevo por onde espraiam-se essas influências e desdobramentos pode restringir-se a campos mais locais e próximos, como no interior da própria casa ou comunidade (algumas testemunhas do IPM não foram localizadas em intimações posteriores e bem poderiam ter-se

125

esquivado), ou em espaços macro, como o estremecimento das relações entre os governos austríaco e brasileiro, cuja visibilidade levou o marechal chefe do Estado Maior João Nepumoceno de Medeiros Mallet a exigir urgência nas apurações, revelando que, mesmo não fazendo parte do Conselho de Guerra, poderia exercer forte influência em seu andamento e, quiçá, em suas decisões182. Como visto anteriormente, as instituições militares primam pela ordem em suas fileiras, por meio dos pilares da hierarquia e disciplina, princípios que assumem algo de “sagrado” quando se trata de justificar seu funcionamento. E não para por aí, uma vez que, segundo seus estatutos, essa ordem é que garante a sustentação da soberania do Estado. Ou seja, de acordo com seus membros, colocar em risco a ordem no interior dessas forças é o mesmo que colocar em risco a própria segurança da Nação e de seus cidadãos e interesses183. Daí o grande volume de casos julgados, desde os tempos do Império184 e na República adentro, de crimes tidos como tipicamente ou propriamente militares, ou seja, de caráter disciplinar, como deserção, insubordinação e desobediência. De acordo com Peter Beattie (2009, p. 282), “Três em cada quatro reuniões dos conselhos de guerra se davam por deserção, o que representava quase todos os delitos classificados como ‘crimes contra a honra e o dever militar’.” Para o autor, “Nenhum outro problema ilustra de forma mais clara os problemas de disciplina e mão de obra no Exército do que a deserção.” (Ibidem, p. 283). De uma amostra extraída dos relatórios do Ministério dos Negócios da Guerra, dos primeiros dez anos de implantação da República, verifica-se uma tipificação de 115 delitos – número que aumenta quando computados os dados de relatórios posteriores. Salvo crimes como homicídio, lesões corporais (contra a segurança pessoal e a vida) e mais dois ou três tipos que podem ser classificados como crimes comuns (contra a propriedade, por exemplo), que também podem ser praticados por civis, todos os demais são delitos, de fato, muito

182 Cf. oficio datado de 20 de outubro de 1900, dirigido ao senhor capitão Ignacio Gomes da Costa, assinado por Francisco da Rocha, e anexado ao processo, à fl 54 do PC/1900/General Carneiro, e Jornal Gazeta de Notícias, n. 38, op. cit. 183 Sobre o ethos militar, ver: CASTRO, Celso. Os militares e a República: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.; CASTRO, Celso. O espírito militar: um estudo de antropologia social na Academia Militar das Agulhas Negras. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. 184 “Na Guerra do Paraguai, com juntas locais provisórias, uma na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul e outra na Província de Mato Grosso, foram julgados 126 crimes, entre outros, de insubordinação, deserção em tempo de guerra, assassinato de superior (os primeiros três os mais frequentes), agressão a praça, roubo de dinheiro sob sua responsabilidade, assassinato de praça, tentativa de assassinato de praça, desrespeito a superior, espancamento de sodados, recusa de serviço, tentativa de assassinato a oficial, assassinato de civil, desobediência e automutilação. Os mais frequentes indicam preocupação com ataques a superiores.” (BEATTIE, op. cit., p. 97-98).

126

próprios das atividades militares, que atentam contra a honra e o dever militares, segurança da Nação, etc.185 Nessa amostra, dos crimes mais incidentes, os de deserção foram responsáveis por 69,12% do total de casos julgados pelos tribunais militares. Esses números revelam que, “Na medida em que o Exército permanecia uma instituição protopenal, ele dependia de homens que serviam contra a vontade.” (BEATTIE, 2009, p. 288).

Tabela 4 – Crimes militares de maior incidência nos anos de 1890 a 1899

1890

1891

1892

1893

1894

1895

1896

1897

1898

1899

ANO

Simples

291

443

311

262

230

265

753

430

596

810

Agravada

81

84

56

92

47

72

193

122

200

228

Em tempo de guerra Insubordinação

-

-

-

-

18

29

77

16

2

8

44

61

49

60

24

24

68

59

121

47

557

Ferimento

56

54

62

43

6

19

49

50

33

42

414

Fuga de presos (facilitar) Homicídio

18

33

45

11

17

20

27

34

18

21

244

17

-

-

18

9

22

32

25

16

18

157

Desobediência

6

7

31

6

11

2

3

-

1

2

69

Outros

118

110

130

69

105

178

119

107

77

100

1113

TOTAL

631

792

684

561

467

631

1321

843

1064

1276

8270

Deserção

DELITO

TOTAL

5716

Fonte: Relatórios do Ministério dos Negócios da Guerra apresentados ao Poder Executivo (elaboração do autor)

Quanto aos réus, o Relatório classifica-os em três grupos, conforme a força: Exército (oficiais e praças de pret), Armada e Justiça. Se tomarmos apenas os números do Exército, o 185 Embora trate-se de crimes que afrontam os princípios de hierarquia e disciplina, transgressões que levaram o nome propriamente de indisciplina aparecem pouco, sendo um caso em 1898 e um em 1899, e mais dois casos de infração da disciplina militar, um em 1895 e outro em 1897. Talvez o delito mais curioso dentre os registrados seja o de incorrigibilidade, com três casos em 1891.

127

envolvimento de praças de pret em delitos representam 94,57% dos casos julgados. De 1891 a 1898, os relatórios não discriminam os tipos de crimes conforme seus autores. A partir de 1899, os mapas são mais detalhados, apresentando os números de maneira individual, pelas patentes responsáveis pelos crimes. A partir daí, é possível auferir que o crime de insubordinação é o “mais democrático em termos de patente” (BEATTIE, 2009, p. 282). Entre as praças, lidera o crime de deserção. As sentenças mais aplicadas eram de prisão temporária e, em menor número, absolvições, indultos e perdões, expulsões, ou anulação dos processos por motivos vários. Nos períodos marcados por revoltas ou movimentos sociais e políticos, nos mapas estatísticos crescem os números de casos julgados por adesão ao movimento revoltoso, conspiração, revolta (cinco casos em 1894, vinte e sete em 1895 e quatro em 1898), conivência com os revoltosos e traição. Segundo Beattie, a deserção não esteve associada a nenhum atributo ou condição específica, como local, origem geográfica, raça ou alfabetização. O autor constatou que uma exceção foram casos com maior reincidência quando a praça estava instalada em regiões de fronteira (BEATTIE, 2009, p. 290). “O primeiro Batalhão de Fuzileiros organizado em 1842 conta até hoje 737 desertores, e desgraçadamente é isso comum à maior parte dos demais Corpos, principalmente na fronteira do Sul, onde a deserção toma sucessivo incremento.”186 O autor atribui as taxas elevadas da prática desse delito ao fato de que o Exército não foi capaz de criar condições que desestimulassem esse e outros crimes, ao menos não até a implantação da conscrição, em 1916187. As péssimas condições de vida enfrentadas foram também catalizadoras de crimes violentos, que mostram “a tenacidade dos ideais tradicionais de honra masculina que minavam a disciplina nas fileiras” (BEATTIE, 2009, p. 294). Somando-as às condições degradantes da atividade do soldado, o autor também pontua que “As perspectivas de se evitar captura eram plausíveis o suficiente para tornar a deserção 186

MELLO, Manuel Felizardo de Souza e. [Relatório] s/d 1851, apresentado à Assembleia Geral Legislativa, pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 23. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. 187 No Relatório do Ministério da Guerra de 1830, após considerações elogiosas ao soldado brasileiro, lê-se: “[...] a deserção fez progressos espantosos nestes últimos tempos, mas essa deserção prossegue menos do estrago da moral do Soldado, do que das repetidas faltas do cumprimento da palavra dada pelo governo.” MORAES José Manoel de. [Relatório] s/d 1830, apresentado à Assembleia Legislativa, pelo Ministro da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 6. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. No relatório de 1850, diz-se que o crime de deserção “subiu a um grau espantoso” MELLO, Manuel Felizardo de Souza e. [Relatório] s/d 1850, apresentado à Assembleia Geral Legislativa, pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 21. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014.

128

uma opção atraente. O Exército não podia se dar ao luxo de gastar tempo capturando e processando numerosos desertores e ainda esperar modernizar o serviço militar.” (BEATTIE, 2009, p. 293). Um dado revelador dessa realidade foi constatado no ano de 1896, em que mais de um terço dos julgamentos de deserção resultaram em anistia, o que demonstra as dificuldades em se lidar com a situação de forma eficiente (ibidem, p. 293). Peter Beattie apresenta um vasto rol de justificativas e reclamações apresentadas pelos soldados que desertaram, registradas em inquéritos que consultou. As razões mais comuns apontavam castigos, abusos físicos e toda sorte de humilhações e problemas financeiros, em específico dívidas com o governo. Caso extremo de pena foi o de José dos Santos, que abandonou a cidade de Cachoeira, no Rio Grande do Sul, acusado de desertar em tempo de guerra e condenado à morte pelo CG, decisão comutada pelo STM, para seis anos de prisão com trabalhos forçados (BEATTIE, 2009, p. 282-289). Os réus do processo de 1900 trazem também, em suas fés de ofício, registros de deserção. Alfredo foi preso duas vezes, por oito dias na primeira vez e vinte e cinco dias na segunda; Herculano ficou preso durante vinte e cinco dias por ter sido declarado ausente; João Antonio também cumpriu pena de sete dias a pão e água por ter-se ausentado da Colônia Chopim; a Sebastião, houve pena de dez dias por ausente. A possibilidade de perda de mão de obra preocupava os oficiais. João Antonio, antes de juntar-se ao contingente enviado à Colônia Chopim, ficou preso “preventivamente”. Segundo Peter Beattie, o século XX começou com iniciativas de redução do número de crimes e faltas disciplinares com vistas a atingir significativas melhorias na imagem pública do Exército. Essas mudanças, observadas, de fato, especialmente a partir de 1916, o autor atribui a transformações na composição e condições de serviço nas fileiras. A partir de 1920, observou-se a redução drástica de crimes de “deserção, insubordinação, assaltos e homicídios à medida que as fileiras estavam em fase de expansão e a hierarquia do Exército era fustigada pelas revoltas tenentistas” (BEATTIE, 2009, p. 393). Nos dias de hoje, os casos de deserção assumem ainda o topo das listas no Superior Tribunal Militar, ainda que em percentuais consideravelmente menores do que os registrados em fins do século XIX e início do XX. Delitos antes não tipificados, como “Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar [...]” (Art. 290 do atual Código Penal Militar), aparecem em segundo lugar, e traduzem as transformações sociais ocorridas nos últimos tempos. É o que revela um relatório publicado em 2014 pelo Centro de Estudos

129

Judiciários da Justiça Militar (CEJUM), com dados do sistema de acompanhamento de processos relativos ao ano de 2013 e ao 1º semestre de 2014188. Os crimes relativos ao artigo 290 aumentaram 23,48% em 2013 comparativamente ao ano anterior. Na década anterior (2002-2012), a taxa de crescimento médio da ocorrência desse delito foi de 18,45% ao ano. A tabela a seguir, extraída do relatório, destaca os crimes mais praticados e revela que crimes de deserção (27,36%), tráfico, posse ou uso de substância entorpecente ou substância de efeito similar (13,43%), estelionato (8,34%) e furto (6,40%), juntos, representaram 55,45% dos casos. Os autores do relatório destacam que, no período anteriormente estudado (20022012), esses mesmos crimes representaram 49,52% dos tipos penais denunciados189.

Tabela 5 – Total de crimes por ano de autuação na 1ª instância, segundo o tipo penal, 2013 a junho de 2014 Tipo penal

Ano de autuação na 1ª instância Total 2013

2014

Art187 (Deserção)

461

244

705

Art. 251 (Estelionato)

127

88

215

Art. 240 (Furto)

106

59

165

Art. 290 (Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância defeito similar) Outros/Missing

237

109

364

787

359

364

Total

1.718

859

2.577

Fonte: Sistema de Acompanhamento de Processos da Justiça Militar (2014)

Os estados com maior número de abertura de inquéritos foram o Rio de Janeiro, o Rio Grande do Sul, São Paulo e o Distrito Federal. O relatório aponta ainda para um aumento de 23,3% nos crimes de estelionato, em relação a 2012, e uma redução de 11,67% nos crimes de furto. Os responsáveis pelo relatório atentam para os números relativos aos casos de deserção:

Os números relativos à deserção devem ser analisados com extremo cuidado. O total de processos autuados vem apresentando queda nos últimos três anos: foram 576 casos em 2011; 524 em 2012; e 461 em 2013. Todavia, há diversos casos de deserção que, embora o crime tenha sido cometido, o processo não foi autuado em razão de o envolvido estar desaparecido. [...] Se 188

Pesquisa institucional sobre condutas criminosas de maior incidência para a Justiça Militar da União. Relatório complementar da 1ª fase (análise dos dados do Sistema de Acompanhamento de Processos da Justiça Militar – SAM, relativos ao ano de 2013 e ao 1º semestre de 2014). Centro de Estudos Judiciários da Justiça Militar. Brasília, Distrito Federal, 2014. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2105. 189 Ibidem, p. 14.

130

todos os crimes de deserção ocorridos no período considerado neste Relatório Complementar fossem autuados, o total de delitos subiria de 705 para 1.145, passando a representar 37,95% (em lugar de 27,36%) do total de crimes denunciados entre janeiro de 2013 e junho de 2014.190

O Ministro-presidente do Superior Tribunal Militar do ano de 2006 considerou a deserção um dos mais graves crimes para as instituições militares, por prejudicar a manutenção da disciplina, um de seus pilares básicos, e consequentemente a operacionalidade das Forças Armadas (HOERTEL, 2006, p. 17-18). O Exército – e, no interior dessa força, os soldados rasos – continua liderando o número de inquéritos. Após a exposição desses dados numéricos, tomemos alguns casos julgados nos anos iniciais da República, confrontando-os com o caso do qual estamos tratando (de 1900), levantando algumas aferições preliminares. Os quatro primeiros casos tratam de crimes de homicídio, em que foram réus aprendizes de artilheiros, paisanos e soldados. Outros dois constituem delitos disciplinares ou propriamente militares, sendo um caso de deserção e outro que envolve uma curiosa troca de acusações entre oficiais, que vão de indisciplina a abuso de autoridade. Ainda que não permitam generalizações, os casos analisados em seguida são ilustrativos e nos ajudam a propor perspectivas de análise do comportamento (tendências) dos conselhos militares. O primeiro crime, ocorrido em 1890, julgado em Conselho de Guerra, envolveu aprendizes de artilheiros do Rio de Janeiro que assassinaram um menor. O caso foi narrado no Relatório do Ministério dos Negócios da Guerra de 1891 da forma que segue:

A parte disciplinar do estabelecimento [Escola de Aprendizes Artilheiros] tem sido mantida em sua plenitude, tendo-se dado um único facto grave, o assassinato involuntario de um menor, no qual acharam-se envolvidos alguns aprendizes que, submettidos a conselho de guerra, foram condemnados dous e absolvidos os demais.191

O segundo ocorreu na Colônia Militar do Chopim, no Paraná, também registrado no referido Relatório; trata de uma situação inversa à primeira: são paisanos que matam um soldado. Durante o anno findo dous factos contra a disciplina vieram turbar a ordem e tranquillidade sempre observadas na colonia: o assassinato de um soldado do 190

Ibidem, p. 14-15. FROTA, Antonio Nicoláo Falcão da. [Relatório] jun. 1891, apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 20. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014.

191

131

destacamento, no dia 13 de Junho, por dous colonos, que já foram condenados em conselho de guerra, e o assalto, no dia 31 de Dezembro, por tres soldados embriagados, da casa de um colono allemão, com o fim de inutilisarem os instrumentos de musica com que aquelle e outros colonos tocavam.192

No primeiro caso, o “homicídio involuntário” cometido pelos aprendizes de artilheiros resultou em duas praças condenadas. No segundo, os dois colonos foram também condenados. Os dois crimes foram tratados pelo Ministério como delitos meramente disciplinares, que perturbaram a ordem e a tranquilidade do andamento de suas atividades. Os documentos oficiais produzidos pelas Forças Armadas, via de regra, esforçam-se por apresentar a realidade sempre como tranquila e dentro da normalidade (“mantida em sua plenitude” é a expressão empregada no primeiro caso). Afirmar o contrário seria como escancarar os problemas dessas instituições, admitir fraquezas e fragilizar seus próprios membros, especialmente os que assumem posições de comando. Evidentemente Cabe a ressalva de que estamos tratando de documentos de difusão pública, relatórios que ficavam à disposição de leitores diversos, o que certamente condicionava o seu conteúdo. Há ainda uma referência a uma invasão à casa de imigrantes alemães, promovida por praças embriagadas, em um momento festivo. Teria sido mais um ato de abuso e violação de direitos praticados pelos militares, que se soma aos já relatados no capítulo anterior. O relatório não dá maiores detalhes desse assalto, especialmente em relação a uma possível punição que tenham recebido as praças, o que nos interessaria muito. Para Karl Monsma (2008, p. 37). “Certamente, também, muitos conflitos entre imigrantes e a polícia eram provocados pela violência e arbitrariedades dos praças e dos delegados.” Vejamos agora dois outros casos de homicídio, que combinam agravantes de natureza tipicamente militar, ocorridos por ocasião do conflito conhecido como Guerra do Contestado, e relatados pelo militar Luciano Melo Roberto Ribeiro (2008), no livro 200 anos de Justiça Militar no Brasil (1808-2008). O primeiro crime relatado pelo autor refere-se ao caso do Anspeçada Manoel Miranda de Araújo, que, “após travar um combate corporal com um sargento que comandava seu destacamento, desferiu três tiros contra o mesmo, que veio a falecer no dia seguinte”. Sobre o julgamento, diz o autor:

192

Ibidem, p. 49.

132

Um Conselho de Guerra foi nomeado pelo comandante da coluna oeste para julgar o crime. Mesmo tendo alegado legítima defesa, o referido anspeçada foi condenado a 25 anos de prisão, em vista das circunstâncias presentes no caso, tais como a desobediência a serviço que havia sido designado, superioridade em armas em relação ao ofendido e ainda a traição. (RIBEIRO, 2008, p. 99).

Verdade ou não que o combate foi travado pelo soldado, o fato é que, além do homicídio, o crime foi enquadrado em três circunstâncias agravantes: superioridade em armas, desobediência e traição – as duas últimas, tipicamente militares. Se as condições de higiene, alimentação e hospedagem já eram precárias nos quartéis, em tempos de guerra ficavam ainda piores, especialmente para os soldados. Havia ainda o agravante de que tendiam a aumentar os castigos e abusos de autoridade por parte dos oficiais (BEATTIE, 2009, p. 249-251). Na Guerra do Paraguai, por exemplo, como visto anteriormente, foram mais numerosos os delitos referentes a revoltas contra superiores (ibidem, p. 98). Outro crime narrado por Luciano Ribeiro foi o assassinato do soldado Henrique José Ribeiro, cometido pelo soldado Manoel Joaquim de Sant’Ana. Segundo o autor,

Este ocorreu por um esquecimento inadvertido de uma trava de um fuzil, em um disparo inadvertido durante uma brincadeira entre companheiros. O crime foi enquadrado no art. 151 do Código Penal Militar, por negligência, imprudência ou inobservância de qualquer prescrição regulamentar. O soldado Manoel foi condenado a um ano e um mês de prisão, pois a pena variava de dois meses a dois anos de prisão. (RIBEIRO, 2008, p. 99).

O relatório e a obra citados nos trazem informações transmitidas por terceiros. Embora nos relatem os crimes e as sentenças de forma breve e lacônica, o valor dessas fontes consiste no fato de que trazem consigo uma espécie de parecer ou interpretação feitas em segunda mão por quadros militares. No caso do Relatório, trata-se de uma espécie de prestação de contas apresentada ao Presidente da República. Ainda que seja exigência de preceito constitucional, assume um tom promocional e imbuído de esforços para mostrar-se diante do Poder Executivo, poder máximo que comanda o País, como o Ministério realiza seus trabalhos com a competência esperada. Embora forneça dados numéricos de julgamentos, como tipos de crimes, réus e sentenças, não é um registro preciso e detalhado das atividades do Supremo Tribunal Militar, e os crimes relatados têm a pretensão de comunicar mais as situações de alterações na ordem

133

do que a condução das investigações. Note-se que as perturbações da ordem estão associadas às praças. Os crimes praticados pelo Pessoal da Estratégica em General Carneiro, que teve um oficial na condição de réu principal, a julgar pela repercussão que tiveram, nem sequer foram mencionados nos relatórios dos anos seguintes, embora o próprio Marechal Mallet, à frente do ministério de 1896 a 1907 e presidente do Supremo Tribunal Militar de 1896 a 1907, tenha interferido no andamento das investigações. Talvez a omissão do caso no Relatório se deva ao fato de que esse crime, justamente, mancharia a imagem do Ministério, já que teria contribuído para estremecer as relações entre Brasil e Áustria. A obra 200 anos..., de autoria de um oficial, é ainda mais propagandística e apologética. Sobre a Guerra do Contestado, o autor afirma que as fotografias tiradas mostram um exército moderno e organizado193; delitos foram cometidos, e “novamente a Justiça Militar precisava estar a postos”. Quanto às atividades da Justiça Militar, o autor admite que durante o conflito “certas contravenções foram cometidas sem que fossem julgadas como crimes” (RIBEIRO, 2008, p. 99) e só apresenta relatos de crimes em que os autores foram soldados:

[...] durante esse conflito dois soldados invadiram uma casa de três mulheres, mãe e duas filhas, na madrugada de 16 de outubro de 1914. Sob a alegação de terem ordens de interrogá-las, no caminho para a guarnição militar, para onde estavam sendo conduzidas, foram agredidas. Uma das mulheres foi seviciada. Apesar do comandante ter reconhecido o crime, os mesmos foram punidos com apenas 15 dias de prisão. (RIBEIRO, 2008, p. 99).

Nesse caso, o autor demonstra os abusos cometidos pelas praças; invadiram a casa “sob a alegação de terem ordens de interrogá-las”, o que pode significar que não haviam, de fato, recebido tais ordens. O autor conclui dizendo que o comandante do destacamento reconheceu o crime e que, apesar disso, foram condenados a apenas 15 dias de reclusão; ou seja, pena frouxa. Os exemplos analisados são situações diversas, é claro, mas que revelam a parcialidade das sentenças. Os desfechos que tiveram devem ser pensados em termos não só de seus autores mas também de quem foram as vítimas. Temos aqui três categorias de autores

193 O historiador Rogério Rosa Rodrigues demonstrou em sua tese uma realidade bem diferenciada, de um cotidiano marcado por invasões e queimas de domicílios e toda sorte de abusos e crimes cometidos contra a população da região contestada, tanto por soldados como por oficiais. (RODRIGUES, 2008, op cit).

134

e de vítimas: civis, militares de alta patente e soldados rasos. As sentenças são indicativas de uma tendência a certa complacência e parcimônia quando se trata do julgamento de oficiais (caso do alferes Torres, por exemplo) e maior rigor quando os réus são praças ou paisanos. Hostilizar civis pobres ou provocar desordens públicas eram ofensas encaradas pelos oficiais como “menores”, ao lado de outras como embriaguez, uniforme desaprumado, falta à contagem, não reconhecer ou saudar um superior (BEATTIE, 2009, p. 276)194. Talvez o caso que mais demonstre essa parcialidade seja o do soldado condenado a 25 anos pela morte de seu superior. Os outros dois casos, um de deserção e outro de indisciplina (insubordinação e abuso de autoridade), nos ajudam a pensar o debate sobre essas questões no interior da Justiça Militar, os argumentos construídos, a interpretação e o uso pessoal e político dos textos normativos. “Esses casos permitem uma análise da justiça militar na prática e iluminam aspectos de outra forma obscuros da vida cotidiana nos quartéis.” (BEATTIE, 2009, p. 282). O primeiro caso, de deserção195, é ilustrativo por se tratar do julgamento, por um Conselho de Guerra, do capitão ajudante do 60º Batalhão de Caçadores (sede em Goiás), Hilário Francisco Dias. O capitão afastou-se em 2 de maio de 1918 do quartel da 6ª Região Militar (São Paulo), com destino a Goiás, e não se apresentou no prazo estipulado – edital publicado no jornal O Estado de São Paulo –, 2 de julho daquele mesmo ano. No CI, depuseram sete testemunhas, todas militares. O capitão apresentou defesa na qual alegou que não conseguiu chegar ao destino, tendo permanecido imóvel na Estação Roncador, em função de dificuldades de deslocamento. Ali terminou por adoecer e foi tratado de cistite196 aguda, permanecendo em Araguari (MG), razão que o impediu de retornar em tempo. As testemunhas afirmaram saber da deserção porque viram o nome do capitão no boletim militar, dado por ausente, e no livro que assinou antes de partir para Goiás. Uma delas 194

Essas contravenções de ordem disciplinar incrivelmente guardam semelhanças com o que acontece no interior dos quartéis nos dias atuais. Em entrevista concedida à Publica Agência de reportagem e jornalismo investigativo, o ex-soldado Darlan Menezes Abrantes, da Polícia Militar do Ceará, denunciou práticas arcaicas de treinamento e manutenção da disciplina quando ainda fazia parte das fileiras: “Você pode ser preso se não tiver com um gorro ou chapéu na cabeça. Essas coisas, que só atrapalham a vida dos policiais. Às vezes, eu pegava um ônibus superlotado, chegava com a farda amassada e ficava sexta, sábado e domingo preso.” “Treinados pra rinha de rua”. Publica Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo, Porto Alegre, 20 jul. 2015. Disponível em: . Acesso em 27 jul. 2015. 195 Tipo: Apelação. Réu: Hilário Francisco Dias. Nº do Processo: 763. Ano: 1918, 239 p. Disponível em: . Acesso em: 12 abr. 2015. 196 Cistite: "Inflamação da bexiga" (CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Diccionario de Medicina Popular e das Sciencias Accessarias para Uso das Famílias. v. 1. 6. ed. Paris: A. Roger & F. Chernoviz, 1890. p. 780).

135

afirmou que comprou a passagem. À maior parte das perguntas, responderam não saber nada do caso. O CI pronunciou o capitão por unanimidade de votos. No Conselho de Guerra, seis dessas testemunhas voltaram a depor197 e o réu foi representado pelo advogado José de Carvalho Martins. Na defesa, de 15 páginas datilografadas e com citações em vermelho, o advogado questiona a decisão do CI, apresenta as dificuldades de transporte e anexa um atestado médico de profissional gabaritado198. Inicia a defesa dissertando sobre o crime de deserção, na busca de uma adequada definição. Apresenta a deserção como um dos crimes “que mais de perto, attingem a honra e o dever de um militar” (p. 214). Cita então Esmeraldino Bandeira, que, “em seu excelente livro, Capitulo X, p. 354, diz, comentando o Código Penal da Armada”:199

Deserção vem de desertio que por sua vez deriva de deserere – abandonar, desamparar. [...] Em seu conceito doutrinario e em sua configuração legal, a deserção ora se apresenta como um delicto instantaneo, ora como um delicto continuado. [...] Sob o primeiro aspecto a deserção é a falta de comparecimento do militar ao lugar e ao tempo em que ahi se devia achar por disposição de lei ou por determinação de auctoridade competente.

O advogado citou a fé de ofício do acusado200, que apresenta um militar de carreira, que lutou em Canudos, no Rio Grande do Sul e na região Contestada. Questiona as decisões do CI com base no Código da Armada, alegando que em seu Art. 117 prevê nove modalidades de deserção (8 partes e um parágrafo único) e que o CI não informou com exatidão em qual modalidade estaria enquadrando o indiciado. Cita também o Art. 171 do RPCM201, segundo o qual o indiciado foi convocado a apresentar-se no quartel da 6ª Região, e apresentou-se, mas 197 Octacílio de Faria Abreu, 1º tenente intendente, natural de Santa Catarina, 42 anos, casado; Aarão Jefferson, 2º tenente, natural de São Paulo, 31 anos, casado; Lauro de Assis Brasil, 1º sargento amanuense, 27 anos, natural de São Paulo; José de Arruda Wanderley, 1º sargento amanuense, natural de Pernambuco, 33 anos; Sebastião Moreira da Silva, 2º sargento do 43º Batalhão de Caçadores, natural de São Paulo, 30 anos. 198 Atestado médico fornecido pelo doutor Odilon Amorim. Hilário foi conduzido ao quartel da 6ª Região pelo major Fleury Amorim, o mesmo que esteve na Comissão Estratégica e, em 1919, era comandante do 60º de Caçadores. 199 O advogado provavelmente reporte-se à seguinte obra, também citada por outros autores: BANDEIRA, Esmeraldino. Curso de Direito Penal Militar. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1915. 200 Anexa ao processo, logo após os depoimentos das testemunhas, páginas 68 a 115. São 50 páginas que informam a vida do acusado durante o período de 1887 a 1918. 201 O RPCM prescrevia, nos artigos 163 a 173, sobre os crimes de deserção. O Art. 171 estabelecia: “Logo que qualquer dos Officiaes de patente do Exercito ou da Armada (não comprehendidos os reformados desempregados) não comparecer, quando for chamado á serviço, será declarado ausente na ordem do dia da autoridade competente, e como tal mencionado nos mappas e relações de mostra, o chamado por editaes que se inserirão nas folhas publicas, onde as houver.” “A deserção exigia que os comandantes dessem queixa e anunciassem publicamente o crime para aumentar as chances de capturar o fugitivo. Logo, não se podia lidar com a deserção por meio de comitês disciplinares, como no caso de outros crimes.” (BEATTIE, op. cit.,, p. 282283).

136

não foi declarado ausente. Também não houve, segundo o advogado, publicação de edital em folha pública. O CG absolveu o capitão Hilário em setembro de 1918, por unanimidade de votos, em uma sentença de cinco páginas, onde considerou que o réu “não é desertor e nem devia ter sido pronunciado pelo Conselho de Investigação” (p. 234). As peças do processo, sua organização e boa caligrafia demostram o cuidado que se tem quando o réu é um militar de carreira, alto oficial, prestes a ser promovido ao posto de Major, com vasta fé de ofício, elogiado inúmeras vezes e com uma bem elaborada defesa de 15 folhas. O tratamento demonstrado logo no início da defesa é revelador dessas práticas. O advogado, dirigindo-se aos senhores juízes, argumenta que, após quase trinta e um anos de serviços ininterruptos prestados à causa da Pátria, “Quis o destino amargo” que seu cliente fosse indigitado como autor de um crime que atinge, “tão de perto, a honra e o dever de um militar”. Quando se tratava de militares que não eram oficiais, Peter Beattie afirma:

Os praças acusados raramente constituíam defesa; e muitos não respondiam quando perguntados se tinham uma defesa. Por boas razões, muitos podem ter achado mais prudente aquiescer e esperar por clemência, uma vez que os procedimentos atribuíam aos oficiais grande influência sobre o desfecho dos julgamentos. (BEATTIE, 2009, p. 275).

É possível que os soldados processados pelos crimes em General Carneiro tenham todos apresentado defesas escritas no CG porque o processo envolvia um oficial. Desde a formação do inquérito, vai-se avançando em uma escala ascendente, também hierárquica, em que, a cada instância, encontra-se alguém investido de autoridade interpretativa e em mais condições de dizer a verdade, e também mais gabaritado para decidir. A impressão que se tem é de que, ao avançar nessa escala, imperfeições e injustiças cometidas em fases anteriores possam ser corrigidas, ainda que os julgadores se baseiem, por vezes, em transcrições das informações geradas na fase inicial. Trata-se de hierarquia de saberes em que os juízes do Supremo teriam, em tese, mais conhecimentos do que os que compõem os conselhos, e estes, por sua vez, mais que os oficiais que procederam ao inquérito – formas de construção de verdades previstas e explícitas nos códigos de leis202.

202

Parágrafo adaptado de SILVA (2013) op cit. A autora analisa essa hierarquia nos tribunais da Justiça Comum.

137

Nas palavras de Michel Misse (2008, p. 28)., “Da acusação à denúncia, e da denúncia ao tribunal, vários filtros se interpõem. Eles são operados por um extraordinário número de pessoas, em instâncias inter-pessoais e em instâncias oficialmente formais, racionais-legais.” Os conselhos de guerra tinham propensão a condenar, ao contrário do que ocorria nas cortes civis brasileiras: após a decisão do conselho, pelo voto da maioria, todas as decisões eram enviadas ao CSMJ e, após 1893, para o STM no Rio de Janeiro para revisão (BEATTIE, 2009, p. 275). No caso ora referido, o CI foi considerado injusto em suas decisões. Peter Beattie (2009, p. 237), apresenta o exemplo emblemático de José Peixoto, filho legítimo do presidente Floriano Peixoto, que foi condenado no CG e absolvido no STM e reforça o poder que concentrava o Supremo: “Cabia ao CSJM e ao STM a sentença final sobre todos os casos; eles podiam alterar ou aprovar a sentença de um conselho de guerra baseando-se apenas em transcrições.” (Ibidem p. 276). Sobre o caso do capitão Hilário, é ilustrativo o enunciado do site do Superior Tribunal Militar:

Processo de relevância onde demonstra a atuação incólume deste Tribunal Castrense. Neste processo o réu apesar de ter seus assentamentos uma conduta ilibada e ter participado de várias batalhas consagrando sua patente em alto grau, foi julgado como desertor em primeira instância, devido à falta de comunicação e às longas distâncias entre cidades, mas dentro de sua prerrogativas, o STM em justiça reverteu a sentença de primeiro grau, limpando assim o currículo do réu. (grifos nossos).

O enunciado revela a presença de uma visão verticalizada segundo a qual os que estão em posições mais elevadas ponderam mais, agem de forma incólume, fazem mais justiça. São discursos e práticas que nos fazem lembrar a procura por justiça na Europa do período medieval, em que o rei era considerado mais justo e inequívoco do que os senhores feudais, considerados perversos. O segundo caso de delito disciplinar apresenta uma mistura interessante de argumentos: o Major Francisco de Mello apresentou queixa-crime contra o General Alvaro Guilherme Mariante203. O General, durante um combate à Coluna Prestes, havia repreendido severamente o queixoso, substituindo-o logo em seguida no comando de seu batalhão, sob

203 Tipo: Representação n. do processo: 1 Ano: 1927. Indiciados: Francisco de Mello e Álvaro Guilherme Mariante. Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2015. (optamos por manter a referência como está no site).

138

pretexto de que ele deixara de executar ordens recebidas. O Major queixou-se de abuso de autoridade e, ao mesmo tempo, acusou seus superiores de não agirem segundo as orientações dos textos normativos; portanto, deveriam ficar sujeitos a pronúncia por indisciplina204. As ordens que o Major Francisco de Mello recebeu do General Mariante consistiam em partir com o batalhão, de onde se encontrava, às 5h30min, e apoderar-se de um local denominado Correia. O Major só se pôs em movimento às 8 horas, e localizou-se numa região situada a alguns quilômetros atrás da ordenada. Pela primeira falta, foi imediatamente repreendido, ao que alegou que não deixou de cumprir a ordem e que o fato de ter-se demorado não constitui crime, e sim falta disciplinar, segundo o Art. 421, n. 2, do Regulamento Interno de Serviços Gerais do Exército (RISG)205. Pela segunda falta, foi substituído em seu posto pelo Major Pedro Angelo, por ordem de Mariante. A ordem de Mariante foi comunicada à autoridade superior e por ela aprovada. O queixoso, “para melhor conseguir seu desideratum, diz que faltava autoridade ao Coronel Mariante para puni-lo pelos fatos, porque estes, a serem verdadeiros, constituem crime militar” (p. 5, grifo nosso). Pela primeira acusação, entendeu o queixoso que deveria ser submetido a inquérito regular. Como isso não ocorreu, alegou que o general Mariante é que teria cometido crime, segundo o artigo 170, letra A do Código Penal206 e o Art. 94207, que trata de desobediência. A hipótese do queixoso é de que não praticou o crime do Art. 129208, já que não deixou de cumprir a ordem recebida, apenas “cumpriu-a mal”, ato que seria enquadrado no Art. 421, n. 7 do RISG. Alegou, ainda, que o responsável pela situação que enfrentou não foi Mariante e sim seu superior, “a quem ele [Mariante] entregou a solução do caso”.

204

As informações que seguem foram extraídas da queixa do major Francisco de Mello, constantes às páginas de 5 a 9 do processo. 205 Criado em 1920. Não localizado. 206 “Art. 170. Todo indivíduo ao serviço da marinha de guerra que, por odio, contemplação, affeição ou por interesse seu ou de terceiro: a) Deixar de cumprir as leis, regulamentos, ordens e instrucções; dissimular ou tolerar os defeitos e crimes de seus subalternos e deixar de tornar effectiva a responsabilidade em que incorrerem; [...]” 207 “Art. 94. Todo indivíduo ao serviço da marinha de guerra que recusar obedecer ás ordens ou signaes de seus superiores com relação ao serviço: Pena de prisão com trabalho por um a dous annos. Paragrapho unico. Si a insubordinação for commettida em presença do inimigo ou em aguas submettidas a bloqueio, ou mililarmente occupadas: Pena de morte, no gráo maximo; do prisão com trabalho por vinte annos, no médio; e por dez, no mínimo.” 208 “Art. 129. Todo commandante de força ou navio, que, propositalmente, deixar de cumprir as ordens recebidas: Pena de prisão com trabalho por seis mezes a dous annos.”

139

Segundo o general Mariante209, em 1925, ele comandava o destacamento que leva seu nome (destacamento “Mariante”) em luta contra os rebeldes da Coluna Prestes, no Paraná. O destacamento foi responsável pela “queda das posições” dos rebeldes da Coluna em Cantanduvas (PR). O 2º Batalhão de Caçadores, responsável pelas operações, era comandado por Francisco de Mello, que demonstrava “tibieza”. O general Mariante chamou energicamente a atenção de Francisco e, em seguida, informou o general Coutinho, seu superior (à época, Mariante era coronel), que propôs substituir Francisco. Mariante alegou que, mesmo sob a ordem do general Coutinho, sugeriu esperar e não substituir o major Francisco, mostrando-se benevolente. Quando recebeu a ordem de atacar Correia, não saiu no horário ordenado, mas só às 8 horas. Foi repreendido (conforme Boletim número 173, de 26 de março de 1925) em público, castigo que Mariante definiu como suave, mas que deveria, a um oficial superior, produzir efeito, para que não errasse mais. Não atacou, como era a ordem, mas ficou na defensiva. Foi então substituído pelo Major Pedro Angelo210. Mariante, ante o dilema de ver fracassadas as operações projetadas ou afastar Mello, optou pela segunda possibilidade, dizendo que: “Poderia arranjar qualquer pretexto aleatório, chamar por exemplo ao meu P.C., o Major Mello, para outro ficar desempenhando seu papel. Mas, esses processos são os que mais tem arrastado o Exercito a triste situação a que ficou reduzido.” (p. 19) O General Coutinho aprovou e enviou ao “Excelentíssimo” General Rondon; este sustentou e pediu ao Ministro da Guerra a retirada de Mello das operações e foi satisfeito, e Mariante diz que os registros escritos devem estar no arquivo do extinto destacamento. Os argumentos do queixoso, Major Francisco, em resumo, foram de que não descumpriu ordens e de que seu superior não agiu conforme os regulamentos nas medidas que tomou em relação ao caso, portanto, ele é que deveria ser punido, por não respeitar os trâmites internos da hierarquia. Ao conhecer esses trâmites, e a morosidade que poderiam representar, os oficiais poderiam se utilizar disso na busca de atenderem a interesses pessoais. Esses dois processos revelam deficiências, práticas/burocráticas do exercício da Justiça Militar. As prescrições dos códigos tornavam a apuração de delitos um percurso dispendioso e oneroso. Delitos por vezes mais “simples” contribuíam para avolumar as mesas 209

Páginas 15 e 16. “Ao Ministro da Guerra. O General Mariante, em obediência ao despacho do Procurador, n. 96, de 13.12.1926”. 210 Os oficiais alegaram que Mello, atrasando-se, contribuiria para que a Coluna mudasse a rota, ou seja, o “corpo mole” visava favorecer o inimigo e poderia ter colocado tudo a perder na campanha em Catanduvas.

140

de quartéis e tribunais, demonstrando pouca eficácia em termos de solução para problemas pontuais das forças, especialmente no campo disciplinar. Várias contravenções não eram consideradas conforme o previsto nas leis, por razão de que interrompiam ou atrasavam o andamento da vida castrense. Segundo Beattie (2009, p. 281), “Os comandantes tendiam a instaurar inquéritos apenas quando o crime era sério, impossível de ignorar ou quando o comandante estava pessoalmente motivado a enfrentar uma longa ação legal. Em muitos casos, eles preferiam punições imediatas.” O autor reportase à “escassez de oficiais para conduzir tediosos inquéritos”. (Ibidem, p. 290). O RPCM previa que os oficiais nomeados para os conselhos de guerra deveriam participar de todas as sessões do conselho. Em 1900, o comandante do 4º Distrito Militar encaminhou ofício ao Supremo Tribunal, propondo que, a exemplo do que ocorria no Supremo, pudessem os conselhos de guerra reunir-se, para deliberar, com a maioria dos juízes e não com a totalidades desses, conforme previa o regulamento. A proposta do Comandante embasava-se no grande volume de processos e nas dificuldades de se reunir todo o Conselho, já que, na falta de um de seus membros, a sessão era suspensa211. No processo que trata dos crimes de 1900 são muitos os casos de substituição de juízes, especialmente por terem “dado parte de doente”; e por vezes as sessões foram suspensas. Não apresentar justificativa constituía crime militar, e doença era o único motivo tolerado. Na apelação em que foi réu Hilário Franco Dias, encontramos telegramas de conselheiros justificando faltas por problemas de itinerários de trens. Especialmente em tempos de guerra, havia a tendência a resolver as coisas de forma mais rápida, recorrendo-se à lei dos quartéis, com castigos, açoitamentos ilegais (BEATTIE, 2009, p. 280-285). Tratava-se do uso da “repressão rápida, o que para as turbas constitui o sinal da legitimidade do poder” (TAUNAY, 1948, p. 176 apud BEATTIE, 2009, p. 97). As artimanhas empregadas para dar fluidez às atividades rotineiras, sem esbarrar na lei, que por vezes poderia representar atraso e demora, são expressas na frase do general Mariante: “Poderia arranjar qualquer pretexto aleatório, chamar por exemplo [...] o major Mello, para outro ficar desempenhando seu papel.” A fala do general, no contexto empregado, assume que era comum a dissimulação com propósitos pessoais ou institucionais.

211 Cf. Aviso número 1005, de 14 de maio, e demais documentos anexados. MALLET, João Nepumoceno de Medeiros [Relatório] maio 1900, apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 43-44. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014.

141

3.3 QUEM ERAM OS OFICIAIS QUE COMPUNHAM OS CONSELHOS MILITARES

Os artigos 12 e 13 do RPCM estabeleciam a quantidade de juízes para compor os conselhos de guerra, nomeados212 cada vez que um conselho fosse instituído: seriam sete juízes, dentre eles um togado, ou seja, de carreira jurídica. Os demais eram oficiais de patente superior ou igual ao do condenado, mas mais antigos que este. Desde seus primórdios, a Justiça Militar estruturou-se na forma de escabinato, ou seja, com conselhos mistos de civis, com carreiras na área do Direito, e militares, considerados, em termos do Direito, leigos, mas que trazem a experiência da “Justiça do Comandante” (FAGUNDES, 2002) para o julgamento de crimes militares. Pelas alegações apontadas anteriormente, de que os militares são os mais capacitados para julgarem seus pares, os membros dos conselhos eram, portanto, colegas de armas daqueles que deviam julgar, e também serviam, em determinadas situações, de testemunhas. Sujeitos aos mesmos códigos – o RPCM só faz distinção entre os generais (Art. 12), que, mesmo assim, eram sujeitos a julgamento pelos pares –, os que julgavam poderiam por vezes encontrar-se do outro lado, na condição de réus hoje julgando, amanhã sendo julgado. Tomemos como exemplo alguns casos de oficiais que estiveram à frente das investigações dos crimes de 1900. O Major Antonio Gonçalves Pereira, que conduziu os interrogatórios iniciais do IPM, serviu também de juiz no caso em que foi réu João José da Silva Lima, soldado de seu próprio regimento213; o Major Antonio Felix de Souza Amorim, Comandante do destacamento, presidiu, em 1901, um Conselho de Inquirição214; e o Capitão José Rodrigues de Castro, responsável por interrogatórios feitos em Jangada, compôs Conselho de Guerra em 1899, sob a presidência do Coronel Francisco Xavier Baptista215. Os casos mais emblemáticos são o do Alferes do 39º Regimento de Infantaria Narcizo Antonio Bizarro e do capitão do 14º Batalhão de Cavalaria, Camillo Brandão: o primeiro, que

212

Peter Beattie cita uma defesa feita por um oficial, argumentando que os que compunham os Conselhos de Guerra deveriam ser escolhidos por sorteio, a exemplo dos júris em cortes civis, e não indicados por comandantes, o que impediria comandantes de perseguir oficiais subordinados. (Jornal O Alvorada, de 15 março de 1879, p. 6-7 apud BEATTIE, op. cit., p. 280). 213 A República, Curitiba, ano 14, n. 88, 20 abr. 1899. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. 214 A República, Curitiba, ano 16, n. 114, 20 maio 1901. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. 215 A República, Curitiba, ano 14, n. 56, 11 mar. 1899. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014.

142

compôs um Conselho de Guerra, em outubro de 1900216 assinou como curador (“tutor”) da praça Sebastião Bento Thomaz do Nascimento, quando este apresentou defesa ao CG, ou seja, o caso aqui extrapola a dinâmica oficial julgando ou absolvendo um oficial, já que se trata de oficial defendendo soldado; quanto ao Capitão Camillo Brandão, membro do Conselho de Guerra no caso em questão, teve que deixar esse conselho, em função de que ele próprio foi submetido a conselho, sendo absolvido. No jornal A República, lê-se, na seção Diversas: Acaba de ser absolvido unanimemente pelo conselho de guerra a que respondeu, no qual produziu brilhante defesa, o sr. capitão do 14º regimento de cavalaria, Camillo Brandão, pela responsabilidade moral que lhe cabia como comandante que era do regimento, em Abril do corrente anno, quando se deu o furto no cofre do mesmo côrpo. Parabens ao illustre e digno oficial. (grifo nosso).217

Em 1901, o capitão Camillo Brandão foi absolvido pelo Conselho Supremo Militar218, vindo a compor, logo em seguida, dois outros conselhos, na condição de presidente, no primeiro219, e interrogante, no segundo220. Por fim, outro caso de juiz que também foi submetido a julgamento é o do réu maior no processo de 1900, o Alferes Francisco Corrêa Torres. No ano anterior, ele próprio fez parte de um Conselho de Guerra a que respondeu o soldado do 3º Regimento de Artilharia de Posição, José Henrique Nunes, e que foi presidido pelo major Manoel Vicente Ferreira de Mello221. Desde a instauração do inquérito até o julgamento no CG, tudo é conduzido basicamente por militares; são eles que documentam, produzem as provas e julgam seus próprios pares. Não se pode negar a o uso de dois pesos e duas medidas, cujos critérios

216

Juntamente com o Capitão Joaquim Raphael Pessôa de Mello, o Tenente Candido José Pamplona, o Alferes Francisco Lemos e Arthur Abreu de Azevedo. A Republica, Curitiba, ano 15, n. 239, 26 out. 1900. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. 217 Jornal A República. Curitiba, ano 15, n. 231, 17 out. 1900, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. 218 Conforme telegrama do senhor marechal chefe do Estado Maior, encaminhado ao jornal A República. Curitiba, ano 16, n. 8, 10 jan. 1901, p. 1. 219 A República, Curitiba, ano 16, n. 18, 22 jan. 1901. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. 220 Jornal A República, Curitiba, ano. 16, n. 114, 20 maio 1901. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. 221 Foram juízes também o capitão Juvenal de Mattos Freire, 1º tenente Sylvestre Rocha, alferes Leopoldo Linhares e João Baptista Pires d’Almeida. Jornal A República. Curitiba, ano 15, n. 68, 25 mar. 1899, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014.

143

empregados perpassam pelo campo da subjetividade, atrelados a laços profissionais e pessoais. Ressalvados os argumentos de que oficiais e praças respondem por atribuições e responsabilidades diferentes, cujos pesos variam, oficiais identificam-se muito mais com as instituições, onde seguem carreira até aposentarem-se, e tendem a ser mais protegidos. Da mesma forma que é causa de curiosidade ao mundo civil a ideia de “militar julgar militar”, internamente, tal fato ganha uma subdivisão, a do “oficial julgar oficial”, o que também não parece um acontecimento normal. Veja, quando a autoridade julga o graduado, ela encontra-se numa situação vertical de conforto: ele é o chefe que julga o subordinado; essa é a regra. Mas, no dever de julgar outro oficial, que, assim como ele também é apto a comandar, a verticalidade da situação começa a se horizontalizar. O questionamento que se faz em relação à subjetividade em ambos os julgamentos é se a diferença entre os grupos tem o condão de alterar o senso de justiça da autoridade que a aplica. Em outras palavras, se o martelo que julga os futuros chefes, tem o mesmo peso daquele que julga os sempre subordinados. (FERNANDES, 2013, p. 83).

Comparando-se com a Justiça Comum onde, em tese, os juízes encontram-se afastados dos sujeitos que acionam a Justiça e dos que são por ela intimados (na prática, como se verá no capítulo 5, os operadores do Direito, na Justiça Comum, encontravam-se fortemente vinculados aos sujeitos envolvidos), na Justiça Militar, os juízes estão fortemente vinculados, especialmente aos oficiais (ibidem, p. 85).

O mesmo não se pode afirmar quando o réu é oficial. Estes confundem-se com a própria força, pois a eles é confiado o comando da tropa. No julgamento de membros desse grupo, há incertezas sobre a quem é direcionado o veredito: ao homem ou à instituição. [...] Há de se admitir a existência de dois parâmetros de julgamento, a depender de qual é a posição do réu dentro da instituição. (Ibidem, p. 88).

O RPCM possibilitava aos réus não só a ampliação e a qualificação de suas defesas como também a possibilidade de interferirem na condução do processo, como fica muito claro ao atentarmos para a solicitação que fez o Alferes Torres, com base no Art. 76, de reinquirição das testemunhas em sua presença. O CI retardou sua decisão por conta disso, e deu-se uma nova dinâmica na condução das investigações: parte das testemunhas tiveram de comparecer em Curitiba, e o CI designou um Conselho de Inquirição para ouvir as demais nas próprias localidades em que se encontravam.

144

3.4 A FÁBULA222 JUDICIÁRIA

O processo-crime traduz o encontro de dois fatos que pretendemos percorrer: 1) o “acontecimento originário” (FAUSTO, 2001, p. 31), ou seja, os conflitos ocorridos em junho de 1900 e o que podem revelar da sociedade circundante, composta de nacionais de diversas partes do país – praças, caboclos, indígenas – e imigrantes poloneses/ucranianos, russos, italianos e outros; 2) o “fato jurídico”, ou seja, a produção de outro fato, a partir desses conflitos, no interior dos aparelhos de controle social e julgamento – Justiça Militar e Poder Judiciário. Nas palavras de Boris Fausto, “Os autos traduzem a seu modo dois fatos: o crime e a batalha que se instaura para punir, graduar a pena ou absolver.” (2001, p. 32). Dito de outro modo, algo aconteceu sobre o qual foram produzidas falas e interpretações registradas no auto judiciário atualmente depositado em arquivo. O primeiro caso tratamos por “fatos” ou “casos da vida”, parte da própria condição humana, nos embates que travam homens e mulheres em seu convívio cotidiano, e as crises daí resultantes; no segundo, tem-se um fato construído nos tribunais ou escritórios de advogados, e que pode ter pouco a ver com os “casos da vida” (HESPANHA, 2005, p. 99). Ambos os fatos – o da vida e o jurídico – diluem-se em um contexto amplo, uma sucessão de acontecimentos. Em boa parte das vezes, seus sujeitos continuarão a interagir, ainda que em espaços mais ou menos predeterminados. Dos tribunais, temos parte desse movimento registrada223; dos bastidores, indícios escassos. O fato jurídico se torna um fato dentro do fato, portanto, problematizar o processo-crime que temos em mãos nos impede de nos equivocarmos em uma suposta “transparência” dos processos judiciais (ADORNO apud FAUSTO, 2011, p. 12). Michel Foucault afirma que no século XIX formou-se “um certo saber do homem, da individualidade, do indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora da regra” e que este saber curiosamente nasceu através de práticas de controle e vigilância dos indivíduos 222

Mariza Corrêa se utiliza do conceito de fábula para enfatizar a ideia de que “um processo é um conjunto de múltiplas versões todas elas originadas pelo mesmo ato, irrecuperável” (CORRÊA, Mariza. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 26). Para Celeste Zenha (ZENHA, Celeste. As práticas da Justiça no cotidiano da pobreza. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 5, n. 10, março/agosto de 1985, pp. 123-146, p. 126), “[...] a fábula é a verdade final produzida no processo [...]. Ela se distingue da ação, perdida no tempo, que serve de pretexto para o denunciante.” 223 “Investigação é toda atividade destinada à elucidação do fato e sua autoria. Instrução é a atividade tendente a registrar por escrito os resultados obtidos por aquela.” (MELLO, J.D.C. O inquérito policial em face do anteprojeto. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal. Ano 2, n. 9, 1965, p. 54).

145

(FOUCAULT, 1996, p. 8, grifos nossos). Nesse sentido, de acordo com o autor, as práticas judiciárias estiveram entre as mais importantes, justamente por serem “uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade” (ibidem, p. 11). O passado jamais poderia ser reconstituído assim, de forma objetiva, real ou palpável, os fatos encontram-se suspensos, não se repetem. Nas palavras de Celeste Zenha (1985, p. 126), “o que realmente ocorreu entre o denunciado e o morto ficou perdido no tempo” e os autos jamais terão o poder de provocar a repetição – repetida ação – da agressão que ocasionou a morte. Nesse sentido, concordamos com Keith Jenkins que o nosso conhecimento sobre o passado representa apenas um discurso, entre vários outros, a respeito do mundo e, no entanto, embora discursos não criem o mundo, “aquela coisa física na qual aparentemente vivemos [...], se apropriam do mundo e lhe dão todos os significados que tem” (2004, p. 23), e terminam por (re)orientar novas ações. Um processo penal, pela sua natureza, é um documento que contém vários discursos, que são as narrativas que cada indivíduo ou grupo constrói a partir do ocorrido, movido pelo interesse de inocentar ou incriminar224. Como afirmou Marisa Corrêa (1983, p. 41, grifos nossos), “[...] no momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em versões, o concreto perde quase toda sua importância e o debate se dá entre os atores jurídicos, cada um deles usando a parte do ‘real’ que melhor reforce o seu ponto de vista.” Os atores jurídicos agrupam-se de acordo com certas especificidades, como os compostos por réus e testemunhas ou vítimas, e os formados de promotores, advogados ou juízes. Segundo Pierre Bourdieu (1989, p. 212, grifo nosso), “o campo jurídico é o lugar de concorrência sobre o monopólio pelo direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem”. Para o autor, é nesse lugar que se defrontam os operadores do Direito, “agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social” (ibidem, p. 212). De testemunhas a juízes, promotores, réus, obedecendo-se a uma hierarquia 224 “[...] todo acontecimento é, de certo modo, uma construção da memória coletiva” (Philippe Joutard, L’Évenement, relatos do colóquio de Aix-em-Provence organizado pelo Centro Meridional de História Social, Marselha, Universidade de Provence-J.Lafitte, 1986, p. 3, apud DOSSE, François. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 10).

146

em que cada qual tem, em tese, mais condições de dizer a verdade, chegar-se-á ao júri, que também dirá sua verdade (vere dictum – “Dizer a verdade”)225. Ou seja, há a realidade distinta entre “o que ocorreu e o que é legal”, na feliz expressão de Clifford Geertz (1997, p. 253). Para o antropólogo, o debate que ocorre no interior da Justiça diz respeito não ao que aconteceu, mas ao “que acontece aos olhos do direito; e se o direito difere, de um lugar ao outro, de uma época a outra, então o que seus olhos vêem também se modifica” (ibidem, p. 259). Embora em muitos momentos as leituras dos fatos da vida, de juristas e historiadores ou pesquisadores de áreas afins226 – o próprio termo história, de origem grega, significa investigação –, possam se aproximar, partem de interesses e métodos diferentes, e os saberes que produzem em certa medida são determinados pelo sujeito construtor. Para François Dosse (2013, p. 338),

[...] o acontecimento resulta de um fazer, de uma fábrica. A construção social do acontecimento, a fabricação de sua grandeza social, logo histórica, passa pela tentativa de redução da indeterminação do que ocorreu e ao qual tenta-se conferir uma determinada importância em função de um sistema de valores.

O que Durval de Albuquerque Junior (2007, p. 63) diz a respeito das atividades do historiador: “O que se chama de evidência é fruto das perguntas que se fazem ao documento e ao fato de que, ao serem problematizados pelo historiador, transformam-se, em larga medida, em sua criação.”, também pode ser dito do Direito, empenhado na produção de saberes que sirvam a propósitos específicos. Carlo Ginzburg (1991, p. 183) faz uma apropriada distinção entre o juiz e o historiador:

225

“[...] o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das ‘regras possíveis’, e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa; o efeito jurídico da regra, quer dizer, a sua significação real, determina-se na relação de força específica entre os profissionais, podendo-se pensar que essa relação tende a corresponder (tudo o mais sendo igual do ponto de vista do valor na equidade pura das causas em questão) à relação de força entre os que estão sujeitos à jurisdição respectiva.” (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 224225). 226 São exemplos os seguintes trabalhos de Antropologia: Clifford Geertz, O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004; GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações. A Micro-História e Outros Ensaios. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991; NEDER, Gislene (Org.). História e Direito. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

147

Para o primeiro, a margem de incerteza tem um significado puramente negativo, e pode conduzir a um non liquet – em termos modernos, a uma absolvição por falta de provas. Para o segundo, isso obriga a um aprofundamento da investigação, ligando o caso específico ao contexto, entendido aqui como campo de possibilidades historicamente determinadas. A biografia das personagens de N. Davis [por exemplo]227 torna-se de vez em quando a biografia de outros 'homens e mulheres do mesmo tempo e lugar', reconstituída com sagacidade e paciência, recorrendo a fontes notariais, judiciárias, literárias.

Ou seja, ao passo que o juiz deve lidar basicamente – embora não exclusivamente – com as evidências – provas – produzidas por ocasião do crime, o historiador pode dispor de outras fontes para construir seu conhecimento, não ficando restrito apenas ao “caso” em questão, como na obra citada, de Natalie Zemon Davis. A partir de fontes judiciais produzidas em fins da Idade Média, por conta do julgamento de um cidadão que se fez passar pelo desaparecido Martin Guerre em uma região rural da França, a autora percorreu várias fontes, notariais, judiciárias e literárias, por exemplo. Utilizando-se das histórias desses personagens, descreveu o modo de vida da população camponesa da França do início dos tempos modernos. A Justiça, permeada por uma etiqueta própria, se utiliza de um conjunto de regras e técnicas para chegar à sua versão final, entre todas as apresentadas no percurso das investigações, utilizada para punir, cumprindo com o que os interessados em seus serviços esperam e, nesse sentido, termina por auxiliar o historiador, quando

[...] faz falar [...] incita homens e mulheres, brancos, negros e pardos, adultos e crianças, inocentes e culpados, delinqüentes e “homens de bem” a dizer algo além do restrito espaço do crime: sobre as emoções, as vontades ocultas, as frustrações, os desvarios da moral, tudo o que contribuir para o conhecimento minudente de cada ato, gesto, sintoma [...] (ADORNO apud FAUSTO, 2011, p. 12).

Cada vez que depõem, testemunhas e réus narram e recriam, reconstroem seus discursos, acrescentando ou excluindo informações, enfatizando um ou mais aspectos. As testemunhas dos crimes de 1900 depuseram em sucessivos cenários (sede da Comissão Estratégica, em Jangada; Quartel em Curitiba; Tribunal do Júri em Palmas), e ainda que não estivessem na condição de réus, suas ações também foram questionadas, ou seja, também elas precisam, em determinados momentos, explicar-se. 227

O autor se refere à obra II ritorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis, traduzida no Brasil como O retorno de Martin Guerre (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987).

148

A versão final a que chega a Justiça nos interessa enquanto produto, e a fabricação dos fatos jurídicos desvenda as tramas sociais justamente por que são socialmente construídos. As “práticas policiais e judiciárias [são] como dimensões produtoras e produzidas pelo movimento geral da sociedade” (ADORNO apud FAUSTO, 2001, p. 11). O cientista social não vê a delinquência “como um simples caso de polícia mas, antes de tudo, como profunda questão social” (ibidem, p. 10). Os atores jurídicos encontram-se posicionados de forma semelhante a peças de xadrez, cada qual em seu lugar, movendo-se a partir de regras predeterminadas, mas dentro de um campo de opções que cada um fará, dentro dos limites que lhe cabem (CORRÊA, 1983, p. 39). Nesse sentido, procuramos entender, com Celeste Zenha (1985, p. 123-125), “como se julga através do judiciário e, ainda mais, o que se faz além de julgar, quando o poder judiciário é acionado” e de “como uma determinada população pratica o poder judiciário”. Através das nominações de autoridade, testemunha, jurado, ofensor, ofendido, perito, etc., a população participa do exercício do Poder Judiciário. Esses termos delimitam o campo de ação de cada participante, informando a maneira de agir, o movimento a ser efetuado (ibidem, p. 127). Para a autora, Não se deve atribuir às autoridades policiais (ou judiciais) a gerência completa do Poder Judiciário. Existem brechas nas quais os demais setores da população podem expressar-se, mais do que isto, imprimir sua força nos resultados finais do processo penal, que são a punição ou a absolvição. (ZENHA, 1985, 141).

O poder jamais é singular, e nunca pode ser encarado numa lógica dicotômica, que opõe os que o detêm e os que dele estão excluídos, mas como algo que funciona em cadeia. Segundo Michel Foucault (1989, p. 183), o poder

Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido de poder, são sempre centros de transmissão.

Os depoimentos esboçam versões do ocorrido que poderão apontar os culpados, incriminar ou inocentar. Trata-se de oportunidades de exercício do poder por parte daqueles que, em tese, não têm poder, ou estão afastados das instituições vistas como as que detêm o poder, numa perspectiva singular. Quando encarado na perspectiva de análise proposta,

149

especialmente por Michel Foucault, o poder que pune ou inocenta encontra-se espraiado em um universo de incontáveis sujeitos. Assim como na vida cotidiana “Um grupo de pessoas é capaz de monopolizar as oportunidades de poder e utilizá-las para marginalizar e estigmatizar membros de outro grupo semelhante [...]” (ELIAS, 2000, p.13), isso também se dá no contexto da produção dos fatos jurídicos. As disparidades ou desequilíbrios observáveis na distribuição do poder é o que Norbert Elias denomina “excedente de poder” ou “potencial de poder mais elevado” (ibidem, p. 22) que alguns grupos ou indivíduos podem, inevitavelmente, deter. Saber quem matou ou fez uso das armas, e que, portanto, deveria ser responsabilizado pelos crimes, embora possa ajudar na tarefa de produção de conhecimentos que interessam às ciências sociais, importa menos do que entendermos como se construíram as versões/verdades, e o que nos dizem sobre esse complexo universo dos lugares onde a vida acontece. Ao final, uma dessas versões/verdades “competitivas” (GEERTZ, 2011, p. 258) irá prevalecer. Para a Justiça, “é necessário que aquele que julga se encontre diante de uma verdade e não de uma mentira” (ZENHA, 1985, p. 126). Ou seja, o ato de julgar, em última instância, exige que uma versão seja considerada verdadeira. Segundo Roberto Kant de Lima (2010, p. 29),

Distingue-se, assim, das formas de expressão das lógicas adversárias de produção da verdade, dominantes nas áreas acadêmicas e científicas, fundadas na busca de consensos provisórios sobre fatos que se constroem pela reflexão e a explicitação das diferentes perspectivas dos envolvidos, em um processo de argumentação demonstrativa, que visa ao convencimento de todas as partes legítimas envolvidas no processo: aqui, atingir o consenso entre os pares é fundamental para validar o conhecimento.

A versão/verdade que irá prevalecer, esse produto final, reflete uma enorme gama de estratégias e acordos, tácitos ou objetivos, da (micro)sociedade onde os fatos da vida foram engendrados, em constante interrelação com outra (macro)sociedades, que podem até mesmo extrapolar os limites nacionais. Há que se considerar que nem sempre os autos chegam a uma versão plausível, podendo acarretar decisões esvaziadas, como aconteceu com julgamentos dos crimes de 1900. Todas essas leituras de um mesmo fato (a despeito disso tudo, há ainda a versão que construo), manipuladas por interesses diversos, são consideradas por Mariza Corrêa (1983, p.

150

28), uma “violência dirigida contra a realidade” praticada pelos atores jurídicos, mas também pelos historiadores. Violência porque não é a realidade em si que é reconstruída, mas todo um conjunto de realidades que emergem da argumentação. Fechamos este tópico com as considerações muito apropriadas de Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (2011, p. 35):

A elaboração de uma ordem simbólica que diga como é a realidade, e a constituição dessa ordem como negação da desordem da realidade-real, leva à substituição da realidade pela norma. A violência do Direito é, sobretudo, uma violência simbólica, que constrói e impõe uma determinada definição do mundo como legítima, um sentido, um fundamento e uma significação, mas também uma direção e uma lógica, uma racionalidade concreta: a racionalidade da forma jurídica. Por isso Bourdieu considera o Direito e o discurso jurídico como o paradigma da violência simbólica, a que se exerce pela forma, formatando, substituindo e impondo uma ordem jurídico-formal sobre a presumida desordem social.

151

4 AS NARRATIVAS DOS CRIMES DE 1900 E A BATALHA PELA VERDADE THAT'S WHY GO ALLE FAR BENSHE MOVE ALLE FAR BENE RADIO WHY GOD MADE THE RADIO

Neste e no próximo capítulo, trataremos mais diretamente do processo penal que incriminou os militares envolvidos nos assassinatos de 1900. Procuramos realizar uma leitura minuciosa dessa fonte judiciária, agindo como o historiador etnográfico preconizado por Robert Darnton (1986, p. xiv), o qual

[...] estuda a maneira como as pessoas comuns entendiam o mundo. Tenta descobrir sua cosmologia, mostrar como organizavam a realidade em suas mentes e a expressava, em seu comportamento. Não tenta transformar em filósofo o mundo comum, mas ver como a vida comum exigia uma estratégia. [...] em vez de tirarem conclusões lógicas, pensam com coisas, ou com qualquer material que sua cultura lhes ponha à disposição, como histórias ou cerimônias.

Iniciamos situando os crimes como massacres de pouca projeção nacional, praticados com barbárie e arbítrio para então tratarmos do andamento das investigações enquanto constituíam um Inquérito Policial Militar e, em seguida, Conselho de Investigação, com ênfase no comportamento de testemunhas e indiciados, e nas formas e ritos empregados no âmbito jurisdicional castrense.

4.1 OS ATAQUES AOS POLACOS PELOS MILITARES DA COMISSÃO ESTRATÉGICA

152

Desavenças resultantes de festividades religiosas em que os militares e os colonos encontravam-se embriagados, não seriam em si nenhuma novidade, cenas corriqueiras registradas diariamente em qualquer parte. No entanto, para além das sutilezas do processo e das artimanhas empregadas para assegurar defesas ou incriminações, estamos diante de uma realidade presente na história do país: a violência e o arbítrio cotidianos, que, quando cometidos pelas Forças Armadas, fizeram vítimas dentro e fora de suas fileiras. “Nossa sociedade formou-se a partir de uma cultura da violência.” (OLIVEIRA, in: GOMES, 2010, p. 14). Os crimes foram o resultado de confrontos entre um número considerável de pessoas. Foram onze militares envolvidos, a maior parte do destacamento228 – embora nem todos tenham tomado parte tão direta nas agressões –, em luta contra um grupo de colonos, os quais, embora não possamos definir em um número exato, podemos estimar em, pelo menos, 23 camponeses que têm seus nomes registrados nos autos: cerca de seis crianças, um adolescente (Lucio), duas jovens (Senka e Seraphina) e catorze adultos. Nos depoimentos das testemunhas, foram citados outros polacos que apareceram em defesa das vítimas, mas que não foram chamados a depor. Levando em conta as incertezas e lacunas inerentes a um documento dessa natureza, em que as “verdades” informadas andam lado a lado com “falsidades”, o estudo atento dos autos permite-nos apreender a situação de agressão sofrida pelas famílias camponesas instaladas na região, por ocasião dos confrontos. Se comparados com os índices de criminalidade praticados nos grandes centros urbanos da época, esse fato parece ínfimo e quase desaparece nas estatísticas, mas quando situado no contexto local, assume sentidos singulares para seus protagonistas e nos ajuda a pensar a região em outros termos. A forma como as investigações foram conduzidas nos meandros da Justiça Militar, os registros das declarações, a apresentação de defesas e discursos empregados pelos oficiais desvendam uma cultura de práticas autoritárias, marcadas pelo preconceito e reprodução de relações injustas e desiguais. Amostra de uma sociedade que os idealizadores da República pretenderam coesa e homogênea, mas que na prática era marcada por profundas contradições e “[...] distanciamentos profundos entre o discurso legal, que contemplava postulados liberais, e as práticas políticas autoritárias do cotidiano, enraizadas numa mentalidade escravista e latifundiária.” (MENEZES, 1998, p. 3). 228

Cf. telegrama enviado por Antonio Felix de Souza Amorim ao Comandante do 5º Distrito Militar, Francisco da Rocha Callado, analisado logo na sequência.

153

O tratamento dispensado aos imigrantes poloneses é revelador de outras formas de exercício do poder em que a Justiça Militar e o Poder Judiciário, com “P” maiúsculo, não são os únicos poderes e não julgam apenas as ações criminosas dos militares, mas também o próprio comportamento das vítimas. Nossa tese é a de que não se trata de apenas mais um crime, mas de um ato arbitrário de extrema brutalidade, abuso físico e moral229, e violação de direitos. Os indiciados invadiram uma pequena residência de imigrantes fracamente armados – onde encontravam-se mulheres e crianças –, portando armas de guerra de uso do Exército, e dispararam. O artigo 72 da Constituição Federal de 1891 assegurava “a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade”, e o parágrafo 8º assim dispunha: “A casa é o asilo inviolável do indivíduo; ninguém pode aí penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir às vítimas de crimes, ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei.” Não se tratava de nenhum ataque ordenado ou de alguma contenção de revolta que pudesse, quiçá, justificar o abuso, do ponto de vista dos argumentos empregados pelo governo republicano. Uma pessoa morreu no ato, sem que qualquer dos indiciados admitisse tomar conhecimento; um garoto de 12 anos teve uma perna praticamente decepada e morreu no dia seguinte em consequência dos ferimentos; outros três adultos tiveram ferimentos de armas de fogo e cortantes, cujas consequências perduraram por meses, isso sem falar nos ferimentos das praças. Os relatórios do Governo do Estado do Paraná não fizeram nenhuma referência aos ataques criminosos. Ainda que levemos em conta exagero e inverdades presentes nas declarações das testemunhas, a violência foi atestada pelos próprios indiciados, que admitiram ter arrombado uma parede e realizado uma busca no interior da casa, onde encontraram escondidos os que conduziram ao acampamento, e que o conflito terminou com a fuga da maior parte dos polacos230. As agressões e intimidações continuaram sobre os dois polacos que foram conduzidos ao destacamento.

229

Luiz Roberto Cardoso de Oliveira conceitua insulto moral como “ um conceito que realça as duas características principais do fenômeno: (1) trata-se de uma agressão objetiva a direitos que não pode ser adequadamente traduzida em evidências materiais; e, (2) sempre implica uma desvalorização ou negação da identidade do outro.” (OLIVEIRA, Luiz Roberto Cardoso de. Existe violência sem agressão moral? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 67, jun. 2008, p. 2). 230 Segundo depoimentos dos indiciados Alfredo e João, fl. 163 do PC/1900/General Carneiro.

154

O motivo apontado pelos indiciados foi um pedido de água (na esfera cível, como se verá mais adiante, outras testemunhas, não oculares, afirmaram que as praças estivessem interessadas em praticar atos libidinosos com as duas adolescentes); e promoveu-se verdadeiro massacre. Dos militares, detentores do poder das armas, embora alegassem defesa, por terem sido recebidos com tiros, pedradas e garrafadas, nenhum foi ferido gravemente. Ao longo da apuração dos crimes, testemunhas (e soldados) foram constrangidas, sendo o próprio processo de investigações uma ação violenta; a Justiça (Militar ou Civil), estranha e intrusa231, invadiu e alterou a rotina desses camponeses, gerando, em certos momentos, ainda mais medo e insegurança, como se já não bastasse o ocorrido naquela noite de junho de 1900. Os autos do processo mostrarão que os polacos quase nenhuma força tiveram no sentido de se fazer ouvir ou respeitar. Em síntese, os autos revelam uma realidade partilhada, nessa Zona Estratégica, por praças e moradores locais pobres, em um “mundo social atravessado pela tensão entre os sentidos de inclusão e exclusão” (NEIBURG apud ELIAS, 2000, p. 9). O pesquisador Rogério Rosa Rodrigues (2008, p. 374 a 377), que investigou as ações do Exército no cenário da Guerra do Contestado, e desvelou um cotidiano de invasões e queimas de domicílios, inclusive por oficiais, afirmou que as regiões ocupadas pelo Exército convertiam-se em áreas de risco para a população local. O abuso e a violência praticados pelos homens da Estrada Estratégica são reincidentes. Joaquim Osório Ribas (2008, p. 52), ao escrever sobre a formação da cidade de General Carneiro e a constituição de sua população, referiu-se a uma festa de inauguração de um templo, o primeiro que os imigrantes ergueram em 1897, que foi “maculada por um desentendimento entre colonos e operários da estratégica, resultando na morte do imigrante Antônio Kimita”232. Embora esses “pequenos massacres” não repercutissem como as guerras e conflitos de maior projeção (Canudos, Contestado etc.), o ocorrido em General Carneiro em 1900 mereceu, ainda que brevemente, algum destaque nacional, impactando até mesmo as relações internacionais. Os autos reportam-se à preocupações do Marechal Ministro da Guerra e

231

Afirma Boris Fausto (FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 33) que, “Para uma pessoa das classes populares sobretudo, o aparelho policial e judiciário representa uma perigosa máquina, movimentada segundo regras que lhe são estranhas.” 232 É provável que esse caso tenha parado na esfera militar, já que foram procurados registros judiciais que tratem do crime, mas não constam no cartório de Palmas, ao qual a região encontrava-se sob jurisdição.

155

setores da imprensa da época. Em 20 de outubro de 1900, o Comandante do 5º Distrito Militar de Curitiba, Francisco da Rocha Callado, ordenou ao Capitão Ignacio Gomes da Costa, que seguisse imediatamente a Jangada para conduzir as investigações, argumentando que, em telegrama do dia 17 do mesmo mês, o Marechal Chefe do Estado Maior havia recomendado urgência na apuração dos crimes.233 Quando o processo foi encaminhado à jurisdição civil, um dos promotores (substituto) que cuidou do caso sugeriu que, ante a ausência das testemunhas convocadas, outras três, residentes em Palmas, que sabiam dos fatos por ouvir dizer, fossem igualmente intimadas a fim de serem interrogadas sobre o que sabiam, “satisfazendo-se assim o andamento da Justiça e as reclamações do Consul Austriaco”234. Os assassinatos foram noticiados pelo jornal carioca Gazeta de Notícias235:

Relações exteriores. As questões dos colonos austríacos, no Estado do Paraná, ainda estão para resolver, pela dos índios da colonia Lucena o governo tomou já as providencias que estavam ao seu alcance; outras tomará de caracter confidencial, de acordo com o governo do Paraná. Mais grave ainda é a questão da colonia Jangada, em que ha mezes, por futeis pretextos, tres cidadãos austríacos foram fuzilados por forças do exercito. É certo que o governo se preoccupa com o caso, e se não estamos mal informados, o ilustre marechal Mallet, ministro da guerra, está empenhado para que se faça justiça, independentemente da reclamação diplomatica. Por causa desses incidentes a emigração para o Paraná tem diminuído assombrosamente do anno passado para cá. É bom que essas pendencias sejam evitadas, mas, desde que appareçam, o melhor que há a fazer é liquidal-as imediatamente.

A nota breve merece destaque quando levadas em conta as condições da imprensa escrita da época, a quantidade de periódicos publicados e as dificuldades de circulação das notícias. A julgar pela forma como a nota refere-se, de início, à questão dos colonos austríacos, é muito provável que os crimes já tivessem sido noticiados, ainda que não tenhamos localizado nada nesse sentido em números anteriores, do periódico. Embora combine a condição desastrosa enfrentada pelos imigrantes como resultado também dos ataques de índios botocudos, frequentes em jornais, inquéritos policiais e

233

Cf. Fl. 54 do PC/1900/General Carneiro. Em 10.03.1902, fl. 221 do PC/1900/General Carneiro. 235 Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, ano 27, n. 38, 7 fev. 1901. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. (A República, Curitiba, ano 16, n. 37, 13 fev. 1901. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014, seis dias depois, transcreveu, na íntegra, a pequena notícia, na seção “Telegramas”). 234

156

relatórios do governo, a matéria dá ênfase ao ataque das forças do Exército, que considerou mais grave236. A apuração dos crimes começou na manhã do dia 11, na sede da própria Comissão de Estradas Estratégicas, na colônia Jangada, sob a direção do Capitão Antônio Félix de Souza Amorim237. As investigações tramitaram no interior da Justiça Militar por cerca de um ano e dois meses, até agosto de 1901, sendo posteriormente transferidas para o Poder Judiciário, jurisdição da Comarca de Palmas (PR). Na esfera militar, as apurações se deram em três etapas: 1) Inquérito Policial Militar (IPM), constituído basicamente de exames de corpo de delito e interrogatórios de réus e testemunhas. Findos os interrogatórios, o encarregado do inquérito, Major Antonio Gonçalves Pereira, encaminhou relatório ao comandante do 5º Distrito Militar de Curitiba, Francisco da Rocha Callado, em outubro de 1900, atribuindo culpa aos indiciados Alferes Francisco Corrêa Torres, do 13º Regimento de Cavalaria, Cabos d’Esquadra Herculano Gomes da Silva e Soldado Alfredo João Ribeiro, do 14º Regimento da mesma arma, e os Soldados Sebastião Bento Thomaz do Nascimento e João Antonio da Silva, do 39º Batalhão de Infantaria, todos do Exército Nacional; 2) Conselho de Investigação (CI)238: foram novamente inquiridos indiciados e testemunhas, sendo conclusos os autos em janeiro de 1901, com a pronúncia239 dos indiciados Torres, Herculano, Alfredo, Sebastião e João Antonio; 3) Conselho de Guerra (CG): foram interrogadas as testemunhas e os indiciados pronunciados pelo CI, que então tornaram-se réus e apresentaram defesas escritas.

236

Talvez por algum equívoco fale em três cidadãos assassinados, mas tudo nos leva a crer que se trate do mesmo fato; ou pode ser ainda que o periódico se refira a um segundo conflito, em que mais um colono tenha sido morto. O mesmo jornal e outros disponíveis não fizeram nenhuma referência a crimes que tenham envolvido Exército e imigrantes austríacos entre junho de 1900 e fevereiro de 1901, e no cartório do crime de Palmas, onde está depositado o processo penal aqui analisado, também não há registros. Se a manchete trata de outro ataque, isso só aumentaria as estatísticas. 237 O processo (PC/1900/General Carneiro) possui, no total, 456 folhas, que se encontram enumeradas até a 407. Os primeiros registros produzidos datam do próprio dia em que ocorreram os conflitos, e o último registro que trata, efetivamente, dos julgamentos é do ano de 1909. Na última folha anexada ao processo, no verso, há um breve “Arquive-se”, datado de 23 de outubro de 1928, que indica que nem todos os processados foram julgados, na esfera cível. O Cabo d’Esquadra Herculano Gomes da Silva e o Soldado Alfredo João Ribeiro Alfredo e Herculano não foram encontrados quando intimados pelo juiz. 238 A partir da folha 32 do PC/1900/General Carneiro. 239 Art. 188 do Regulamento Processual Criminal Militar (analisado em seguida) estabelecia, de forma mais clara: “Em seguida, finda a discussão entre os juizes, passarão estes a dar suas opiniões sobre a pronuncia ou não pronuncia do indiciado, no caso affirmativo em que artigo de 'lei, e o que ficar decidido, por unanimidade ou maioria de votos, constituirá o despacho de 'pronuncia ou não pronuncia do indiciado, devendo o mesmo despacho ser escripto pelo juiz; escrivão e por todos assignado.”

157

Conclusa a inquirição sumária (IPM), o Major Antonio Gonçalves Pereira emitiu um relatório240, os indiciados culpabilizados tornaram-se réus e praticamente nenhum questionamento houve em relação ao relatório, ou seja, dentre os onze indiciados, os cinco réus que foram a julgamento nas duas esferas foram os considerados culpados pelo Major. Ao Alferes Torres, o Major atribuiu maior culpabilidade,

[...] não só porque tendo recebido ordem de acalmar o conflito, quando encontrou os praças a mais de meio kilometro distante do local onde se dera o dito conflito, fez eles retrocederem e concitou-os a atacarem de novo os polacos como também pela circunstância de ainda e municiar uma das praças com um mosquetão Mannlicher e, por fim, assistir o desenrolar da luta.

Os Soldados Herculano e Sebastião foram indiciados por terem feito uso de mosquetão, e Alfredo e João Antonio, pelo uso de facão. Esses foram os argumentos dos quais se utilizou o Major relator para construir uma denúncia prévia, direta e simples. É estranho que tenha pronunciado o soldado Sebastião, o qual, em momento algum dos depoimentos dos indiciados, insinuou-se que usou a arma; ao contrário, o próprio Torres admitiu que Sebastião largou o mosquetão quando envolveu-se no conflito; e em seu depoimento, a testemunha Serafina, que cita os nomes de algumas praças, afirma apenas que viu Sebastião armado de facão. Já Marcelino foi apontado por alguns de seus companheiros como um dos que fizeram uso do mosquetão, mas não lhe foi atribuída culpa pelo Major. As autoridades parecem considerar desde o início o Alferes Torres, em vez de investigar o ocorrido e pacificar os ânimos, tomou o lado de seus subordinados e engrossou o grupo insubmisso contra os imigrantes. O Major ordenou, então, que os autos fossem remetidos ao General Francisco da Rocha Callado, então comandante do 5º Distrito Militar, “a quem competia decidir afinal”, frase empregada sempre que a continuidade dos procedimentos fosse transferida a superiores. O relatório do Major foi o que, de fato, definiu que praças deveriam ser levadas a Conselho de Guerra e, inclusive, posteriormente pronunciadas pelo promotor e processadas na esfera cível. Terminados os trabalhos do Conselho de Guerra, e remetidos os autos ao Supremo Conselho Militar241, que lavrou Acórdão em agosto de 1901, os autos foram remetidos ao juiz da Comarca de Palmas. O promotor público João Manoel da Cunha Sobrinho, em virtude da 240 241

Fl. 52 PC/1900/General Carneiro. Fl. 189 PC/1900/General Carneiro.

158

decisão do Conselho de Guerra, que inocentou os réus, apresentou denúncia242 contra os cinco réus citados, embasada nas provas produzidas nas fases anteriores, cuja documentação foi juntada ao processo-crime instaurado pelo Poder Judiciário. As investigações terminaram em outubro de 1909, quando se deu o último julgamento, do réu Sebastião Bento Thomaz do Nascimento, inocentado pela segunda vez na esfera cível.

4.2 PERCORRENDO OS FATOS ATRAVÉS DO INQUÉRITO POLICIAL MILITAR

4.2.1 Os primeiros registros: as impressões dos oficiais

Os primeiros registros encontrados nos autos são documentos (partes) emitidos por oficiais da Comissão Estratégica que deram origem ao IPM. O primeiro deles é um ofício assinado pelo Alferes Francisco Corrêa Torres, endereçado ao Capitão da Comissão, Antônio Félix de Souza Amorim; o segundo, um telegrama encaminhado por este último ao Comandante do 5º Distrito Militar de Curitiba, Francisco da Rocha Callado. O ofício e o telegrama trazem duas narrativas inaugurais, que nos apresentam de forma sintetizada os eventos, mas que já demarcam posições um tanto diferenciadas acerca dos conflitos e dão início à batalha de versões/verdades que será instaurada. Para nossos propósitos de análise, transcrevêmo-los na íntegra. Entre o ofício e o telegrama encontram-se os exames de corpo de delito243, nos quais o Capitão Félix Amorim embasou o conteúdo de seu telegrama, o documento que marca o início das apurações. O ofício do Alferes Torres e o telegrama de Felix Amorim são pronunciamentos diretos, que não sofreram nenhuma interferência, nem passaram por qualquer filtro dos operadores jurídicos (juízes, advogados, escrivães etc.). São documentos de natureza diferenciada das declarações prestadas posteriormente, registradas obedecendo a normas jurídicas, ou seja, reduzidas a termo, e que terminam por encarnar a linguagem forense, formal e impessoal.

242

A denúncia da Promotoria Pública é a peça inicial do processo, embora de elaboração posterior (em 29.09.1901, folha nº 1). Com a denúncia e anexação das peças produzidas pela Justiça Militar, os autos receberam, até a folha 29, nova enumeração. 243 Ao amanhecer o domingo dia 11, às 7 horas, o Capitão Antonio Felix de Souza Amorim deu início ao percurso de averiguação dos fatos por meio dos exames de corpo de delito. Nomeou José Tesseroly, Belisário Duarte de Oliveira e Antonio Modesto Gonçalves de Moraes, moradores locais, para procederem aos exames nos colonos feridos (Fls. 30-31 do PC/1900/General Carneiro). Felix Amorim também ordenou a prisão das praças.

159

As declarações orais prestadas nos interrogatórios, ao final, se convertem em um “misto de depoimento e notícia, ao passar na transcrição da primeira pessoa para a terceira” (FAUSTO, 2001, p. 35), perdendo muito de sua riqueza e limitando em certa medida as possibilidades de análise do pesquisador. O art. 74 do RPCM assim dispunha: “As testemunhas serão inquiridas de modo conciso, discriminadas ou bem divididas as perguntas e respostas, guardando-se o estylo ou a linguagem destas, exprimindo, quanto possa ser, o verdadeiro pensamento, sem comtudo prejudicar a redação.” (grifo nosso). A preocupação com a formalidade da redação termina por sacrificar as falas, e “as palavras enérgicas, as blasfêmias exclamatórias dão ritmo à linguagem popular, que, forçada à decência judiciária, morre de anemia” (CASTAN, 1971, p. 117, apud FAUSTO, 2001, p. 35). Ou seja, os primeiros documentos (ofício e telegrama) contêm as impressões diretas dos autores, já os depoimentos, embora reduzidos a termo (transcritos), são uma transcrição de um relato oral, cuja riqueza de gestos, expressões e movimentos fica perdida para sempre.244 Pierre Bourdieu (2002, 215-216) afirma que a linguagem jurídica é permeada pelos efeitos de neutralização e universalização, sendo que

O efeito de neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impersonalidade do enunciado normativo e para constituir o enunciador em sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objectivo. O efeito de universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego, próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestivos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado (“aceita”, “confessa”, “compromete-se”, “declarou”, etc.); o uso de indefinidos (“todo o condenado”) e do presente do intemporal – ou do futuro jurídico – próprios para exprimirem a generalidade e a omnitemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético (por exemplo, “como bom pai de família”); o recurso a fórmulas lapidares e a formas fixas, deixando pouco lugar às variações individuais. (grifos no original).

Para além das questões propostas por Bourdieu, há ainda outro componente que pode, de certo modo, “violentar a realidade”: a atividade dos intérpretes que intermediaram os

244

Tal aspecto nos lembra a comparação feita por Carlo Ginzburg entre os processos inquisitoriais e os cadernos de campo dos antropólogos. (GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações. A Micro-História e Outros Ensaios. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991).

160

interrogatórios245. O ato de interpretar/traduzir as falas originais também pode modificar o teor do depoimento, além dos problemas resultantes da transposição para o papel. O ofício de Torres, réu principal no processo, é datado de 11 de junho. Torres chefiou a expedição das praças à residência dos polacos, quando para lá se dirigiram na segunda vez, momento em que ocorreram as agressões que resultaram nos ferimentos e mortes246.

Ao Sr. Capitão Antonio Felix de Souza Amorim Parte Chegando ao meu conhecimento a uma hora da noite de hontem pelo soldado Sebastião Bento Thomas do Nascimento, que se dava um confilcto [sic] entre praças e polacos na Colonia General Carneiro, a tres kilômetros distante deste acampamento, existindo já algumas praças e polacos feridos, imediatamente segui para o lugar dezignado, conforme vossa ordem, a fim de apaziguar os animos. Por precaução, armei a praça que viera me dar parte do conflito, recommendando toda calma e prudencia, mas ao chegar nas imediações do lugar onde dava-se o conflicto, fui recibido pelos polacos abaixo de tiros, garrafas e pedras, avancei, tentando retirar as praças, que não consegui, em vista da grande exaltação que reinava de parte a parte, estando já cahido sem sentidos, o Anspeçada Leberino de Paula Costa, que levara uma pancada na cabeça. Vendo que a exaltação em que se achavão, podia trazer consequencias mais funestas, intervi de novo no intuito de mesmo com sacrificio fazer retirar as praças sendo infelismente tarde, as 3 horas pouco mais ou menos consegui retiral-as. D’esse conflicto sahirão feridos as seguintes praças: Cabo d’esquadra Marcelino Pereira do Nascimento, na cabeça, Anspeçada Leberino de Paula Costa, na fronte, Soldado Sebastião Bento Thomaz do Nascimento, em um pé Alfredo Jozé Ribeiro na boca e rosto, Manoel Joaquim de Araujo na cabeça e na orelha, além das praças mencionadas, acham-se envolvidos no conflicto as seguintes: Cabo d’esquadra Herculano Gomes da Silva, Soldados João Antonio da Silva, Benjamim Genesio Dorotheu e Tito Corrêa de Mello. Encontrei feridos alguns polacos dos quaes troxe [sic] prezos dois que se acham recolhidos no xadres, apreendi uma espingarda que se achava em poder de um ferido e cuja entrega vos faço. (Grifos nossos).

O tom do ofício é de justificativa, antecipa uma defesa de seu autor e, em menor proporção, dos soldados. Relata, de forma breve e objetiva, o que se passou desde que foi avisado pelas praças Sebastião Bento Thomaz do Nascimento e João Antonio da Silva (o nome deste último foi informado depois, nos depoimentos): recebeu ordens de seu superior, o 245

Serviram de intérpretes tanto polacos como nacionais No Conselho de Investigação, os polacos Rodolpho Pokl e José Bilski serviram de intérpretes para as testemunhas Anastácia e Estephanio, e Carlos e Antonio, respectivamente. Em algumas ocasiões, a intermediação foi feita pelo nacional Pedro Obladio (PC/1900/General Carneiro). O polaco Nicolau Ockovis foi intérprete de João Palucka e de Gabriel Gilinsk (PC/1909/General Carneiro). 246 Os interrogatórios, inicialmente, tratam dos crimes como tendo ocorrido em 10 de junho. O primeiro conflito começou por volta das 22 horas, e o segundo, que resultou nas mortes e ferimentos, se deu após a meia-noite, na madrugada do dia 11.

161

Capitão Antonio Felix de Souza Amorim, para apaziguar um conflito (aqui tratado de “primeiro conflito”) entre as praças e os polacos, armou o Soldado Sebastião, por precaução, recomendando-lhe cautela, e dirigiu-se ao local. Ao chegar, não conseguiu, de imediato, acalmar os ânimos. Teriam se passado cerca de duas horas entre o momento em que recebeu a notícia e quando abandonaram o local (“segundo conflito”). Ressalta os ferimentos que receberam algumas praças, mencionando-os com alguns detalhes. Quanto aos polacos, o Alferes Torres diz apenas que receberam o destacamento com tiros, garrafadas e pedradas, que encontrou alguns feridos e que prendeu dois, conduzindo-os ao xadrez247. Esse é basicamente o posicionamento que o Alferes irá adotar até o fim, referindo-se às praças como “os envolvidos”. Não se coloca como envolvido, mas como alguém que participou do lado de fora dos conflitos, apenas consumando a restauração da ordem, por meio das ordens que recebeu e que emitiu. O ofício de Torres suscita algumas questões, primeiramente a necessidade de registrar, por escrito, uma justificativa de suas ações. É uma espécie de prestação de contas: recebeu uma ordem e cumpriu-a, embora sem deixar claro como, pôs fim ao conflito. Sobre a ordem que recebeu do Capitão Felix Amorim, não há registro próprio nos autos. Apressa-se em dizer que as praças foram feridas e que trouxe dois polacos presos, juntamente com uma espingarda que apreendeu. Enumera os nomes das praças envolvidas e suas patentes248. Praças feridas, polacos presos. Eis a síntese da qual se deduz que os polacos, para Torres, foram os culpados pelo incidente, inclusive porque portavam uma arma, de caça. Nada diz sobre se houveram mortes ou sobre como foram feridos os polacos. Foi “com sacrifício” que conseguiu tirar dali as praças. Enfim, o Alferes Francisco Corrêa Torres tomou ciência da existência de um conflito que envolvia seus subordinados, recebeu ordens de seu superior para apaziguá-lo e fez o que era de se esperar que fizesse naquela fria madrugada de domingo, após uma festividade religiosa que terminou em pancadaria: reestabeleceu a ordem. Ao longo das investigações, o Alferes Torres mudou o tom de seu discurso em relação às praças. Inicialmente um tanto cuidadoso, buscava livrá-las, tirá-las da confusão, vai-se tornando mais acusatório (os soldados, em sua maioria, apontaram Torres como o maior responsável, já que teria ordenado a reabertura dos conflitos), ou seja, em um dado momento 247 Os dois presos foram Gregório Hass e Carpy Muzca, conforme depoimento que Gregório prestou em 27 de outubro de 1900, registrado à fl. 62 do PC/1900/General Carneiro. 248 Apenas o nome do Soldado José Freire não foi citado.

162

a defesa inicial perde sua dimensão, pode-se dizer, corporativa e segue uma dinâmica mais individualizada, uma lógica do “cada um se vire como puder”. O corporativismo institucional será observado na forma como se darão os julgamentos, tanto na esfera militar quanto na civil, em que nenhum dos réus foi condenado249. Note-se que, ao chegarem ao destacamento, nenhum soldado foi preso e Torres não deu nenhuma queixa contra eles250. Segundo Peter Beattie (2009, p. 243), “Oficiais e praças geralmente viviam próximos uns dos outros e estabeleciam laços íntimos. [...] As relações entre oficiais e praças nem sempre eram degradadas.” Ao longo dos autos, aparecem expressões que atestam as constatações do autor. Na defesa que apresentou ao Conselho de Guerra (anexa), por exemplo, o Cabo Herculano defendeu a atitude do Alferes Torres; afirmou que se colocou ao seu lado com o intuito de protegê-lo e condenou as praças que se esconderam. A testemunha Francisco Pawlichen afirmou, em depoimento prestado em dezembro de 1900, que ouviu os soldados dizerem “Vamos tirar a polacada para fóra, porque agora está ahi o alferes.” Felix Amorin soube que houve ferimentos e uma morte de polacos por Gregório Hass e Carpy Muzica, os que foram conduzidos ao xadrez. A atitude do capitão em proceder aos exames demonstram as reais proporções e o caráter de gravidade atribuído ao ocorrido, contrariando o tom de certa tranquilidade com que Torres descreve seu desfecho, em que apontou tudo como aparentemente solucionado. Pergunta-se em que momento Torres teria redigido o documento? Se assim que regressou ao destacamento, prestando contas ao seu Diretor, ou após as averiguações de Félix Amorin. Seja como for, nota-se a urgência do Alferes em justificar-se e a do Capitão em resolver as coisas, levantando os culpados, já que era responsável maior pelo destacamento, encontrando-se acima da autoridade de Torres. Essa urgência nos encaminhamentos dados pelos dois oficiais também deveram-se ao que se encontrava previsto no RPCM. Os artigos 34, 39 e 59 do regulamento estabeleciam 249

“O último critério profissional discutido por Huntington [em O soldado e o Estado] diz respeito ao caráter corporativo do oficialato. Entendido como uma profissão pública burocratizada, organicamente o oficialato é mais que o simples braço armado do estado, mas constituem um grupo social autônomo. A estrutura corporativa do corpo de oficiais inclui não apenas a burocracia oficial, mas também sociedades, associações, escolas, publicações, costumes e tradições. O mundo profissional do militar tende a abranger uma proporção mais alta de suas atividades cotidianas que o exigido por outras profissões. Isso porque, de maneira geral, o militar vive e trabalha longe do restante da sociedade e em espaços de socialização distintos, como por exemplo, os quartéis. Nesse sentido, é provável que ele tenha menos contatos não-profissionais que em outras profissões.” (MANCUSO, 2005, op. cit., p. 10). 250 Cf. depoimentos de Sebastião Bento Thomaz do Nascimento e Alfredo José Ribeiro, prestados em 10.04.1901, fl. 161 do PC/1900/General Carneiro.

163

que todo militar, no exercício de suas funções, que viesse a tomar conhecimento de algum crime militar (cometido por militares ou paisanos, sujeitos aos tribunais militares), diretamente ou por meio de seus subordinados, deveria tomar as providências para a apuração do crime e formação de culpa. Se lhe faltasse competência ex-officio (“por ofício”, por obrigação do cargo que ocupa) para ordenar a formação da culpa, deveria comunicar um seu superior competente para isso (oficiais competentes eram os que estavam investidos de atribuições policiais militares, art. 39). Ou seja, tratava-se de “um autêntico dever jurídico de agir” (ASSIS, 2009, p. 6)251. O poder de polícia dos militares (artigos de 33 a 38) seria exercido por Ministros e Secretários de Estado dos Negócios da Guerra ou da Marinha, estes exercendo a “Suprema Polícia Militar” (art. 34), e por chefes de quartéis generais do Exército ou da Armada; comandantes de distritos militares; comandantes de tropa reunida para exercícios, manobras, observação ou outro qualquer fim; comandantes de divisão, brigada ou forças operando isoladamente; inspetores dos arsenais da Marinha e diretores dos arsenais de guerra; comandantes das escolas militares; comandantes de corpos arregimentados do Exército ou da Armada; comandantes de fortalezas de primeira ordem (art. 35); diretores de hospitais, escolas e estabelecimentos militares e comandantes dos destacamentos e fortalezas (art. 36). O Capitão Felix Amorim estava obrigado, pelo art. 59, a comunicar o crime ao comandante do 5º Distrito Militar, da forma como fez por meio do telegrama; e o Alferes Torres, tendo ciência disso, apressou-se em oficializar sua justificativa, antecipando, como se disse, uma defesa em que prenuncia os provocadores da confusão, como deixará mais claro, especialmente na defesa que apresentou ao CG.

251

“Art. 34. Aos Ministros e Secretarios de Estado dos Negados da Guerra ou da Marinha, exercendo a suprema, policia militar, em nome do Presidente da Republica, compete: § 1.° Informar-se directamente, ou por intermedio de seus subordinados, o reunir documentos, mandando proceder a qualquer averiguação para descobrimento dos criminosos, quando tenham noticia de algum crime praticado por militar, ou paisano sujeito aos tribunaes militares. [...] Art. 39. Todo o oficial do patente, e de qualquer posto ou graduação, quo estiver investido do attribuições policiaes militares, seja em virtude do proprio cargo, seja por delegação, logo que, por qualquer meio, chegue ao seu conhecimento a noticia de algum crime militar, procederá ás necessarias diligencias para verificação da existencia do mesmo crime, na fôrma do artigo anterior. [...] Art. 59: Todo o militar que, no exercicio de suas fuucções, vista de documentos, descobrir a existencia de algum crime, cuja punição caiba aos tribunaes militares, quando faltar-lhe competência para ex-officio mandar formar culpa contra o indiciado criminoso, é obrigado a participal-o [sic] ao superior militar a quem assista o direito de providenciar a respeito. Paragrapho unico. Toda a autoridade militar competente, logo que tiver noticia da existencia de algum crime militar, deverá expedir ordem para a formação da culpa contra o indiciado.”

164

Transcorreram poucas horas entre o término dos ataques (cerca de três horas da madrugada, segundo Torres) e a produção dos exames de corpo de delito252 que revelam a brutalidade das agressões praticadas pelos militares. O falecido Estephanio Mikilita recebeu ferimento profundo na testa e em outras partes do corpo, feitos com instrumento cortante; ferimento na virilha por arma de fogo, que pareceu aos examinadores ter sido provocado por mosquetão Mannlicher, “pelo pequeno diametro que apresenta e ainda, por ter atravessado de outro lado onde se vê o mesmo [sic] diametro correspondendo a um centimetro”; ferimento por arma de fogo no ombro esquerdo e no braço direito; e contusões na cabeça provocadas por pancadas de madeira. Caso trágico também foi o do menor Lucio Laskovsky253, que morreu no dia seguinte. Foi ferido profundamente na perna esquerda, junto ao joelho, com arma de fogo, ficando a perna “quase que separada do resto do corpo”, ferimentos considerados, pelos examinadores, “de maior gravidade atento a idade da criança”. Carpy Muzica recebeu um ferimento de arma de fogo de “alguma gravidade [...] apresentando pouco diametro”, acima do fígado, “do lado oposto”. Gregório Hass foi ferido com pouca gravidade, na cabeça, pernas e braços, por instrumento cortante; e a vítima Onofre Orodesky recebeu dois ferimentos por arma de fogo na perna direita, de pouca gravidade.254 O telegrama do Capitão Antonio Félix de Souza Amorim, engenheiro militar encarregado das obras da Comissão, foi emitido em 13 de junho: Urgente Ao Sr. Commte. Districto Ctyba. Tendo havido grande conflicto entre maior parte destacamento e colonos Polacos aqui residentes, resultando morte um destes, causada por pontaços de arma perfurante e cortante e balaço de arma manulicher além de mais dois casos de ferimentos dos mesmos casos que julgo gravissimos e de dois outros casos de ferimentos leves em praças do contingente e parecendo pelo 252

“Art. 67. A prova material do crime verifica-se por meio do corpo de delicto (Arts. 38, lettra a, 40 a 52).” Os artigos de 40 a 52 tratam dos detalhes de procedimento dos exames. 253 Denominado no exame de Luiz, e de Leocádio nos depoimentos de algumas testemunhas, o irmão Wasco referiu-se ao menino pelo nome de Lucio. É possível que alguma dessas formas de se referir ao menino seja uma abreviação carinhosa ou mais familiar, como era costume em países da porção oriental da Europa. 254 Os exames apresentam as informações de forma simples, não obedecendo à metodologia de exames padrão da época, em forma de quesitos: 1. Se houve lesão corporal; 2. Que espécie de instrumento a ocasionou; 3. Se a natureza da lesão pode produzir incomodo que inabilite paciente ao trabalho por mais de 30 dias, mas não para sempre; 4. Se da lesão resultou ou pode resultar mutilação, deformidade ou privação de algum órgão ou membro que impossibilite o ofendido de exercer para sempre o seu trabalho; 5. Se das lesões resultou ou pode resultar enfermidades incuráveis que prive para sempre o ofendido de exercer seu trabalho; 6. Se pode a lesão, por sua natureza e sede, ser causa eficiente da morte; 7. Se a lesão foi ocasionada por imprudência, negligencia ou imperícia na arte da profissão do acusado. (Extraído do Inquérito Policial Militar em que foi réu o paisano Antonio José Ferreira, que, em 24 de outubro de 1900, atirou no Cabo d’Esquadra Oscar Antonio da Fonseca, na Colônia Militar do Chapecó, em Xanxerê, IPM/1900/Colônia Militar do Chapecó).

165

inquerito summario que abri haver culpabilidade do commandante do contingente Alferes Torres a quem incumbi de apasiguar a desordem. Peço vos digneis mandar com urgencia que julgardes necessaria officiaes que possão fazer inquerito policial militar visto eu estar sosinho, só tenho como auxiliar um official, que alem de ser meu irmão é mais moderno255 que o commandante contingente. Proprio leva este telegramma espero outro em que V. Ex. dará vossas ordens. Jangada 11 de junho. Assig: Capm. Amorim. Delegado Engenheiro.256

O conteúdo do telegrama, o primeiro relato elaborado por alguém que não participou dos conflitos, mas que vivenciou de alguma forma o calor inicial, acompanhando seu desenrolar logo na sequência, inclusive por meio do contato direto com as vítimas, oferecenos uma feição mais ampliada dos fatos, confirmando as dimensões já notadas nos exames de corpo de delito. O diretor do destacamento considerou “gravíssimos” os ferimentos e a morte ocorridos. Para Torres, uma ocorrência rotineira, em que a ordem ameaçada por paisanos, no caso, polacos, foi reestabelecida. Para Felix Amorim, um grave incidente em que o oficial enviado para restabelecer a ordem parece culpado de ter fomentado os desentendimentos já iniciados, resultando em mortes e ferimentos o ataque que comandou. Vejamos o que dizem os demais atores.

4.2.2 Os demais atores do drama: soldados, testemunhas e vítimas Analisemos agora os depoimentos257, deixando que falem as demais personagens do drama, praças e testemunhas, cujas declarações nos ajudam a pensar uma dinâmica relacional mais profunda, que extrapola o momento da crise que resultou nos crimes. O processo de investigação constitui-se de ricos momentos marcados pela tensão do encontro entre sujeitos procedentes de lugares – físicos e sociais – de extrema diversidade.

255 Trata-se de João Fleury de Souza Amorim, que, durante o Conselho de Guerra, prestou depoimento a pedido do Alferes Torres. Felix Amorim também manifestou a preocupação pelo fato de ser este oficial mais moderno que o comandante do destacamento, ou seja, ter ingressado após o comandante Torres, tendo, portanto, menos tempo de carreira militar e estando impossibilitado de atuar no inquérito. 256 Uma folha do telegrama perdeu-se, o que se nota mesmo em traslado feito posteriormente, a transcrição termina em “meu irmão”. O fragmento faltante no telegrama – “[...] mais moderno que o commandante contingente. Proprio leva este telegramma espero outro em que V. Ex. dará vossas ordens. Jangada 11 de junho. Assig: Capm. Amorim. Delegado Engenheiro.” – é encontrado à Fl. 131, onde há uma cópia, feita por ocasião da instalação do Conselho de Guerra. 257 Após uma sequência de documentos que encaminharam as investigações, os autos trazem os interrogatórios dos indiciados e das testemunhas.

166

Os interrogatórios começaram com os indiciados, seguidos das testemunhas, conduzidos pelo Major Antonio Gonçalves Pereira, com base nas informações constantes do telegrama de Felix Amorim, o documento oficial que ofereceu a denúncia. Reproduzimos aqui o conteúdo dos depoimentos na proporção em que servirem aos nossos propósitos de análise. O primeiro interrogado foi o Alferes Francisco Corrêa Torres258. O depoimento, em relação ao ofício que encaminhou ao Capitão Fellix Amorim, mantém-se praticamente inalterado em termos de como relatou suas próprias ações. Em relação ao que se passou no local dos conflitos, o Alferes faz uma narrativa dramática, de que não conseguiu aproximarse, dada a agitação reinante entre praças e polacos, senão somente próximo das três horas e que, antes disso, esteve ancorado259 em um barranco, para se abrigar e não ser atingido. Esse efeito de dramaticidade, que irá acentuar-se ainda mais nos próximos depoimentos, foi uma forma insistente usada pelo Alferes para afastar o foco de suas próprias ações, uma tentativa de minimizar seu grau de responsabilidade pelas mortes. Foi interrogado sobre como explicava a presença de praças no local dos conflitos, armadas e por ordem de quem, e respondeu que só Sebastião, por ordem sua, foi armado, a fim de garantir-se de alguma agressão, mas que, ao chegar ao local dos conflitos, desatendeuo em suas ordens e juntou-se também ele ao conflito. A arma com que armou Sebastião este teria passado ao Cabo d’Esquadra Marcelino, o autor dos disparos. A versão de Torres é de que, ao chegar ao local solicitado, praças e polacos lutavam e a praça Liberino achava-se ferida. Sobre as mortes, soube depois, apenas por ouvir dizer, mas admitiu que havia um ou dois polacos feridos pela arma com a qual armou Sebastião. Segundo os demais indiciados, cujos depoimentos são mais breves e defensivos, de retorno da festa religiosa ocorrida em General Carneiro, um grupo de cerca de quatro praças bateu à porta da casa de Estephanio Mikilita com o objetivo de pedir água, sendo recebido a pauladas e garrafadas. Aproximaram-se outras praças que também retornavam da festa e se juntaram aos primeiros com o fim de apaziguar a briga, mas, como foram agredidos pelos polacos, afastaram-se; nisso chegaram ainda mais praças, que aumentaram mais o grupo. 258

Francisco Corrêa Torres é filho de Francisco Antonio Torres, natural do Rio Grande do Sul, com 30 anos de idade. 259 Aqui a palavra certamente toma o sentido figurado de local onde os indivíduos estavam escorados, escondidos. Talvez essa expressão denuncie um passado socioprofissional na atividade da pesca ou da navegação (fluvial ou marítima) (SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portuguesa. Tomo 1 e 2. Rio de Janeiro: Oficinas da S. A. Litho-Litotipographia Fluminense, 1922, p. 131. Edição fac-símile da 2ª edição, de 1813, sendo a 1ª edição de Lisboa, Officina de Simão Thadeo Ferreira, em 1789).

167

Mantiveram-se afastados da casa cerca de 500 metros, próximos de uma ponte, de onde partiram os Soldados Sebastião e João Antonio para chamar o Alferes Torres. Quando Torres chegou, juntamente com os que foram chamá-lo, encontrava-se Sebastião armado de mosquetão, e Torres ordenou que atacassem e prendessem os polacos. Ao aproximarem-se da residência, cumprindo a ordem de Torres, foram novamente recebidos com pauladas, pedradas, garrafadas e tiros. Nenhum assumiu a autoria dos disparos ou que portasse alguma arma de fogo, apenas cacete (sic) e cabo de arrear. Tito Correia de Mello e José Freire afirmaram que viram a casa de Mikilita sendo invadida por Alfredo e João Antonio, e que Herculano lançou fogo de uma janela para o seu interior, com o mosquetão; sobre as mortes dos polacos, todos afirmaram só tomar conhecimento no dia seguinte. Os soldados apontaram para Torres como o grande responsável pela continuidade dos conflitos. Alfredo José Ribeiro afirmou que o Alferes, ao chegar, deu ordem de “avançarem e fazerem fogo”. Liberino Paulo da Costa disse que Torres, “de chegada, mandou que todos seguissem a fim de prender os polacos” e Herculano, apontado por quatro depoentes como o autor dos disparos, afirmou que Torres “relutou para que abandonassem a lucta”, o que só aconteceu depois de haver “naturalmente muitos feridos”. José Freire também evocou uma hierarquia e disciplina inquestionáveis quando afirmou que o Comandante ordenou-os que “pegassem os polacos a unha”. As testemunhas afirmaram que houve uma pausa e que os soldados voltaram depois, acompanhados de Torres, e o próprio Alferes admitiu, no Conselho de Guerra, que ficou receoso de não ser atendido em sua autoridade. O Alferes Torres foi novamente interrogado, em razão de que Sebastião sustentou ter recebido somente o mosquetão, sem munição, e que, ao chegar ao local, devolveu-lhe a arma. Torres afirmou que “entregou o mosquetão competentemente carregado e que não duvida que Sebastião tivesse mais munição porquanto, munição desse caráter aqui no Jangada não é difícil de se conseguir”. O interrogador, Major Antonio Gonçalves Pereira,260 também solicitou maiores esclarecimentos ao Capitão Felix Amorim, que basicamente reproduziu as informações constantes do telegrama que encaminhou ao 5º Distrito. 260

Foi reformado em 19.01, por decreto: “É com bastante pezar que esse commando, como todos os companheiros de guarnição, vêm [sic] retirar-se do serviço activo do exercito tão distincto camarada, que durante os longos anos de sua carreira, sempre salientou-se como militar valente e disciplinador, espirito de justiça e camaradagem, defensor da patria desde os campos de Paraguay, e das instituições legaes ate os ultimos movimentos internos, em todos os serviços revelando-se um soldado digno de ser imitado, pelos seus exemplos de bravura, zelo e disciplina.” (A notícia, Curitiba, ano, 2, n. 67, 26 jan.1906. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014). Serviu de juiz no processo de João José da Silva Lima o Soldado de seu regimento (A República, Curitiba, ano 14, n. 88, 20 abr. 1899. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014).

168

Essas primeiras narrativas descreveram brevemente a primeira aproximação das praças à residência de Mikilita (primeiro conflito), mas a atenção é centrada no segundo conflito. A chegada de Torres marca o reinício, seu momento mais tenso, que resultou nos assassinatos e fez com que as provocações das praças aos polacos perdessem visibilidade e importância, voltando a interessar apenas depois, nos Conselhos de Investigação e de Guerra. Duas questões que emergem desses primeiros depoimentos assumem importância central em nossas reflexões: a primeira é a contradição mais evidente entre os depoimentos do Alferes e os dos Soldados, quanto à continuidade ou reinício dos conflitos, que nos direciona à reflexões sobre as relações de poder no interior das fileiras, que perpassam por noções de autoridade, hierarquia e disciplina, como eram concebidas à época; e a segunda diz respeito ao porte e uso de armas por parte dos soldados. Outra contradição que aparece nos depoimentos diz respeito à reação de Torres ao ser comunicado da ocorrência dos conflitos: segundo ele próprio, consultou o diretor Felix Amorim e, por ordem deste, partiu com o propósito de apaziguar o conflito. As praças João Antonio e Sebastião disseram que primeiramente Torres armou Sebastião e só depois dirigiuse à residência de Felix Amorim, o que indica que apenas teria comunicado seu superior ou, ainda que solicitasse autorização, já premeditou o que faria em seguida. A documentação vai expondo um oficial impulsivo e impetuoso. O comunicado do ocorrido ao Alferes Torres foi ordenado pelo Cabo Herculano, segundo ele próprio, e pelo Anspeçada José Freire, segundo Sebastião; seja como for, o Cabo Herculano e o Anspeçada José Freire eram, na ordem hierárquica, praças graduados e os responsáveis maiores pelos demais até a chegada de Torres. Assim como Torres se justifica evocando uma rotina em que se respeitam hierarquias e se cumprem normas e ordens, os demais também a evocam, já que, segundo eles, embora estivessem aguardando o Alferes, afastados da casa, receberam uma ordem; e cumpririam qualquer ordem que lhes fosse dada, segundo Sebastião Bento Thomaz do Nascimento. O respeito à hierarquia e obediência evocadas nos depoimentos – embora não fosse uma atividade propriamente militar, assim foi conduzida – demonstram o quanto essas noções encontravam-se impregnadas na cultura militar. A violência empregada nos ataques, confundida com o uso que podiam fazer da força enquanto uma atribuição legal, as mortes e danos causados aos camponeses perdem visibilidade e importância diante da necessidade de justificarem-se os fatos na perspectiva do cumprimento (ou não) de suas regras.

169

Os depoimentos das praças fazem eco à postura dos oficiais, no telegrama e no posterior relatório emitido pelo Major Antonio Gonçalves Pereira, de que Torres foi chamado para apaziguar o conflito e concitou-os a atacarem. Embora não acuse diretamente Torres, Herculano explica que, ainda que o tenham chamado – o que de certo modo não justifica inteiramente seus atos, já que tiveram a possibilidade de retornar ao destacamento e tudo teria terminado aí –, as mortes foram somente o resultado de excessos cometidos dada a insistência de Torres em se manter no local, lutando contra os polacos. Essas relações de poder, permeadas por questões de autoridade, hierarquia e disciplina, serão analisadas mais detalhadamente nos próximos capítulos. A questão do porte e uso de armas traz em sua esteira a discussão sobre o comportamento esperado dos soldados em seus momentos de folga, e sobre em que medida as atitudes propriamente militares, exigidas nos quartéis e acampamentos tinham continuidade nesses outros momentos e espaços. Segundo Peter Beattie (2009, p. 295),

Os comandantes tinham o cuidado de trancar as armas de fogo quando os soldados estavam de folga, momento em que ocorria grande parte dos crimes violentos. O uso prevalente de navalhas indica que muitos praças preocupavam-se em andar armados por motivos de autossegurança.

Para Torres, as armas de uso do destacamento encontravam-se acessíveis, ao menos no destacamento de Jangada, o que significaria um fraco controle sobre o uso de armas e munições. É óbvio que a afirmação do Alferes pode estar associada às estratégias de defesa que foi construindo, como se percebe em relação aos termos com que se referiu aos soldados. Na parte que deu inicialmente, assegurou tê-los defendido da fúria dos polacos, mas em seguida classificou-os como exaltados e insubordinados, que se apropriam de munição do acampamento, expressões que revelam a maneira como os soldados eram encarados e tratados pelos oficiais do Exército. Sua postura vai-se tornando mais ofensiva a cada vez que se pronuncia, como num crescendo, chegando ao ápice na defesa que apresentará ao Conselho de Guerra, quando “abre o verbo” e manifesta forte preconceito racial, especialmente em relação aos polacos. Há grande cuidado em livrar-se da acusação de que portassem ou fizessem uso de armas, especialmente o citado mosquetão. Além da associação mais direta às mortes, é claro, é possível que, embora fossem militares, não tivessem autorização para andarem – fora de serviço – armados, mesmo com armas brancas.

170

O porte e uso de armas no Brasil, questão recentemente levada a plebiscito, é uma preocupação que remonta ao período colonial. As Ordenações Filipinas continham tópicos que regulamentavam o uso de armas de fogo e brancas. Inúmeras outras leis dispuseram sobre a regulamentação ao longo do século XVIII. Para o historiador José Eudes Gomes (2011?),

Não deixa de ser irônico considerar que uma explicação para a publicação de tantas leis era justamente a grande dificuldade em fazer com que as já existentes fossem efetivamente cumpridas. Por conta do número insuficiente de soldados pagos pelo rei, a participação de tropas de homens armados – inclusive índios e escravos – sob o comando de poderosos locais era indispensável para garantir a conquista de novas áreas, o combate a índios, a destruição de quilombos, a repressão de revoltas e a manutenção da ordem estabelecida. Isso tornava as dificuldades de fiscalização e controle por parte das autoridades certamente enormes, o que se somava ainda às grandes dimensões do território e à crônica escassez de funcionários.

Para o autor, o direito de uso de cada tipo de arma dependia diretamente da qualidade social do indivíduo, o que equivale a dizer que eram em si instrumentos de prestígio e distinção, marcando e reproduzindo diferenças sociais, uma realidade que se estendeu ao longo do Império e da República. O uso mais ou menos comum ou frequente de armas foi constantemente associado, especialmente nas áreas interioranas, pela necessidade de defesa em áreas inóspitas, devido à presença de populações indígenas tapuias (insubmissas), animais ferozes e toda sorte de perigos. Nas terras que corresponderam à Zona Estratégica, o uso de armas de fogo entre a população local foi considerado acima da média por Wenceslau Breves, que visitou a região nos anos 1920, no caso do revólver ou pistola, como um “luxo a que se davam ao direito” (BREVES, 1985, p. 23). O revólver, mais caro, era privilégio dos mais afortunados, ao passo que os mais pobres possuíam armas de carregar pela boca. A espingarda e a Winchester aparecem em segundo lugar na categoria das armas de fogo comumente utilizadas261.

261 No ano de 1887, o Soldado Manoel Pereira da Silva Carneiro foi morto com revólver do sistema Gerard. A versão aceita pela Justiça foi de que o Soldado suicidou-se. PC/1887/Porto União. “O Gerard, apesar de não ser incomum em coleções particulares e de ter sido comprado em grandes números, é uma arma particularmente desconhecida – e não só no Brasil. Poucas vezes aparece na literatura nacional – e ainda menos na internacional, onde é praticamente ignorado, a não ser por algumas obras muito especializadas. Supõe-se que o autor seja o mesmo armeiro francês que trabalhou na equipe de Le Mat, que desenhou um famoso revólver na década de 1860, mas não temos condições de ter certeza sobre isto. O que se sabe é que uma pequena partida (100 armas apenas) foi comprada em 1873, diretamente do armeiro na França, entrando em serviço limitado: era usado apenas em escolas e por oficiais em missões especiais nas fronteiras e interior do país. O seu sistema era conhecido como de ‘tiro contínuo’, ‘de repetição’ ou ‘ação dupla’: apertando-se o gatilho, o tambor girava e o cão era armado, até este ser liberado para percutir a espoleta do cartucho, o processo continuando enquanto o gatilho fosse acionado. Isso dava ao oficial uma grande cadência de fogo mas, em compensação, não facilitava a

171

Os processos consultados para este trabalho, bem como para a elaboração de minha dissertação de mestrado, trazem inúmeras evidências do uso indiscriminado de armas. Nas fotografias a seguir, observam-se indivíduos expondo e ostentando armas, como se fossem um elemento constitutivo da própria indumentária, assim como o chapéu e o lenço. Na primeira fotografia, produzida no ano de 1958, em Guatambu (SC), pode-se observar nitidamente pistola e faca à cintura dos dois sujeitos retratados. Trata-se de um momento de recreação, em que fazem questão de exibir a bebida e as armas, portar armas era uma maneira de fazer-se respeitar e demonstração de coragem. Boa parte dos crimes analisados na dissertação a que me referi ocorreu em momentos de diversão, como bailes, corridas de cavalo, ou em casas de prostituição.

Figura 4 – Indivíduos portando armas na cintura

pontaria. Para o tiro mais preciso, era possível armar o cão manualmente, apontar arma e só então se apertando o gatilho para executar o tiro.” ().

172

Fonte: Marquetti, op. cit., p. 106

Em outro processo, de dezembro de 1952, realizou-se uma churrascada no lugar denominado Pedreira, próximo de Chapecó, onde o acusado e mais alguns soldados de um destacamento local teriam praticado um exercício de tiro ao alvo, o qual acabou por fazer uma vítima de morte. As armas de fogo mostram-se de fácil alcance, inclusive a mulheres e crianças.

Figura 5 – Indivíduos exibindo armas em festividade I

173

Fonte: Marquetti, op. cit., p. 104

Nessa outra foto, juntada ao mesmo processo, ao fundo, as gaitas e violões parecem contrastar com as armas apontadas pelos que estão no primeiro plano, tornando-se objetos que faziam parte do “espírito recreativo” do momento. Aqui também armas e garrafas são objetos que demonstram orgulho dos retratados, que posam como personagens de uma representação.

Figura 6 – Indivíduos exibindo armas em festividade II

174

Fonte: Marquetti, op. cit. p. 105

As fotos de ambos os processos retratam a situação de ruralização da região na década de 1950, e os núcleos urbanos ainda eram escassos. Região fronteiriça e de demarcação tardia de limites, com forte presença de militares armados – Comissão Estratégica, colônias militares de Chapecó e Chopim – e de atividades extrativistas por vezes clandestinas de erva-mate e madeira, compõe um cenário de disputas econômicas e por projeção e posição social, em que as armas foram-se constituindo como espécie de suporte, garantia de segurança e empregadas em negociações que refletem as relações de poder que perpassavam por todos os estratos sociais. O jornal curitibano A República, no início dos anos 1900, traz uma correspondência assinada por Demócrito262, de Porto da União, em que apresenta um quadro caótico de violência às margens do Iguaçu, o que, segundo o autor, deveu-se à questão de limites com Santa Catarina, onde os bandidos se apresentavam com armas de “primeira ordem”, como Comblain, Chassepot, Winchester, Mannlicher e outras.263

262

O uso de pseudônimo como assinatura de matérias jornalísticas – aqui no caso o filósofo grego Demócrito – foi usual no Brasil Imperial e na República Velha. Trata-se da garantia de um certo anonimato, através do qual os autores podiam fazer denúncias, criticar e chamar a atenção das autoridades, sem correr o risco de represálias. 263 A República, Curitiba, ano 15, n. 220, 3 out. 1900, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2014.

175

Outra nota que suscita questionamentos sobre a difusão de armas de uso do Exército trata de um telegrama denunciando uma tentativa de saque do depósito de materiais da “extinta” Comissão Estratégica, no rio Jangada, por bandidos dos Campos de Palmas. O comandante do distrito teria providenciado uma força para evitar a retirada das armas que ali se encontravam, aos cuidados de um destacamento composto de “apenas uma praça”264. Ou seja, após a Comissão ter-se deslocado para Iraty, um depósito de armas permaneceu em Jangada, fracamente guarnecido. Marcin Florian Gawrycki, analisando a literatura produzida por poloneses em viagem ao Brasil, destaca a obra de Jerzy Ostrowski, que esteve nas colônias de imigrantes, em termos das comparações que esse autor fez com outros países que conheceu, onde identificou três ou quatro formas de resolver conflitos, sendo que a do brasileiro consistia no uso imediato de uma arma. Ostrowski teria ficado impressionado com a forma de solucionar conflitos por meio do emprego de armas, principalmente entre a população masculina: “No caso de alguma ofensa, a resposta imediata é um tiro, e o assunto está resolvido. Todos usam uma arma, de modo que a probabilidade de um tiroteio é muito grande.” (Apud GAWRYCKI, 2010, p. 65). Entre as personagens do processo judicial dos crimes de 1900, identificam-se certo conhecimento e familiaridade com as armas, observadas entre os que procederam os exames de corpo de delito e também no caso de Estephanio, vizinho das vítimas, que reconheceu os pentes da carabina usada na noite dos crimes em depoimento prestado ao Conselho de Investigação. O porte de armas, mesmo considerado ilegal, era largamente usado, tornando-se elemento constitutivo da cultura local. Evitando generalizações, tais informações apontam para um evidente descontrole na circulação de armamentos, o fato de andar desarmado certamente colocava os sujeitos em condições desiguais, como a que se encontrou o soldado Benjamim Genesio Dorotheu, que afirmou não ter tomado parte no conflito por achar-se completamente desarmado. O Alferes Torres afirmou que o facão é uma arma de uso comum entre os soldados, principalmente os que acampam em serviço de estradas, isso demarca a situação de uma região que estava sendo desbravada, com a iminência do perigo. Sendo o facão um

264

A República, Curitiba, ano 17, n. 29, 5 fev. 1902. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2014.

176

instrumento de trabalho, no caso das estradas, isso ajuda-nos a compreender a condição em que se encontravam as praças na noite dos crimes, quase todas armadas com facas e facões. Quanto ao uso do mosquetão e aos tiros disparados, causa maior das duas mortes e dos ferimentos diversos que desencadearam as investigações – a criação do fato jurídico –, um levantamento preciso, em tese, ajudaria os investigadores a esclarecer melhor ou identificar quem foi(ram) o(s) autor(es). As mais acentuadas trocas de acusações ocorreram entre Torres – que admitiu ter armado Sebastião, e que este, ao chegarem ambos ao local, passou a arma a Marcelino – e Sebastião, que incriminou Marcelino, que seria o autor dos ferimentos de arma de fogo. Marcelino afirmou que Herculano é que deu os tiros. Benjamim, Tito e Marcelino afirmaram ter visto Herculano atirar, e José Freire ainda acrescentou que Herculano atirou pela janela da casa. Enfim, a autoria dos disparos foi atribuída ao Alferes Torres e aos cabos Herculano e Marcelino. O depoimento do Cabo Herculano é o mais detalhado, sendo o maior responsabilizado pelos tiros pelos demais – inclusive pelas testemunhas, como se verá nos depoimentos em seguida – sentiu-se em maior necessidade de se inocentar. Quanto às armas brancas, apenas Liberino admitiu portar facão, embora tenha afirmado não ter tomado parte nas lutas em função de que perdeu os sentidos (dado atestado por outros depoimentos); todos os demais apenas disseram ter visto outros armados de facas ou facões e, no máximo, admitiram portar cacete e cabo de arreada. Ninguém se pronunciou sobre um revólver que Torres portava, informação que só começou a aparecer nos depoimentos das testemunhas. As contradições expressas nas declarações se tornam compreensíveis, como seria de se esperar, em se tratando de tentativas de defesa, e mesmo porque, embora outros nomes tenham sido citados (um paisano de nome Messias, e dois soldados de nome João Alfredo e Theodoro), os conflitos resultaram, no total, em 11 militares indiciados. Embora alguns tenham afirmado não ter participado diretamente das lutas travadas, há que se considerar que o volume de praças envolvidos nos ataques é significativo e que, diante do quadro final, todos os esforços de livramento da culpa fossem empreendidos.

Passemos aos depoimentos das testemunhas. Transcorreram 15 dias desde os crimes até que as testemunhas fossem ouvidas pela primeira vez, em juízo, nos dias 26 e 27 de junho,

177

em Jangada, sede da Comissão Estratégica, sob a direção do Major Antonio Gonçalves Pereira. As testemunhas que depuseram na Justiça Militar compõem um corpus heterogêneo, constituído dos polacos (Anastácia Mikilita, Serafina Mikilita, familiares do falecido Estephanio, testemunhas informantes265, Nicolau e Francisco Pavlichen, Wasko Laskovsky e Senka Kerella) que estavam na casa e que, portanto, tornaram-se também eles vítimas, seja física, seja moralmente. Além desses, depuseram mais dois vizinhos de Mikilita, polacos, que não estavam na casa mas interferiram no ocorrido: uma jovem moradora local (Marconisa da Fonseca) que acompanhava as praças e presenciou parte dos conflitos, do lado de fora, sem tomar parte diretamente, e outro jovem, polaco (Bazílio Invarycz), que não tomou parte nos atritos, mas foi agredido pelas praças, momentos antes de sua ocorrência. Os depoimentos constroem uma versão que se aproxima, em linhas gerais, de aspectos da versão básica tecida pelas praças. Por volta de 22 horas, encontravam-se na residência de Estephanio Mikilita, além de sua família, outros seus patrícios, moradores das colônias próximas que voltavam da festa religiosa e ali pernoitavam; mulheres e crianças dormiam na casa, os homens em um paiol (rancho) próximo. As famílias camponesas foram despertadas pelo barulho de batidas à porta e as mulheres, assustadas, gritaram que estavam sozinhas na casa, mas as batidas tornaram-se mais insistentes e a porta foi forçada. Os homens, ouvindo o barulho, saíram do paiol em defesa das mulheres, e foram em direção à casa, onde travou-se a luta, que resultou em ferimentos de ambos os grupos. Os soldados afastaram-se e, passadas algumas horas, julgando as famílias de polacos que tudo estava calmo, foram novamente surpreendidos com a aproximação das praças, agora acompanhadas do Alferes Torres, que atacaram novamente a residência, dando sequência aos conflitos, que terminaram da forma já descrita. Nos depoimentos dos polacos Gregório Hass e Carlos Pomina, prestados no CI, estes afirmaram que, antes do primeiro confronto, houve uma aproximação breve de algumas praças à residência, que pediram água, e que o pedido foi satisfeito.

265

“Art. 78 do RPCM Não poderão ser testemunhas: a) o ascendente, descendente e mulher do indiciado ou réo; b) o parente até segundo gráo; c) o menor. § 1º Poderão, entretanto, ser ouvidas estas pessoas, independente de compromisso ou juramento, sendo reduzidas a termo as informações que prestarem sobre a queixa, denuncia, ou acusação. § 2º Os conselhos de investigação e de guerra darão o credito que merecerem taes informações, conciliando-as com as demais provas dos autos”. “Por isso, apenas em casos especiais, as autoridades recorrem aos depoimentos das testemunhas informantes que, quase sempre, são tidos como suspeitos, contribuindo quase que exclusivamente a nível de detalhe ou confirmação, para a construção das fábulas.” (ZENHA, 1985, p. 130).

178

Destacamos os depoimentos mais detalhados, das familiares de Estephanio, que tentam apontar os culpados de forma mais clara e direta. Anastácia Mikilita, a viúva de Estephanio, com 40 anos de idade, natural da Polônia, colona, residente em General Carneiro, relatou que o Cabo Herculano, os soldados Alfredo, Sebastião e João Antonio da Silva (nomes que, ao final do depoimento, disse conhecer apenas por informação) foram à residência de seu falecido marido, Mikilita, pretendendo falar-lhe e tentaram arrombar a porta da casa. Vieram alguns polacos que estavam num rancho vizinho e travaram luta com os soldados, saindo ferido seu marido, na face, e ainda outro polaco de nome Theodoro. No segundo conflito, os soldados dispararam tiros para dentro da casa, e seu marido foi morto a tiros e ferimentos de facão na luta travada; também morreu um menino em consequência dos ferimentos, e outros quatro polacos ficaram feridos266. A filha de Anastácia e do falecido Estephanio, Seraphina Mikilita, de 15 anos, informou ser criada, moradora “no Jangada”, e natural da Áustria. O depoimento se parece com o da mãe, sendo os nomes das praças igualmente citados. Acrescenta que, no primeiro conflito, um polaco vizinho que ouviu tudo, foi ver o que havia sendo brutalmente agredido pelos soldados (trata-se de Estephanio Pombrowsky, de 60 anos). Mais tarde, quando já estava tudo terminado e eles julgavam-se sossegados, foram surpreendidos por um maior número de soldados que se aproximaram da casa e foram logo disparando tiros, e isso com a “presença do Alferes Torres que ela depoente reconheceu logo na chegada”. Empenhado o conflito, teve somente tempo de ver o Soldado Sebastião armado de facão e o Cabo Herculano armado de um mosquetão Mannlicher, que “naturalmente fora usado porquanto ela depoente ouviu tiros”. Na ocasião, morreu em sua própria casa seu pai Mikilita por ferimentos de arma branca e tiros, e saíram feridos os polacos Onofre, Theodoro e mais dois, de quem ignora os nomes, mas sabe que um deles era um menino, que morreu em consequência de ferimentos dois dias depois do conflito; finalmente, viu o Alferes Torres descarregar o seu revólver para dentro da casa da residência de seu falecido pai. Os depoimentos dos demais, que se encontravam na residência reproduzem, com poucas alterações, o que já foi informado, embora nenhum dos depoentes soubesse o nome dos soldados, tampouco se foram comandados por algum oficial. Wasco Laskowsky, o irmão

266

A depoente citou o nome de um polaco que só aparece uma única vez, Hrejc Chas.

179

do menor Lucio, disse que o carregou para o mato até terminar o conflito e, no dia seguinte, viu Estephanio Mikilita morto e outros feridos. A depoente Marconisa da Fonseca, de 20 anos de idade, solteira, moradora na colônia Jangada, natural do Rio Grande do Sul, acompanhava as praças e disse que por ocasião do segundo conflito retirou-se; voltou mais tarde por curiosidade e já estava tudo terminado.

Das contradições extraídas desses depoimentos sumários dos indiciados – essas outras falas que se somam às do Alferes Torres e do Capitão Felix Amorim nos primeiros documentos analisados –, tem-se o ponto de partida da construção analítica que objetiva desvendar algo acerca das redes de relações que se estabelecem entre esses militares, nacionais, e a população local, especialmente os imigrantes há pouco instalados. Os discursos dos primeiros, confrontados com os depoimentos das testemunhas, propiciam a construção de uma anatomia dos conflitos, percebidos nas condições muito próprias em que se deram, avançando para além do momento de tensão e crise desencadeada pelos assassinatos. Lidamos com lacunas, algumas tornadas mais claras em depoimentos posteriores (serão seis interrogatórios de testemunhas até fim do processo), e com a existência de um impenetrável campo, subjetivo, permeado de comoção, indignação e desejo de justiça. Infelizmente os depoimentos não ficam registrados em toda sua complexidade e riqueza, ou seja, é impossível captar os movimentos dos sujeitos, que também falaram por meio do corpo. Seus gestos, olhares, pausas, as posturas que assumiram, os tons de voz ou sentimentos como medo e raiva ficaram perdidos para sempre, deles só podemos fazer ideia. Teriam muito a dizer, para além das falas registradas; segundo Foucault, “Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos de poder.” (FOUCAULT, 1989, p. 183). Reações dos interrogados a olhares dirigidos pelos interrogadores ou vice-versa, ou mesmo os tons usados pelos interrogadores enquanto faziam as perguntas também teriam algo a revelar, para além dos textos escritos a que temos acesso. Escassas são as falas que se reportam a emoções; exemplo é a declaração da viúva Anastácia, na segunda vez em que depôs, em Curitiba, de que não viu quem eram as praças, dado “à perturbação de espírito em que se encontrava”267. É difícil não se emocionar com certas cenas que compõem esse drama maior, como aquela descrita por Wasco Laskowsky,

267

Fl. 56 do PC/1900/General Carneiro.

180

que diz ter carregado seu irmão menor Lúcio para o mato para protegê-lo, percebendo no dia seguinte que guardava um moribundo. Sobre as impressões que os ataques deixaram nas mentes dos seus personagens ou de indivíduos não envolvidos diretamente, as pistas também são ínfimas (um registro escasso, mas importante, é o que envolveu soldados e o caboclo Antonio, em General Carneiro, em 1905, analisado no capítulo 2). Sobre a morte do garoto, que era de se esperar que alguém fosse interrogado sobre as circunstâncias em que morreu ou algo assim, apenas um dos depoentes, vizinho da família Mikilita, informou que foi em sua casa que o garoto morreu em decorrência dos ferimentos. Wasco perdeu um irmão muito jovem, cuja história parece ter sido condenada, no curso das investigações, a um silêncio constrangedor. Outras cinco crianças estavam na casa, não sabemos suas idades, tampouco como reagiram aos ataques e como permaneceram por mais um ou dois anos convivendo com o Pessoal da Estratégica.

4.3 CONSELHO DE INVESTIGAÇÃO

Após as apurações iniciais e emitido o relatório que concluiu o IPM, instituiu-se um Conselho de Investigação268. Os indiciados foram presos e encaminhados ao 5º Distrito Militar, em Curitiba, onde foram novamente interrogados, e suas declarações tornaram-se mais ofensivas. As testemunhas269 tenderam a recuar e a se dispersar, ou seja, algumas passaram a residir em outras colônias, e os seus interrogatórios ocorreram na sede da Comissão Estratégica, em Jangada, e em Porto União. O Alferes Torres solicitou a reinquirição das testemunhas em sua presença e, por conta disso, parte delas foi novamente ouvida. Anastácia Mikilita e Gregório Hass depuseram em Curitiba, no 5º Batalhão, e as demais, na Colônia Jangada. Lavrou-se, então, a decisão do CI, e as investigações passaram para a competência do CG.

268

O comandante do 5º Distrito, Francisco da Rocha Calado, disse estar impedido de servir como juiz, e foi nomeado Cesar Augusto de Souza Franco, juiz mais moderno que também serviu de escrivão. PC/1900/General Carneiro, fls. 53 e 55. 269 As testemunhas de acusação Anastácia, Serafina, Nicolau, Francisco, Vasco, Senka e Bazilio depuseram novamente, além de mais quatro novas: Estephanio Ponsbrosovsky, Gregório, Carlos e Antonio. Para as testemunhas Anastacia Mikilita e Estephanio, que não sabiam falar português, Rodolpho Pokl atuou como intérprete. Com exceção de Marconisa e Bazilio, todos os demais que testemunharam nesses conselhos militares foram também vítimas dos ataques.

181

A leitura dos depoimentos permite-nos perceber como se construíram as verdades competitivas, os avanços e recuos que marcaram as falas de cada um e qual dos lados foi se fortalecendo. Há poucos registros (nos depoimentos) sobre o que se passou ou como se passou, entre o primeiro e o segundo interrogatório270, entre os polacos e o pessoal da Estratégica, mas é muito provável que tenham havido, no interior dos dois grupos, combinações e tentativas de afinar ou pré-fabricar discursos para novas inquirições. No caso das testemunhas, é possível que empenharam-se em incriminar algum(s) dos indiciados em específico, e, entre os indiciados, a preocupação em livrar-se da culpa e apontar para os “maiores” ou “verdadeiros” responsáveis. Nas malhas sociais entrelaçadas por relações de força e poder, os sujeitos, em suas representações do real, tendem a fazer afirmações que pretendem sejam tidas por verdadeiras. Deve-se ter em conta que, lado a lado com o pronunciamento de verdades, encontra-se um conjunto de falas, gestos e posturas encenadas – as falsidades. Segundo Mariza Corrêa (1983, p. 41), “no momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em versões, o concreto perde quase toda sua importância e o debate se dá entre os atores jurídicos, cada um deles usando a parte do ‘real’ que melhor reforce o seu ponto de vista”. A cada vez que indiciados, testemunhas e operadores do Direito narram o ocorrido, as variações e nuances que utilizam re(inventam) o real. Fragmentos das declarações prestadas (verdadeiras ou não) revelam desavenças, repressão e o que definiríamos hoje como assédio moral especialmente por parte do Alferes Torres, cuja postura vem, desde o início, se mostrando precipitada e truculenta, tanto em relação aos seus subordinados como em relação aos polacos. A testemunha Gregório Hass, por exemplo, afirmou que Torres lhe falou que, “Se soubesse que elle depoente iria contar ao Capitão Amorim, tinha deixado que as praças o matassem quando o conduzião para a cadeia [...]”, e o Soldado Manoel asseverou que no acampamento viu Torres “curar [tratar os ferimentos] os polacos e dizer [a eles] que não dissessem que foi ele que fez os ferimentos”; também reportou-se a ameaças que ele próprio recebeu do Alferes, quando foi intimado a

270

Em 27 de outubro de 1900, na sede da comissão, foi dado andamento ao processo, cerca de quatro meses após o primeiro depoimento. À folha 54 encontra-se oficio datado de 20 de outubro de 1900, dirigido ao senhor Capitão Ignacio Gomes da Costa, assinado por Francisco da Rocha, dizendo que, “não tendo até a presente data comparecido as testemunhas que tem de depor no conselho de investigação a que responde Torres, deveis seguir para Jangada pois, em telegrama de 17.10, o Marechal Chefe do Estado Maior recomendou urgência para o referido processo”.

182

depor: “Torres [...] lhe instigou a não dizer a verdade quando fosse interrogado, ao que respondeu que diria a verdade.” O Alferes Torres continuou a ser apontado como o principal autor dos ferimentos: o Soldado Liberino afirmou que ouviu dizer pela filha de Mikilita que quem atirou foi Torres, e Alfredo afirmou duas vezes ter ouvido Torres dizer que tinha matado um polaco com um tiro de revólver, que no retorno ao acampamento ouviu Torres dizer que “seu revólver não mentia fogo e que tinha morto um polaco”. Essas falas nos aproximam de contatos e diálogos que continuaram a ocorrer entre os dois grupos depois dos conflitos, mas que os papéis não registram (a não ser nesses depoimentos), e nos dão o tom das disputas pela fabricação da verdade que ocorreram no âmbito dos conselhos. A fase do Conselho de Investigação é importante porque exercia, a um só tempo, funções de investigação, semelhantes ao desenrolar do atual Inquérito Policial Militar; funções de natureza judicialiforme, porque decidiu pela pronúncia de cinco dos indiciados; e funções de natureza ministerial, porque levou à denúncia dos fatos, na forma de pronúncia, ao Conselho de Guerra (ASSIS, 2009, p. 6). Esses trâmites nos ajudam a pensar as questões hierárquicas já levantadas no IPM, não só no exercício da atividade militar propriamente dita mas também no âmbito da Justiça Militar. Segundo Antonio Pereira Duarte (2011, p. 99), [...] para atender à instrumentalização ou formalização do Direito material castrense, é notório que o Direito Processual Penal Militar também reflete dita especialização, absorvendo os princípios próprios de tal ordenamento, de sorte que o processo penal militar está todo ele permeado pela hierarquia e disciplina, desde a fase que o antecede (Inquérito Policial Militar), até o contraditório propriamente dito, assegurando-se a harmônica aplicação de tais parâmetros substantivos, embora jamais se afastando dos dogmas constitucionais que a tudo regem.

Ressalvado o fato de que haviam se passado pouco mais de quatro meses da ocorrência dos crimes, havendo já certo distanciamento (Gregório Hass depôs em Curitiba em dezembro de 1900, e disse “achar-se um pouco esquecido”), Anastácia e Serafina apresentaram ao CI depoimentos menos ousados, não tão detalhados, corajosos e vibrantes como seus anteriores; chegaram a afirmar que não viram nada, ou seja, que não presenciaram o momento da morte de Mikilita. Anastácia escondeu-se no paiol e Serafina pediu ajuda a vizinhos e “nada mais viu” – versão que pode ser entendida como o resultado de intimidações pelas quais tenham passado, em função de que foram mais incisivas da primeira vez,

183

momento em que não só desejavam mas estavam mais confiantes de que a morte do esposo e pai seria vingada, quer dizer, acreditavam que a “justiça seria feita”. Serafina dá mais detalhes sobre os ferimentos nos polacos e menos sobre a ação das praças. É provável que a jovem tenha continuado a exercer suas funções de criada em Jangada, e há indícios de que continuou a comunicar-se com o Pessoal da Estratégica, o que a tornou mais suscetível a constrangimentos e assédios por parte diretamente dos militares, ou de alguém que se aproximava deles por laços de amizade ou dependência. Os interrogatórios agora são mais direcionados, limitando a liberdade de expressão dos depoentes e assumindo uma feição mais enquadrada aos moldes jurídicos. Anastácia, por exemplo, foi inquirida a partir de perguntas: se sabia quem havia dado os tiros em seu marido (respondeu que foi o Alferes Torres), se a noite estava clara ou escura para que pudesse reconhecer quem dera o tiro (respondeu que seu marido estava a cinco passos de distância e que Torres encontrava-se próximo dela quando atirou), se seu marido estava morto quando caiu (disse que correu e tomou-o nos braços, e que esse não respondia suas perguntas), sobre quem eram os dois companheiros que se achavam com seu marido (respondeu que eram Gregório e Carpi) e, ao final, uma pergunta intrigante, sobre quais eram os intentos das praças e se se encontravam embriagados (respondeu que não sabia os intentos, nem se estavam embriagados). Apesar de ser a embriaguez considerada circunstância agravante (Código Penal da Armada, art. 33, § 15), muito nas defesas se usava da condição de embriagado para justificar ações “inconsequentes” de réus e conquistar a benevolência dos julgadores. Ao questionar sobre os intentos das praças, talvez estivesse o CI sugerindo a demarcação de alguma premeditação para a prática dos crimes. O interrogatório parece ser conduzido por quem dominava certas técnicas e ritos comuns à atividade investigativa, e quer chegar o mais próximo possível da reconstituição do momento da morte. Ao mesmo tempo, parece tentar induzir à conclusão de que uma das principais testemunhas do caso, embora informante e maior interessada na punição dos responsáveis, não merecia crédito, já que não estava em condições concretas de identificar o(s) autor(es), nem mesmo o momento exato em que se deu a morte de seu esposo. Ao questionarem sobre os intentos das praças e seu possível estado de embriaguez, enfatizam o primeiro conflito, desviando o foco das ações do Alferes Torres (oficial julgando oficial) e levantado a questão dos intentos das praças em seu ato de pedir um copo d’água. A

184

pergunta pode ser entendida como uma insinuação de que as praças tiveram alguma intenção ilícita, como seria de se considerar típico de seu comportamento, de acordo com o imaginário das elites da época sobre as camadas inferiores. O fato é que, passado o calor inicial, quando a comoção era mais latente, as vozes das familiares de Mikilita são mais amenas, parecendo acuadas ou desesperançadas com a justiça terrena. Ao que tudo indica, são as únicas familiares; Anastácia refere-se a Serafina como sua filha mais velha, do que se deduz que, das crianças que estavam na casa, uma ou mais poderiam ser também seus filhos. Nenhum dos que estavam na casa e prestaram depoimento tem esse sobrenome, e se houvessem outros familiares, não haveria nada que os impedisse de depor. Era de se esperar que, estando mais pessoas dormindo na casa, após uma festa, fôssemos encontrar mais familiares, e é possível que alguns dos demais depoentes fossem contraparentes. O fato é que em nenhum momento as duas depoentes de sobrenome Mikilita fazem referência a qualquer grau de parentesco que pudessem ter com os demais patrícios. Se de fato eram as únicas familiares presentes (salvo as demais crianças citadas), isso só agravaria mais a situação de fragilidade em que se encontravam. Enfim, Anastácia está viúva, com filhos menores, e foi vítima de um ataque de praças do Exército em sua própria residência, numa terra estranha, onde se encontrava há pouco tempo – é de se entender os motivos que a levaram a titubear em relação à apuração dos fatos criminosos. É a mais vulnerável das testemunhas e, no depoimento que prestou depois em Curitiba, sua versão mudou completamente, revelando ainda maior fragilidade, como se verá logo adiante. As demais testemunhas apresentam outros dados e interessantes fragmentos de memória sobre o que teria se passado depois dos conflitos nesse intervalo de tempo. Surpreende que, dessa vez, algumas delas é que foram mais ousadas. Francisco Pawlichen271, por exemplo, afirmou que o Alferes “mandou matarem os polacos e tirarem para fora de casa”. Talvez Anastácia e Serafina tenham sido orientadas por alguém a deixar que os outros falassem mais, já que elas, testemunhas informantes, poderiam ser, de certo modo, consideradas “suspeitas” e a veracidade de suas informações, questionada – como de fato, indiretamente, foram –, além do que eram as mais expostas e vulneráveis a intimidações e ameaças.

271

27 anos, natural da Áustria, lavrador.

185

Até o momento, os depoimentos reportam-se aos fatos de uma maneira mais geral, enfatizando os combates que se deram no terreiro da propriedade. O depoimento inédito de Gregorio Hass272, um dos que foi conduzido preso ao destacamento, destaca-se por nos proporcionar o acesso, pela primeira vez, ao que se passou no interior da casa. As praças estavam a cavalo e, quando voltaram na companhia de Torres, fizeram cerco à casa, agrediram Mikilita com pancadas na cabeça, e Torres atingiu-lhe com dois tiros de carabina. O depoente tentou ajudar e foi agredido no braço direito. Abrigou-se na cozinha, onde estavam as mulheres, crianças e alguns homens; ali trancaram-se. Mas as praças arrombaram uma janela pela qual Torres apontou uma carabina e ele, o depoente, usando um pedaço de pau, empurrou a arma, afastando-a. O Alferes passou, então, para o outro lado da janela e disparou; o projétil passou entre seu corpo e sua camisa e atingiu Carpe Muzika e Lucio Laskowsky (dado atestado pela testemunha Senka), que ficaram gravemente feridos, e também atingiu levemente Onofre Horodetsky. Os militares invadiram a cozinha armados de paus, e as mulheres, assustadas, faziam muito alarme. Ele tentou novamente fechar a porta, mas os soldados agarraram-no, a ele e Carpi, e os conduziram à cadeia, onde foram muito maltratados. Foram liberados no dia seguinte por Felix Amorim, depois de terem-lhe narrado o ocorrido; então, o Alferes Torres lhe disse que, “se soubesse que elle depoente iria contar ao Capitão Amorim, tinha deixado que as praças o matassem quando o conduzião para a cadeia”. Estephanio Pombrowsky, o mais idoso entre as testemunhas273, era vizinho dos Mikilita e traz uma versão interessante, de quem não estava na casa, mas tentou interferir. À meia-noite mais ou menos, estando em sua casa, ouviu gritos que vinham da casa de Mikilita; foi até lá e encontrou-se com Torres e mais dois soldados, todos armados, que o agarraram. Então, a praça Manoel Joaquim de Araujo interferiu mandando-o embora dali e dizendo aos demais que não o fizessem mal por se tratar do carpinteiro da Comissão. Retirou-se para a estrada mas, como era conhecido das praças, julgou ser capaz de poder evitar maiores consequências e voltou ao local dos confrontos, onde foi atropelado por Torres, que “meteu o cavalo em cima dele”, sendo então socorrido e retirado do local pelo Anspeçada José Freire. Encostou-se a uma cerca na estrada, onde ficou até o término do conflito, quando voltou à casa de Mikilita, que jazia no pátio; recolheu-o a um dos quartos e colocou-o em cima de uma

272 273

Natural da Áustria, 36 anos, casado, lavrador, morador em General Carneiro. Natural da Áustria, 62 anos, casado, marceneiro.

186

cama. Como esteve afastado, não soube dizer como se deu exatamente o momento da morte de Mikilita. Depoimento mais detalhado em relação ao primeiro é o da jovem Senka Kerella274, residente em União da Vitória. Tentou fugir para o paiol e foi agarrada pelo Soldado Alfredo, que então reconheceu-a e disse aos demais que “não fizessem nada a ela visto ser criada do senhor Modesto”. Retirou-se para se proteger na casa do senhor Estephanio Ponkowsky, que morava logo em frente à casa de Mikilita. Perguntada se viu o Alferes Torres no lugar do conflito, disse que na ocasião em que foi agarrada por Alfredo viu Torres chamando as praças para irem embora, mas não sabe se ele tomou parte no conflito. Por fim, os depoimentos, também inéditos, de Carlos Pomina275 e Antonio Zastawszy276 ampliam um pouco mais a reconstituição dos conflitos. Carlos pernoitava no dito paiol e traz um dado curioso: de que o pedido de água das praças foi satisfeito. Já Antonio dormia na casa de Estephanio Pombrovsky, e também tentou apaziguar as coisas dialogando com as praças e pedindo que se retirassem ainda da primeira vez em que se aproximaram. Afirmou que, quando Torres se aproximou com os demais soldados, mandou que fizessem fogo sobre os polacos, e estes invadiram a casa de Mikilita ferindo-o e a outros que se achavam na cozinha. Após os interrogatórios das vítimas, o Conselho entendeu que não havia mais testemunhas e que, com as que depuseram277, mais as demais provas,278 poderia considerar-se suficientemente esclarecido o ocorrido, e passou a inquirir os indiciados. Torres, Herculano, Marcelino, Alfredo, Sebastião, Benjamim e João depuseram novamente em Curitiba, no quartel-general279. Segundo as fés de ofício, as praças foram presas em julho e o Alferes, em agosto, depois dos interrogatórios, o que significa que permaneceram ainda alguns dias em Jangada e, mesmo que por pouco tempo, ainda interagiram com a população, da qual é prova a afirmação posterior de Liberino, que teria ouvido a filha de Mikilita dizer que quem provocou as mortes foi Torres.

274

Os interrogatórios foram retomados aos 29 dias de outubro, na vila da União da Vitória, onde mora Modesto (Fl. 65 do PC/1900/General Carneiro). José Bilski assinou pela testemunha. 275 Áustria, 29 anos, casado, lavrador, residente na colônia Antonio Candido Intérprete José Bilski (o mesmo que assinou para a menor). Por não saber ler, José Bueno de Camargo assinou a seu rogo. 276 Áustria, 52 anos, casado, lavrador, residente em Antonio Candido. Assinou o Coronel Manoel de Araujo Marcondes. 277 O número de testemunhas é decidido pelo CI, não podendo ser inferior a três, conforme o artigo 69 do RPCM. 278 Constituíam provas os exames de corpo de delito. Art. 67 do RPCM. 279 Fl. 79 do PC/1900/General Carneiro.

187

Em relação aos depoimentos anteriores, o de Torres começou a demarcar a posição do oficial bem informado, que passa, inclusive, a influenciar de forma mais direta o rumo das investigações. Reportou-se brevemente ao depoimento que prestou no IPM e requereu a reinquirição das testemunhas na sua presença, “em vista do direito que lhe faculta o artigo setenta e seis parte segunda na instrução do processo criminal militar”280. Com isso, o Alferes não só interveio no andamento do processo como preparou melhor sua defesa, ganhando tempo. A declaração de Torres é breve e contrasta com os demais depoimentos, mais defensivos e acusatórios em relação aos companheiros, e que, inclusive, comprometem mais o Pessoal da Estratégica. Embora mais detalhados que o de Torres, esses depoimentos são muito mais simples nos termos que empregam. A afirmação de Castan281 (1971, p. 117 apud FAUSTO, 2001, p. 35) nos ajuda a entender essas diferenças: “Fora de sua profissão ou de sua ocupação habitual, é difícil para um homem pobre falar claramente; isso deve explicar o laconismo desajeitado, as respostas monossilábicas de certos acusados ou testemunhas.” As acusações dos indiciados ampliam-se especialmente em relação ao Alferes Torres, sobre declarações que teria feito, assumindo a autoria da morte, e também de ameaças que fez, rompem-se aos poucos as relações mais amistosas que poderiam existir entre o oficial e os subordinados. No primeiro interrogatório, encontramos um breve relato; no segundo, a necessidade de defender-se se faz mais urgente, parecendo que não se sentem mais protegidos por Torres ou talvez acreditem poder incriminá-lo, estando diante de outros oficiais. Embora os soldados Sebastião, Alfredo, João Antonio e Benjamim asseverassem que, se fossem submetidas a Conselho de Guerra, apresentariam defesas por escrito, não sabiam se defender como fez Torres, que conhecia as sutilezas da Justiça, estava acostumado à rotina das investigações e detinha o “poder das ‘letras’” (MACHADO, 2011, p. 82) escritas nos códigos de leis e pronunciadas nos interrogatórios, com maiores condições de argumentar. São também os oficiais que redigem documentos (assentamentos) que tratam da vida dos soldados282. Relembre-se aqui a expressão “brilhante defesa”, usada pelo jornal A República,

280

O RPCM previa que o réu ou os juízes pudessem fazer essa solicitação. Yves Castan. “Mentalités rurale et urbaine à la fin de L’Ancien Régime dans le ressort du Parlement de Toulouse d’après les sacs à procès criminels (1730-1790)”, in Crimes et criminalité em France dans L’Ancien Régime – 17º - 18º siècles, 1971, p. 117. 282 “Os assentamentos indicam o poder que os oficiais tinham ao traçar a linha entre infrações disciplinares e crimes.” (BEATTIE, op. cit., p. 279). 281

188

referindo-se à que foi apresentada pelo Capitão Camillo Brandão quando submetido, em 1901, a Conselho de Guerra283. Seis dos depoentes disseram ter ouvido Torres dar voz de fogo, sendo que Tito foi mais incisivo ao afirmar que o Alferes “deu ordem para que, se os polacos quisessem fugir, que [as praças] atirassem fazendo fogo”. Além de Torres, Herculano, Marcelino e Alfredo também foram apontados como autores dos disparos. O depoimento de Sebastião é o mais audacioso e mais detalhado: voltavam de uma festa realizada em lugar denominado Cutia, ele, João e Alfredo, e encontraram-se no Marco Cinco com Alfredo, Marcelino e o paisano Messias e os demais. Alfredo declarou que já tinha dado em uns polacos (observação que pode estar associada ao depoimento da testemunha Bazílio Iwarycz284, que afirmou ter sido agredido por algumas praças, antes dos conflitos ocorridos na residência de Mikilita), achando-se com uma adaga suja de sangue. Alfredo destacou-se e bateu à porta de Mikilita, onde só se achavam mulheres. Ao voltar ao local do conflito com Torres, devolveu o mosquetão ao Alferes, que o entregou a Marcelino, mandando que atirasse “pois ele era o único responsável”. Ouviu Torres detonar cinco tiros de revólver e Marcelino atirar com o mosquetão umas cinco ou seis vezes. João Antonio foi o primeiro a falar em embriaguez, dizendo que Liberino – o que perdeu os sentidos logo no início dos confrontos – “estava um pouco embriagado”. É possível que a afirmação tenha a intenção de livrar a ele e aos demais da possível acusação de embriaguez; já que Liberino ficou sem sentidos e não participou dos conflitos, ficava mais fácil atribuir a ele o estado de embriaguez. Conclusos os interrogatórios, o CI declarou que não pôde lavrar a decisão em função da solicitação de Torres de que as testemunhas fossem inquiridas em sua presença. Reiniciaram então os interrogatórios das testemunhas. O depoimento de Anastácia foi prestado em Curitiba, no 5° Batalhão285, onde estiveram, das testemunhas, apenas ela e Gregório Hass286. Foi momento perturbador e

283

A República, n. 231, op. cit. Natural da Áustria, 38 anos, casado, lavrador, residente na colônia Antonio Candido. 285 Prestado em 27 de dezembro de 1900. Intérprete Pedro Obladio. 286 Fls. 105 e 106. As demais testemunhas não compareceram. À folha 107 verso “Não foi possível prosseguir porque as testemunhas não estavam visto acharem-se em Jangada e outras partes do estado.” É provável que tenham ocorrido mudanças de endereço como sinônimo de medo das investigações, que se tornaram mais uma invasão em suas vidas. 284

189

paradoxal, destoando de tudo o que já havia sido dito, simplesmente surgindo uma novíssima versão. Para os que não vivem a rotina forense, mas vez ou outra se veem forçados a transitar por seus espaços, a Justiça pode se apresentar como um sem fim de pessoas e cenários estranhos e intimidadores, num percurso sinuoso que lembra o drama vivido pelo personagem kafkiano Josef K., do romance O processo. São inquiridos por juízes, promotores e advogados que perscrutam suas vidas, penetram em sua intimidade, o que, segundo Adorno (apud FAUSTO, 2001, p. 13)., “É como se à Justiça não bastasse atingir o corpo dos acusados; mais do que isso, torna-se imperativo inventariar-lhes o pensamento, esquadrinhar-lhes as emoções, intervir no torvelinho das paixões, enfim, aprisionar-lhes a alma.” Anastácia, nesse estranho relato, disse que, naquela noite, seu marido chegou em casa por volta das 19 horas, embriagado, e deparou-se com duas praças, dos quais ignora os nomes, e que o convidaram para irem até uma casa de negócios beberem cachaça, juntos; como Mikilita se negou a acompanhá-los, uma das praças deu-lhe um tapa, derrubando-o. Mikilita levantou-se e sentou-se na porta da casa; nisso veio ela, a depoente, ver o que se passava, quando foram os dois agarrados pelas praças, sendo forçados a entregarem o dinheiro que possuíam. Conseguindo ela soltar-se, fugiu a fim de chamar os vizinhos. Voltou momentos depois acompanhada de seu vizinho João Segost, e encontraram Mikilita morto com dois talhos na cabeça e um “pontaço” no peito. Depois de terem recolhido seu marido para dentro da casa, por volta de vinte e uma horas, ouviu muitas vozes e alguém forçando a porta, não sabendo se eram praças ou polacos. Perguntada se, depois do conflito e de seu marido recolhido, as praças voltaram ao quartel, respondeu que já haviam se retirado. Não sabia que armas foram usadas e tampouco os autores, não viu se houve tiros ou quem os deu; sobre o segundo conflito, respondeu não saber nada, nem mesmo se houve tiros. As contradições do depoimento são a prova maior do constrangimento e pavor que sentiu, chegando a sugerir que os próprios patrícios tivessem, em algum momento, forçado a porta. É a única a fazer tais afirmações, que são, naturalmente, desmentidas pelas demais fontes apresentadas. Se fora verdade que Mikilita morreu da forma que descreveu, resultado de ferimentos de faca ou facão que teria recebido, como explicar que no laudo do exame de delito tenham sido encontrados ferimentos por arma de fogo. Outra informação destoante diz respeito ao vizinho João Segost, que só é citado nessa ocasião, e, a julgar por seu suposto testemunhar da morte de Mikilita, antes de tudo o que foi dito que ocorreu, era de se esperar

190

que tivesse sido arrolado como testemunha, especialmente nas defesas do Alferes Torres, maior interessado em atestar a veracidade dessa narrativa e fazer uso dela287. Infelizmente só dispomos do texto escrito. Não podemos auferir o estado psicológico ou emocional em que se encontrava a testemunha – nervosismo, pausas, trocas de olhares. Essa versão estranha foi combinada ou ensaiada antes? Quando Anastácia decidiu mudar o discurso? A viúva está diante do homem que comandou um assalto violento à sua casa que, além de resultar na morte do esposo e trazer-lhe inúmeros constrangimentos e danos, colocou em risco sua vida e a de seus filhos. Sente-se estranha e acuada, completamente sozinha (Gregório também foi até o 5º Batalhão, mas não a acompanhou no momento solitário em que depôs) naquele lugar dominado pelos homens – o Exército é um universo masculino – familiarizados com aqueles espaços e que têm o comando de tudo o que acontece em seu interior e em boa parte, fora dele. O art. 76 do RCMP previa essa possibilidade, de inquirição da testemunha diante dos réus, o que constrangia a testemunha, favorecendo práticas corporativistas. Torres será o único a se utilizar dessas afirmações. Ninguém mais cogitou a possibilidade de investigar a morte de Mikilita que não seja na versão apontada pelos demais, tanto testemunhas como réus. Quanto ao depoimento de Gregorio Hass praticamente manteve-se, a despeito de encontrar-se, como disse, “um pouco esquecido”. Gregório era um dos mais próximos da família Mikilita, que foi prontamente ver o que ocorria quando as praças bateram à porta da casa na primeira vez. Juntamente com Carpi Muzika, foram os únicos que não fugiram na noite dos crimes, permanecendo junto da família, e acabaram presos. É curioso que Anastácia e Gregório tenham feito algum esforço para se deslocar até Curitiba, se motivados por algum desejo de que se “fizesse justiça” em relação às mortes, a versão narrada por Anastácia não tem o mínimo de coerência, acaba por incriminar mais algumas praças (quais?) e livrar Torres. Desconhecimento de que Torres estaria presente? Preocupação com as implicações que a Justiça pudesse lhe trazer caso não comparecessem, especialmente Anastácia, sendo a viúva de Estephanio? De Gregório, Torres afirmou, no CG, ter tirado de suas mãos uma arma de caça. Estaria amedrontado em razão disso? Ou simplesmente permanecia solidário à viúva de seu amigo? O art. 70 do RPCM previa que as testemunhas seriam obrigadas a comparecer, quando intimadas, salvo em casos de moléstia, embora os demais não tivessem comparecido; e 287

“Art. 79. Sempre que as testemunhas, que depuzerem nos conselhos do investigação e de guerra, fizerem referencias a outras deverão ser estas chamadas a depôr no caracter de referidas.”

191

encaminhou-se um Conselho de Inquirição288 à Jangada para ouvi-los289, por meio de deprecata.290 Os depoimentos das demais testemunhas denotam a ira e o preconceito de Torres e dos demais indiciados em frases como “[Torres] dizia que matasse esse polaco [Estephanio Dombrosky, testemunha] o que não foi realisado”, e “Vamos tirar a polacada para fóra, porque agora está ahi o alferes”, ouvidas e testemunhadas por Francisco. Há certa insistência, por parte dos interrogadores, em levantar os nomes de quem exatamente atirou, talvez uma tentativa de dispersar o foco da atenção, direcionado ao Alferes Torres o foco. O depoimento de Serafina é, dessa vez, ainda mais tímido. O Conselho reuniu-se então e promulgou a seguinte decisão:

Nada mais havendo a declarar nem por parte da defesa, nem da acusação, declarou o presidente que concluídas todas as diligencias e observadas as formalidades substanciais do processo deviam os juízes a começar do mais moderno proferirem seus votos sobre a pronuncia ou não pronuncia dos indiciados291, decidindo-se por unanimidade de votos que havia base para a pronuncia achando-se os indiciados Torres, Herculano, Alfredo, Sebastião e João Antonio, incursos no artigo 151 do Código Penal da Armada.292

O artigo 151 previa pena de dois meses a dois anos de prisão com trabalhos para condenados por crimes de homicídio involuntário. A pena de prisão com trabalho foi uma das inovações do Código da Armada em relação ao Código Criminal de 1830. Logo após a decisão do CI, em 26 de janeiro de 1901, vem o despacho da promotoria que apresenta um breve resumo do ocorrido e confirma a decisão do Conselho pelos motivos 288

Trata-se de um Conselho “menor” atuando dentro do Conselho de Investigação, previsto no art. 81 do RPCM (fl. 108 do PC/1900/General Carneiro). Esse Conselho de Inquirição era formado pelos seguintes juízes: Tenente Arcelino Clarindo de Paula e Alferes José Procopio Tavares Filho, substituindo o Tenente Ricardo Cabral da Cunha Godolphin, e o Alferes Cezar Augusto de Souza Franco, por ordem de Francisco da Rocha Callado. 289 Depuseram Estephanio (sendo intérprete Rodolpho Pohl), Nicolau, Francisco, Vasco e Serafina. Nos dias 17 e 18 de janeiro, abriram-se e suspenderam-se sessões de interrogatórios em Porto União, porque as testemunhas Senka, Bazilio, Carlos e Antonio não compareceram, e ignorava-se seu paradeiro (fl. 119 do PC/1900/General Carneiro). 290 Ofício de Francisco da Rocha Calado ao Capitão José Rodrigues de Castro (Fl. 109 do PC/1900/General Carneiro) ordenando que seguisse a Jangada para interrogar Serafina, Nicolau, Vasco, Estephanio, Senka, Basilio, Carlos e Antonio. 291 O art. 27, § 4º, do RPCM determinava uma das competências do CI, que é de decidir pela pronúncia ou não dos indiciados, e o art. 188 estabelecia, de forma mais clara: “Em seguida, finda a discussão entre os juizes, passarão estes a dar suas opiniões sobre a pronuncia ou - não pronuncia do indiciado, no caso affirmativo em que artigo de lei, e o que ficar decidido, por unanimidade ou maioria de votos, constituirá o despacho de pronuncia ou não pronuncia do indiciado, devendo o mesmo despacho ser escripto pelo juiz; escrivão e por todos assignado.” 292 “Art. 151. Aquelle que, por imprudencia, negligencia, ou inobservancia de alguma disposição regulamentar, commetter, ou for causa involuntaria, directa ou indirectamente, de homicidio, será punido com prisão com trabalho por dous mezes a dous annos.”

192

que seguem: havendo Torres recebido ordem de acalmar o conflito, ao chegar ao local, concitou as praças a atacarem e armou Herculano de mosquetão Mannulincher; Alfredo, Herculano, João e Sebastião têm em seu favor as circunstâncias atenuantes previstas no art. 37, § 6º,293 por terem agido cumprindo ordem superior, e os sujeitam a prisão e julgamento em Conselho de Guerra, salvo se houver direito de menagem294; por não haver indícios de culpabilidade, foram despronunciados Marcelino, Liberino, José, Benjamim, Manuel, Tito. Assinaram o referido despacho o Capitão José Rodrigues de Castro, Juiz Presidente; o Tenente Arcelino Clarindo de Paula, Juiz Interrogante; e o Alferes José Procopio Tavares Filho, Juiz escrivão. Essas duas fases das investigações (IPM e CI) apontam para a complexidade das disputas no campo judicial pela supremacia de uma narrativa sobre os fatos, e já começam a demarcar o jogo de forças posto. O caso em questão é ainda mais conflitivo por colocar na condição de indiciados onze militares que se encontram em campos muito distintos: um deles, oficial de patente; os demais soldados, com pouca ou nenhuma força no interior da instituição. Ao contrário do que se possa presumir de início, o espírito de corporação não pressupõe a existência de resultados dados, a priori, ou seja, os abusos e excessos cometidos pelos altos escalões é passível de questionamentos, mesmo entre os pares.

293

O Código Penal da Armada assim dispunha: “Art. 37. São circumstancias attenuantes: [...] § 6º Ter o delinquente commettido o crime em obediencia a ordem de superior hierarchico.” 294 Menagem. Prisão especial. Trata-se de uma eférese, ou seja, onde do substantivo homenagem excluiu-se o primeiro fonema “ho”. (FREYESLEBEN, Márcio Luiz Chila. A prisão provisória no Código de Processo Penal Militar. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 137). Célio Lobão explica que o instituto da menagem remonta o século XIV, onde D. Diniz, em 1356, e D. Pedro I, em 1360, legislaram sobre o seguro, a homenagem e a fiança, sendo que a “homenagem” era um privilégio particularmente concedido à nobreza: “Foi aprovado nas Côrtes d’Elvas no tempo de D. Pedro I e daí passou para as Ordenações Afonsinas e delas para as posteriores [...]. As homenagens eram concedidas pelo Desembargo do Paço e consistiam na licença deferida ao Réu, em sua qartualidade pessoal, para estar solto em juízo debaixo de sua promessa [...]. Por homenagem era dada a própria casa ou o Castelo da cidade [...]. Não tinha lugar nos crimes puníveis com pena de morte natural ou civil, no crime de desafio para duelo [...]. A Ord. L. V., título 120 e posteriores Alvarás regularam este modo de livramento, que hoje só é concedido, em casos militares, aos oficiais das forças armadas, sob a denominação de menagem.” (LOBÃO, op. cit. p. 337).

193

194

5 DA JUSTIÇA MILITAR À JUSTIÇA COMUM

Neste capítulo, analisamos uma documentação produzida basicamente pelos réus ou seus procuradores, na fase do Conselho de Guerra, pela qual adentramos essa justiça especializada, um importante espaço de debate das normas estatutárias do Exército que revela fragilidades e nuances do comportamento militar, e traduz visões e conceitos do que poderíamos denominar, com Huntington (1996), de “mentalidade militar”. Analisamos também a atuação da Justiça Comum, seus arranjos e funcionamento, e como se levou ao desfecho do caso.

5.1 CONSELHO DE GUERRA

No Conselho de Guerra, presidido pelo Coronel graduado Olympio de Carvalho Fonseca, e que teve como auditor de guerra Benjamim Americo de Freitas Pessoa295, a luta travada no campo jurídico chegou ao seu ápice, resultando na produção de ricos registros. Além dos depoimentos, formularam-se quesitos para os interrogatórios das vítimas, e os réus apresentaram defesas escritas. Os quesitos propostos para os interrogatórios das testemunhas contêm impressões e intenções dos oficiais conselheiros, do Alferes Torres e dos soldados, e demarcam as diferenças de posições em que se encontram as peças do jogo nesse tabuleiro. São questionamentos que não se resumem a meros quesitos investigativos, mas exprimem o rumo que as investigações tiveram até então e que, de certo modo, tomaram a partir daí. As defesas escritas apresentadas pelos réus marcam posicionamentos mais sólidos. Como o direito de menagem296 observava os antecedentes do réu, juntaram-se as fés de ofício (anexas) dos pronunciados no CI. Esses assentamentos, mais do que servirem meramente ao propósito de analisar os antecedentes dos réus, com fins de condenar ou absolver, indicam o 295

Olympio de Carvalho Fonseca, oficial de carreira, foi ministro do STM, em 1913, cf. . Acesso em: 03 maio 2015. Benjamim Américo de Freitas Pessoa, bacharel em Direito, foi nomeado auditor de guerra do 5º Distrito em 1894, cf. . Acesso em: 03 maio 2015. Os demais membros do conselho foram Capitão Camillo Brandão, interrogante; Tenente Alcebiades Cesar Plaisant; Alferes Narciso Paulo Guimaraes; Rosalino Villa Fanha da Silveira; e Luis Antonio Ferreira Santos. 296 Ver cap. 4.

195

poder dos oficiais de traçar uma linha entre infrações disciplinares e crimes (BEATTIE, 2009, p. 279). Dependendo do grau de interesse no caso e no réu, esses documentos foram usados para conhecer o procedimento e, com base em sua vida pregressa, levantar não só seus antecedentes criminais mas também uma confirmação das boas ou más intenções, segundo os postulados científicos da época. A partir daqui, os indiciados pronunciados pelo CI, Alferes Torres, Cabo Herculano e os Soldados Alfredo, João e Sebastião, convertem-se em réus, e as investigações, em processo. O Conselho de Guerra fez os encaminhamentos iniciais, que consistiram em intimações, prisões, emissão de deprecada (precatória) solicitando a inquirição das testemunhas nos lugares onde se encontravam297.

5.1.1 Os réus elaboram quesitos de defesa

A Auditoria de Guerra reuniu-se na sala das sessões dos conselhos de guerra do 5º Distrito Militar, em Curitiba, em 23 de fevereiro de 1901 e formulou os quesitos para interrogatório das testemunhas; os processados também formularam seus próprios quesitos. Tais quesitos deveriam ser claros e versar sobre todas as circunstâncias que houvessem ocorrido no fato criminoso, as que fossem confluentes para absolvição ou condenação dos réus, ou que possibilitassem a atenuação ou agravação das penas (§ único do art. 82 do RPCM). Os quesitos propostos pelo Conselho de Guerra procuraram adequar os depoimentos à linguagem jurídica e aos padrões propostos pela lei. Procedimentos técnicos que acabaram, em certa medida, confundindo as testemunhas e pouco ajudando no esclarecimento dos fatos,

297 Os artigos de 80 a 83 do RPCM previam a inquirição de testemunhas nos locais onde residissem, fixa ou eventualmente, caso não pudessem comparecer à cidade local das investigações. O conselho deveria emitir deprecada (art. 80), acompanhada de cópias autênticas da parte acusatória, queixa ou denúncia, auto de informação do crime e quesitos que embasariam a inquirição das testemunhas, formulados pelo conselho e pelo(s) réu(s) (art. 82). O Conselho de Inquirição seria formado de um auditor privativo e dois oficiais, sendo um presidente e outro interrogante (art. 81). Nas folhas de 123 a 135 do PC/1900/General Carneiro, encontram-se as intimações dos réus, expedição de deprecada, convocação do Conselho de Inquirição, cópia do oficio que Torres mandou a Amorim, cópia do telegrama de Amorim e cópia do auto de informação do crime. À fl. 124 do PC/1900/General Carneiro (verso), lê-se a seguinte anotação: “Apresentadas as certidões de intimação dos réus. Em seguida ciente o conselho de se acharem as testemunhas em lugar longínquo. As testemunhas se recusaram a comparecer perante o conselho sendo por isto tomado o seu depoimento perante um conselho de inquirição, resolveu o conselho expedir Deprecada aquele lugar afim de tomar o depoimento das testemunhas.”

196

que se diluíram ante as tentativas de enquadramento dos depoimentos nos artigos dos códigos e regulamentos. Dos quesitos propostos pelo Conselho de Guerra, salvo o primeiro, que permite ao interrogado expor-se de forma mais livre, os demais simplesmente transpõem os termos da orientação do RPCM para a elaboração dos quesitos (art. 82), perdendo eficácia, já que as testemunhas, nesse caso, não tiveram condições concretas de responder.

1. O que sabe sobre o fato criminoso atribuído aos réus [...] que resultou na morte de [...]; 2. O que sabe a respeito de Torres ter recebido ordem do chefe da comissão estratégica para acalmar o conflito e encontrando os soldados fez voltar e armou Herculano de mosquetão e estando os demais armados de facas e se destas fizera uso. 3. Foram os indiciados provocadores do conflito e autores das mortes arroladas? 4. Em caso afirmativo, houveram mais cumplices? 5. Se houve provocação, da parte de quem e em que consistiu? 6. Existem circunstâncias atenuantes ou agravantes?298

Anastácia299, após a versão destoante apresentada quando esteve em Curitiba, retomou a versão que contou das primeiras vezes e reafirmou que o esposo morreu após a chegada de Torres. Como resposta ao primeiro quesito, os depoimentos pouco mudam em relação aos prestados em ocasiões anteriores. O segundo quesito é basicamente a síntese da tese levantada pelas autoridades desde o início: de que o Alferes Torres foi mandado por Felix Amorim para acalmar o conflito e, chegando lá, concitou os corréus a retomarem os ataques. Somente duas testemunhas responderam a esse quesito: Anastácia, que disse saber que Torres foi informado, mas não saber se foi até sua casa por ordem do diretor, e Senka, que afirmou que os soldados voltaram com Torres. O terceiro quesito (cujo teor praticamente se repete no quinto) é, pode-se dizer, o mais claro para as testemunhas; prova disso é que, com exceção de Bazílio, que não respondeu, todos os demais apontaram os réus como provocadores e autores dos crimes. Os quesitos 4 e 6 não fizeram sentido algum para as testemunhas, o que há é simplesmente uma transposição da orientação do RPCM para a sua elaboração. Como apontar cúmplices? O que seriam, para essas testemunhas, circunstâncias agravantes ou atenuantes? O CG teria condições de 298

A partir da fl. 137 do PC/1900/General Carneiro. Depuseram Stefanio, Anastácia, Onofre, Carpi, Senka, Bazílio e Carlos. A 15 de março de 1901 ocorreu uma sessão do Conselho de Inquirição, na casa da Secretaria da Comissão Estratégica em Jangada. O conselho foi informado de que as testemunhas arroladas eram de nacionalidade polaca e não falavam nem bem compreendiam a língua nacional, por isso houve a necessidade de firmar termo de promessa prestado por um intérprete (fl. 140 do PC/1900/General Carneiro). 299

197

responder mas as testemunhas não, não conhecem essa linguagem utilizada no campo jurídico por seus especialistas, que empregam conceitos e normas não dominados pelos não iniciados (CORRÊA, 1983, p. 311). Apenas Anastácia respondeu ao quesito 5, dizendo que a provocação partiu dos soldados; todos os demais não responderam a nenhum dos três últimos quesitos (“ignora” e “prejudicado” são os termos empregados pelo escrivão na falta dessas respostas). Em carta do Tenente-Coronel Jacques Ourique, enviada ao Jornal do Commércio, do Rio de Janeiro, em 10 de dezembro de 1889, o oficial apresentou a seguinte crítica à Justiça Militar do Império:

[...] a justiça militar, cujos processos devem ser simples, claros e retos, era entregue aos sofismas e ajeitamentos de uma hermenêutica sutil e às exigências de um nepotismo impudente, originando-se aí o abatimento do espírito militar que assistia sobressaltado a controvérsias incabidas e a aplicações especiosas das leis.300

Trata-se de observações levantadas no calor da implantação do novo regime, esforçado por desqualificar os procedimentos anteriores, e que, de certo modo, tenta justificar o “abatimento do espírito militar” e com isso, indiretamente, sua reação manifesta no movimento de 15 de novembro. Ressalvadas essas questões, as observações do Tenente-Coronel aplicam-se perfeitamente ao momento e às práticas aqui abordadas, o que significa que, ao menos na Primeira República, os novos dirigentes não conseguiram imprimir outra feição a essa realidade. Isso também pode revelar a inépcia em se aplicar o regulamento, agravando a ineficácia e fragilidade dos códigos, já tão criticada no próprio interior das Forças Armadas. A nomeação de um oficial para a composição de um conselho poderia converter-se em sinônimo de status e pontos em seu currículo, e ao mesmo tempo representar certo transtorno, pela situação delicada em que se colocava ao ter de julgar um companheiro de armas, bem como pelo tempo e trabalho dispensados. Os quesitos propostos pelos réus reforçam o já observado contraste entre as condições do oficial e dos soldados rasos e as condições concretas de defesa das quais cada um, de fato,

300

Transcrita em PORTO, M. E. de Campos. Apontamentos para a história da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, p. 959 apud LEMOS, Renato. Justiça Militar e ordem republicana no Brasil: da linha de comando à defesa do Estado (1889-1895). Usos do Passado — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ, 2006, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 28 maio 2014.

198

dispôs. Tal desigualdade de condições foi apontada de forma clara e direta pelo Soldado Sebastião Bento Thomaz do Nascimento, quando compareceu ao Fórum da comarca de Palmas. O réu declarou-se inocente alegando que havia companheiros seus que poderiam confirmar isso, e que, se não solicitou o comparecimento desses perante o tribunal, foi porque, “sem conhecer, por inexperiente, de que meios de defesa poderia lançar mão, não teve quem o guiasse no momento oportuno quando contrariou o libelo”301. Torres é o militar mais antigo, tendo ingressado no Exército em 1882; os demais são mais recentes: Sebastião e Herculano,de 1898, João Antonio de 1894 e Alfredo de 1893. Os quesitos propostos pelo Alferes apostam na impossibilidade de se identificar os autores dos disparos, pelo fato de os crimes terem ocorrido em uma noite escura, e porque as testemunhas pouco compreendiam o idioma dos acusados e evidenciam mais as ações dos companheiros de farda do que as suas próprias302.

1. A testemunha fala o português que se possa compreender? 2. Entende suficientemente o português e poderá apanhar o sentido de uma frase qualquer dita de repente? 3. Por onde conheceu na noite escura que fora o revólver de Torres que disparara? 4. As carabinas não dispararam? Como sabe? 5. Tem certeza que Mikilita foi morto na ocasião do segundo conflito? 6. Sabe que Mikilita caiu morto proveniente do tiro de revolver?

Ao colocar em xeque a informação sobre o momento da morte de Mikilita, o Alferes retomou o depoimento que Anastácia prestou em Curitiba, no qual afirmou que o esposo morreu em conflito anterior à sua chegada. Nos quesitos sobre o emprego de armas, focaliza a ação das praças, que fizeram uso das carabinas, e a acusação de que disparou um revólver (levantada nas etapas anteriores); quando ele próprio prestou depoimento, logo na sequência, arrolou testemunhas que afirmaram que seu revólver estava descarregado quando regressou ao acampamento. Ao contrário dos quesitos do CG, aos de Torres, a maior parte foram respondidos pelas testemunhas. Quanto aos quesitos relativos aos tiros, afirmaram ter ouvido disparos de carabina e atestaram que Mikilita foi morto no segundo conflito. Os quesitos dos demais réus são lacônicos, de soldados rasos com pouca instrução e certamente intimidados com aquele teatro jurídico cheio de superiores hierárquicos. Alfredo e Herculano propuseram quesitos únicos; o do Soldado Alfredo foi dirigido especificamente à

301 302

PC/1900/General Carneiro, fl. 285. PC/1900/General Carneiro, fl. 138.

199

testemunha Anastácia: “A testemunha conhece o acusado?”; e o do Cabo Herculano era dirigido a todas as testemunhas: “As testemunhas conhecem o acusado, e desde quando?” Alfredo e Herculano, que já se encontravam desligados do Exército – quando o processo foi transferido para a esfera cível, não foram encontrados –, talvez dispunham de menos informações e ainda menores condições de elaborar quesitos que contribuíssem com sua absolvição. Os Soldados Sebastião e João apostaram no fato de que foram informar Torres e, reivindicando uma hierarquia – que respeitaram –, apontam para um responsável maior:

1. A testemunha sabe se os réus tomaram parte no primeiro conflito? 2. Alguém foi mandado para avisar o alferes comandante do contingente e quem foi o portador do aviso? 3. Os dois réus no segundo conflito e a presença do alferes Torres dispararam armas ou estavam armados? 4. A testemunha ouviu a voz de fogo dada por quem?

O oficial conselheiro Alferes Luiz Ferreira Santos propôs dois quesitos que fizeram eco ao depoimento de Anastácia, prestado em Curitiba, e aos interesses de absolvição de Torres: 1. A que horas foi morto Mikilita? 2. A morte de Mikilita deu-se antes ou depois de ser chamado o Alferes Torres? Isso é revelador dos apoios e forças de que dispôs o Alferes em sua defesa, embora ao longo dos interrogatórios das testemunhas, esses quesitos não foram aplicados. Após a inquirição das testemunhas, com base nos quesitos, passou-se aos interrogatórios dos réus. O conselho anotou que três testemunhas não apareceram, e nem se conhecia seu paradeiro. Seriam intimadas outras para compor o número legal303. Logo em seguida, lê-se a anotação feita em sessão realizada em 29 de março de 1901, em Curitiba: “Não havendo mais testemunhas de acusação a inquirir-se, e achando-se o conselho satisfeito e esclarecido, resolveu que devem ser ouvidos os réus.”304

Os depoimentos dos réus são agora mais ricos, não se limitando apenas a narrar os conflitos, mas apresentando justificativas acerca de por que ocorreram. As novas informações que trazem têm cunho mais opinativo. No depoimento do Alferes Torres, o primeiro a depor, encontramos uma fala dramática, desprovida da cautela com que o depoente tentou tratar do caso inicialmente. O 303 304

O art. 69 do RPCM previa o mínimo de três testemunhas. Fl. 153 e 158 do PC/1900/General Carneiro.

200

Alferes relatou que foi ao local em cumprimento à ordem insistente do Major Felix Amorim e não conseguiu se aproximar “em virtude da saraivada de pedras, tiros e garrafas que do alto onde era colocada a casa teatro do movimento partia em todos os lados”. À saraivada, que partia de todos os lados, o Alferes disse não conseguir identificar se os autores eram praças ou polacos. Fez afirmativas mais ousadas, por exemplo, de que a carabina (que entregou a Sebastião, e que este repassou a Marcelino, com quem se encontrava a arma ao final do conflito) foi disparada três ou quatro vezes, e que ouviu tiros de armas de diversos sistemas. Admitiu que nenhum soldado foi ferido por arma de fogo. Talvez a afirmação mais marcante, nesse momento, seja a de que não dispunha de praças que o acompanhassem e, sendo desconhecido na colônia, onde estava há nem um mês,305 receou não ser atendido em sua autoridade. O Major Amorim teria insistido em que fosse acompanhado dos que vieram lhe avisar. Ou seja, como acalmar os ânimos se dispunha apenas de soldados insubmissos que já se encontravam em meio à confusão? O tom dramatúrgico da narrativa do oficial, levado, por força das ordens que não pôde se negar a cumprir, a resolver uma encrenca que os soldados promoveram com a população em derredor, justifica sua impossibilidade de agir e esmaece alguma visibilidade que pudessem ter as agressões e os disparos que resultaram em mortes – todavia, aposta em generalizações. Dos dois lados – soldados e polacos – atiravam-se pedras e garrafas. Insinuou que outras armas foram disparadas e não há algum esforço em livrar as praças. Torres não tinha maior familiaridade com os soldados, devido ao tempo curto em que estava nesse destacamento e, se alguma aproximação havia entre o comandante e seus subordinados, foi definitivamente rompida. A posição que adotou foi a do oficial que em tudo procedeu com o zelo necessário: cumpriu as ordens de seu superior, prestou-lhe contas, levando-lhe “todo o fato” ao seu conhecimento e tomando “todas as providências” necessárias para cuidar dos feridos. Os excessos que cometeu e procurou justificar foram contestados pelos demais depoimentos. Sobre as armas de diversos sistemas, por exemplo, levou uma carabina e um revólver e lá havia uma arma de caça – não há nenhuma afirmação, nem entre testemunhas e nem entre indiciados, de que alguém portasse alguma outra arma de fogo naquele momento –, ou seja, seria improvável ouvir tiros de diversos sistemas. 305 Segundo sua fé de ofício, Torres seguiu para a conservação das estradas estratégicas, em Jangada, em maio de 1900. O jornal A República, (Curitiba, ano 15, n. 105, 15 maio 1900. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em 20 jun. 2015), diz que o Alferes partiria à Jangada no dia seguinte.

201

Os depoimentos dos demais réus são agora mais comprometedores. Eles assumem que arrombaram uma parede da casa e fizeram uma busca em seu interior (Sebastião306), que os polacos se defendiam quando eram atacados, que se esconderam e fugiram, e só aí os ataques cessaram. Também não poupam acusações, especialmente ao Alferes Torres e ao Cabo d’Esquadra Marcelino, apontado por todos como autor de disparos (“Disparou, por ordem de Torres, a torto e a direito”, disse João Antonio). De Torres, o soldado João Antônio afirmou que o oficial ordenou às praças que “avançassem, atirassem e matassem que ele assumia a responsabilidade” e, de volta ao acampamento, disse “que seu revólver não mentia fogo e que tinha morto um polaco” (Alfredo). A alegação do Alferes Torres, de que receou não ser respeitado em sua autoridade, permite-nos retomar o debate em torno de conceitos de hierarquia e disciplina. É a primeira vez que Torres se reporta às razões pelas quais agiu, revelando certa fragilidade e insegurança, e praticamente assumindo parcela da culpa. Sua situação vulnerável teria, então, justificado o emprego da violência. Karl Monsma, nos estudos que fez sobre a ação policial no Rio de Janeiro, afirma que, pelo fato de que as praças quase sempre eram recrutadas entre as camadas populares, acabavam por sofrer o desrespeito do povo. Como consequência, “Com a desmoralização dos soldados, os delegados ficavam sem uma força capaz de impor a lei e para fazer-se respeitado pela população. Por outro lado, os soldados também perdiam eficácia quando se aproximavam demais da população local.” (MONSMA, 2008, p. 5). Na defesa apresentada em seguida, o Alferes retomará esse argumento.

5.1.2 Os réus apresentam defesas escritas

Os réus solicitaram um prazo de dez dias para apresentar suas defesas escritas, que o foram em fins de abril e início de maio de 1901 (ver texto completo das defesas anexo). As defesas vêm somar-se a outros documentos – o telegrama emitido por Felix Amorim, a parte dada pelo Alferes Torres, os depoimentos e os quesitos – que falam de forma mais direta em nome dos militares, e desvendam o pensamento e comportamento militar (ethos), bem como os paradigmas acadêmico-científicos elaboradas no século XIX. Seu conteúdo converteu-se

306

Por ser menor de 21 anos, foi nomeado um curador, Alferes Narciso Antonio Bizarro, do 39º Regimento de Infantaria, vindo do Mato Grosso. O cap. XVI do RPCM trata dos advogados e curadores.

202

em uma espécie de ampliação das defesas breves constantes dos quesitos formulados anteriormente. Percebe-se que as defesas foram construídas por terceiros, advogados e curadores, detentores do “poder das letras” (MACHADO, 2008, p. 82) e mais instruídos. Começam em terceira pessoa – o defensor do réu falando –, e em determinados trechos introduzem a voz do réu, ou seja, falam em primeira pessoa, como se ele próprio é que estivesse a escrever, e, em alguns momentos, especialmente nas defesas dos soldados, é difícil saber até onde vai a posição do soldado, e até onde reflete posicionamentos dos autores desses textos, oficiais em alguns casos. As defesas nos ajudam a prosseguir nos esforços de construir um pequeno perfil dos réus e desse capital de influências, constituído de informações e apoios que foram capazes de acumular, ampliando o que já foi possível perceber, mesmo que de forma tímida, no momento da proposição dos quesitos. Esses dois materiais diferenciam-se um pouco dos depoimentos, em que – sem negar sua importância e riqueza como fonte – a etiqueta e o papel do escrevente uniformizam e padronizam as falas, promovendo certa alteração em seu conteúdo. Ao contrário das defesas apresentadas pelos soldados, mais afastados dos modelos formais de expressão, que assumem um tom defensivo, a defesa de Torres307 é ofensiva. É, seguida da defesa de Herculano, a mais bem elaborada; e nota-se que o réu conta com subterfúgios extremamente caros nessas situações, como a instrução, o conhecimento da legislação e do que diziam juristas respeitados à época (os “assombros” e “notáveis” da jurisprudência; expressões empregadas pelo Alferes, comuns em documentos dessa natureza), dos meandros da justiça, bem como das solidariedades de pares que detêm esses saberes/poderes. A defesa inicia com elogios ao(s) Juiz(es), de praxe em defesas ou libelos308 construídos por advogados e promotores, lisonjas que, em alguns casos, assumem leve tom de ironia:

Não é uma defesa propriamente, srs. Juízes, que eu venho apresentar-vos. A minha defesa, não a farei eu, estou certo disso, mas sim o vosso claro entendimento, a leitura meditada dos autos, a analyse do depoimento

307

A partir da fl. 169 do PC/1900/General Carneiro. “Libelo – (Lat. libellu.) S.m. Acusação documentada contra alguém de ato criminoso e suas circunstâncias, que se pretende provar, indicando as medidas de segurança aplicáveis ao caso, finalizando pelo pedido da pena para o agente (CP, arts. 471 e 564).” (SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 150).

308

203

testemunhal. Eu limitar-me-ei, srs, si é possível, a auxiliar-vos nessa tarefa, dentro da minha fraqueza intellectual e dentro da lei.

Defesa perspicaz, apela ao que dizem as “provas” juntadas e à lei. O autor não se coloca na condição de quem tem mais conhecimento que os que julgarão, é “limitado”, mas, com base nas provas e na lei, ajuda-os pois, mesmo sendo homens sábios, às vezes, precisam ser auxiliados a verem o que está “óbvio” nos autos. Após ressaltar a hierarquia militar, à qual encontra-se engajado e se orgulha de presar (diz que “Não foi negligente nem imprudente” no cumprimento de seus deveres), relata brevemente o ocorrido, basicamente transcrevendo o que havia comunicado inicialmente ao Major Felix Amorim. Retoma o tom dramático que usou em seus depoimentos, ao narrar um conflito “para o qual se viu arrastado [...] envolvido na onda fatal dos acontecimentos”, que não pôde conter e que, aliás, “ninguém poderia”... O texto faz largo uso de termos como “ódio” (das vítimas e praças) e “sede” (dos polacos), empregados várias vezes309. Não há uma ordem lógica ou coerente na narrativa dos fatos, e notam-se contradições já observadas nos depoimentos. A forma exagerada com que relata o início dos conflitos, estratégia empregada para deslocar a atenção que seus atos despertaram, por exemplo, é já uma forma de eximir-se, já que não dava para identificar quem disparava tantos tiros, e jogava garrafas e pedras. Afirma que, “Logo de chegada, travou-se novo conflito”, que não pôde conter, para, logo depois, dizer que a luta já estava travada, e que o “ódio reinava de parte a parte.” Em princípio, coloca os demais réus na condição de vítimas da provocação dos polacos. A insistência em que o ódio cegara a todos, “exaltados pela cólera, pela sêde de vingança nascido do amôr próprio em sangue”, ou de que “o prazer de satisfazer os ódios que a brutalidade de polacos ébrios excitava até a loucura” termina por apontar a situação incontrolável e de extrema violência e desvario que encontrou como condição de impossibilidade para se identificar, nesse meio, os autores dos crimes. “Quem póde, em consciência, ser responsável pelas consequências de um conflicto que [se] arma assim, de um

309

Código da Armada, art. 26: “Não são tambem criminosos: § 1º Os que praticarem o crime para evitar mal maior; § 2º Os que o praticarem em defesa legitima, propria ou de outrem. A legitima defesa não é limitada unicamente á protecção da vida; ella comprehende todos os direitos que podem ser lesados.

204

momento para outro, bruscamente, inesperadamente, á semelhança de uma tempestade?”, pergunta310. Reporta-se, em seguida, aos depoimentos das testemunhas/vítimas. Questiona se podem ter verdadeiramente o valor de testemunhas que, na frase (bastante citada à época) de Bentham, são “os olhos e os ouvidos da justiça”. Bentham311 não é o único a ser citado, também o são Mittermaier e Helie, com as obras Tratado de Provas e Instruction Crimminalle, respectivamente. Considera que as testemunhas são frágeis, pelo fato de serem amigos, patrícios e familiares da vítima Mikilita (o menor Lucio, quase invisível ao longo do processo, praticamente caiu no esquecimento). Após argumentar que algumas testemunhas não dominavam sequer a língua portuguesa, e de que se tratava de uma noite escura, a defesa despenca em verdadeiro tratado xenófobo, conforme se nota neste fragmento:

Eis ahi, srs juízes, o depoimento testemunhal dos amigos, patrícios e parentes do infeliz Mikilita. Além de contradictorios, como vistes, ellas trazem em si a macula original. São almas empenhadas em lucros certos, em indenizações largas e apetitosas. Nenhum de vos ignora a cobiça viroosa (sic) que reina no coração desse povo. Desde que lhe acenam com a esperança de lucros fabulosos, é capaz de tudo. Accusa pai e mãe si for mister. Accusa, accusa, accusa. Accusa a torto e a direito, não pelo interesse da justiça, mas pelo interesse das algibeiras. E é tal a precipitação em accusar que pouco se lhe dá de ir deixando a cada passo, aqui e alli, o sulco da contradicção flagrante, e onde vai brilhar mais tarde, felizmente, a luz serena da razão. Quando a justiça militar apresentou-se na Colonia General Carneiro, lugar onde não fui ouvido, os polacos fizeram uma procissão de lagrimas e de horrores. Era um desfilar de aleijados, cegos, mudos, paralyticos. E tendo como alviu (?) do alferes, e tudo por sete contos de reis, pouco mais ou menos. (Grifos nossos).

Para a defesa, os polacos trazem a “mácula original”, ou seja, são naturalmente (biologicamente) inclinados ao comportamento inadequado e inaceitável; almas empenhadas apenas em lucros. Torres faz uma inversão total de motivos: não se trata mais de explicar os

310

Ainda que não cite diretamente o Art. 26 do Código da Armada, é basicamente com§ Primeiro que irá construir os argumentos de sua defesa: “Não são tambem criminosos: § 1º Os que praticarem o crime para evitar mal maior; § 2º Os que o praticarem em defesa legitima, propria ou de outrem.” 311 João Batista da Silva Fagundes, assistente militar do Superior Tribunal Militar, em seu texto “O Posto e a Patente perante o Conselho de Justificação”, publicado em 1974, citou Bentham: “O direito é um mínimo de moral”. O autor iniciou seu texto da seguinte forma: “Ensina JEREMY BENTHAM que o Direito e a Moral podem ser comparados a dois círculos concêntricos, nos quais o pequeno círculo do Direito é envolvido pelo círculo amplo da MORAL.” (Revista de Informação Legislativa, out.-dez. 1974, p. 119. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2015. O texto demonstra as leituras e apropriações que se fez da obra de Bentham, nesse segmento da intelectualidade.

205

crimes praticados, que perdem importância, mas de analisar a natureza dos polacos, sendo esta, e não outra, nas insinuações que faz, a razão das acusações que lhe foram imputadas. Segundo Mariza Corrêa,

Se o crime é um questionamento, uma quebra de determinada regra jurídica, ele servirá ao mesmo tempo como pretexto para o escrutínio da adequação ou não do acusado (e da vítima) a outras normas de convívio social e ao seu reforço ou enfraquecimento. [...] Esses fatos e atos referidos serão assim considerados signos da inclusão ou exclusão de determinada pessoa nos limites do aceito, do permitido, do adequado. (1983, p. 24, 26).

A principal estratégia da defesa de Torres consistiu em estabelecer um claro contraste entre sua conduta, adequada, prudente e o comportamento inadequado, ilícito, da vítima (CORRÊA, 1983, p. 61). Era um conflito entre os membros efetivos da sociedade nacional e os outsiders. Nada fala sobre as acusações que lhe fazem, não se defende diretamente; sua defesa consiste no ataque. Quem, dos sujeitos que falam no processo, poderia alegar que os polacos fossem o oposto do que Torres afirma? Quem sairia em defesa de sua dignidade? O discurso do Alferes é revelador de práticas que Norbert Elias denominou de “sociodinâmica da estigmatização”, as condições em que um grupo, em condições de monopolizar certas oportunidades de poder, consegue lançar estigmas sobre outro grupo, forçando-o a uma situação de marginalidade. Na comunidade que o autor estudou – e em outros lugares também –, determinados membros estigmatizavam os de um outro grupo “não por suas qualidades individuais como pessoas, mas por eles pertencerem a um grupo coletivamente considerado diferente e inferior ao próprio grupo” (ELIAS, 2000, p. 23). Segundo Claudia Mauch (2011, p. 19), os militares,

Muito mais do que o recurso a um “espírito de corpo”, suas defesas se baseavam nas demonstrações de apreço por valores e comportamentos vinculados à moral e bons costumes, à ordem, mesmo que para eles tais valores tivessem diferentes significados. Quando se viam na contingência de explicar suas ações, de se defenderem de acusações, lançavam mão dos argumentos preconceituosos, dos estereótipos e estigmas largamente difundidos no período, mostrando que as estratégias de desqualificação moral, social e racial dos adversários não era de domínio exclusivo dos bacharéis em direito que atuavam nos tribunais.

As ponderações de Torres refletem o racismo presente nos postulados científicos emergentes entre a intelectualidade do século XIX, que testemunhou a emergência do Positivismo comtiano, e o advento da Criminologia, ciência que buscava explicações e

206

soluções “científicas” e não sociais para o problema do crime. Na defesa de Torres, os grandes transgressores são as vítimas, que deturpam a verdade em nome de lucros e motivados por perversas inclinações natas. Foi com obras como L’Uomo delinqüente (1876), de Cesare Lombroso, e Sociologia Criminale (1891), de Henrique Ferri, grandes representantes da Escola Positivista, com seu conceito de criminoso nato, que a Criminologia consolidou-se como um campo do conhecimento com status de ciência. Conforme Dornelles (1992, p. 29), Lombroso concluiu, através de estudos realizados em prisões, que o criminoso seria uma pessoa problemática, o que derivava justamente de sua inferioridade biológica; até sua fisionomia era diferente das pessoas normais, uma pessoa “fora dos padrões do desenvolvimento biopsíquico normal, assemelhado aos selvagens, negros e orientais, ou com traços semelhantes ao do macaco”312. A partir de tais constatações, Lombroso instituiu uma tabela para delimitação do criminoso, considerando-o a partir de elementos anatômicos, psicológicos e sociológicos. Também classificou os tipos de crimes a partir do local do sujeito, em dois grandes grupos:

[...] crimes cometidos por atavismo (típicos das sociedades pouco esclarecidas e nas classes populares pobres, rudes, privadas de cultura e das luzes da ciência, como a martirização, as pancadas, as mutilações, os homicídios voluntários realizados por meio de machados, cacetete); e os crimes cometidos por evolução, que se cometeriam nas sociedades civilizadas: envenenamentos lentos e sistemáticos, como na administração progressiva de veneno, sugestões hipnóticas, a fim de incitar o indivíduo ao crime, às vinganças pessoais refinadas, à chantagem, commérages mentirosos e outros vícios de tortura. (CANCELLI, 2001, p. 41-42).313

312

Indivíduos com tendências natas ao crime ou à imoralidade (“mácula original”) poderiam ser identificados por meio de características psicológicas ou físicas, como “nariz freqüentemente aquilino, adunco, sempre volumoso; as mandíbulas fortes, as orelhas compridas, largos os zigomas; crespos, abundantes e escuros os cabelos, a barba freqüentissimamente rara: muitos desenvolvidos os caninos” (RAFFAELO GAROFALO apud MOTTA, Cândido. Classificação dos criminosos: introdução ao estudo do Direito Penal. São Paulo: J. Rossetti, 1925, p. 89). Raffaelo Garofalo foi professor da Universidade de Nápoli e senador em 1909. Juntamente com Lombroso e Ferri, compunha o trio mais famoso da Criminologia e da Escola Positivista, da qual foram fundadores (Cf. CANCELLI, op. cit, p. 30). 313 Peter Beattie cita um caso exemplar: um Anspeçada que matou a esposa e o amante, um companheiro seu, e o Alferes que fez a defesa alegou tratar-se de um “filho do norte; é um desses organismos meridionais, essencialmente nervosos, apaixonados e ternos, vibrantes e langorosos, leais e dignos, impulsivos e ardentes que o sol do Ceará costuma impelir para as regiões Amazônicas em busca de trabalho [...]” (BEATTIE, op. cit., p. 296).

207

No Brasil, as concepções da escola criminológica de Lombroso foram muito aceitas por juristas e médicos envolvidos com os problemas criminais314. A caracterização que o Alferes Torres fez dos imigrantes polacos era comumente aplicada aos negros brasileiros. Para Marcos Luiz Bretas (2002, p. 16), “O aparato teórico europeu, em sua aplicação brasileira, encontrava nos elementos estranhos do que seria a sociedade brasileira – estrangeiros ou negros – as razões da desordem.” Veja-se também a forma como o curador do réu Sebastião referiu-se aos soldados:

É sabido que em face da lei não podemos cumprir ordens absurdas; mas também é sabido que o espírito de semelhante Lei ainda não poude ser comprehendida pelos nossos soldados, que em sua totalidade emergem da ultima camada social; por consequência alheios a sublime luta do espirito que sabe distinguir o bem do mal, a ordem da desordem [...]

Ordem e desordem são como duas faces de uma mesma moeda, e é interessante a referência que a defesa faz acerca da necessidade, insistentemente apregoada nos discursos dos republicanos, de se distinguir as duas condições. Georges Balandier defende o lugar da “desordem” nas sociedades modernas, como elemento propulsor de mudanças, embora seja ela temida, como elemento desagregador da sociedade, do corpo uno.

A ordem e a desordem são como as duas faces de uma moeda: indissociáveis. São dois aspectos ligados ao real, sendo que um, baseado no senso comum, parece ser o inverso do outro. Em uma sociedade tradicional que se define em termos de equilíbrio, de conformidade, de estabilidade relativa, que se vê como um mundo civilizado, a desordem se torna uma dinâmica negativa que cria um mundo ao contrário. (BALANDIER, 1997, p. 121).

No âmbito da medicina, também é possível encontrar, avançando-se em período considerável do século XX, as influências da escola lombrosiana. Veja-se a anamnese315 datada de 14 de janeiro de 1946, emitida pela penitenciária do Estado de Santa Catarina e assinada pelo médico chefe da seção médica, e juntada ao processo instaurado para apurar um crime ocorrido em 1939:

314

Também influenciaram pensadores brasileiros a antropogeografia de Friedrich Ratzel, o determinismo de Gustave Le Bom e teorias racistas de Pole Ludwig Gumplowicz (Cf. LEVINE, Robert M. O sertão prometido: o massacre de Canudos no Nordeste brasileiro, 1893. São Paulo: Editora da USP, 1995, p. 22). 315 “Reminiscência, recordação, e que, em medicina, indica tudo que se refere à memorização dos sintomas da doença atual (queixa, duração e história pregressa da moléstia atual), de como participam os outros órgãos e aparelhos no curso da doença atual, os antecedentes pessoais e os antecedentes familiares.” (RAMOS JR, J. Semiotécnica da observação clínica. Rio de Janeiro: Sarvier, 1996, p. 7).

208

Antecedentes familiares: O pai é sadio. A progenitora sofre de reumatismo e enxaquecas. Os irmãos são sadios. Um deles pereceu – afogado. Antecedentes pessoais: a) fisiológicos: sem importância. b) patológicos: acusa as molestias próprias à infancia. c) sociais: tabagista moderado. – EXAME GERAL – Facies: Atipica. Tipo morfológico: hipoestênico. Atitude: - drambulatória. Musculatura: normalmente desenvolvida. Panículo adipôso: escasso. Pele bem nutrida, apresentando uma cicatriz linear no antebraço esquerdo, consequencia a ferimento, com facão. Fâneros: normais. – EXAME DOS APARELHOS – O exame dos diversos orgãos e aparelhos e também do sistema nevôso: não revelou anormalidade. – ESTADO MENTAL – A inteligência é mediana. Os seus conhecimentos se restringem ao curso primário freqüentado com aproveitamento neste Presídio. A atenção e memoria são normais. A percepção e associação de ideias processam-se com presteza. A ideação é pobre. A interpretação é precisa. O senso de critica, justo. O temperamento é calmo e ordeiro. Não patenteou em nenhuma ocasião tendências litigiosas ou – brutais. A afetividade é normal. A sensualidade não é pervertida nem aberrante. (Grifos nossos)316.

Após uma caracterização preliminar de antecedentes familiares e condições físicas, o médico reporta-se a caracteres de caráter subjetivo, que envolvem aspectos psicológicos, intelectuais e afetivos. Segundo Elizabeth Cancelli (2001, p. 95), com tais diagnósticos, “procurava-se uma simbiose entre a ciência e o direito317, a fim de que a ciência pudesse responder às indagações sobre os supostos segredos íntimos da personalidade do criminoso”. Num curioso boletim emitido pela subdelegacia de polícia de Xanxerê em 8 de julho de 1941, a respeito do réu, entre outras anotações, lê-se: “Estado mental: Bom. Carater: Mau. Moralidade: Boa. Habitos: Bons.”318 Ou seja, emitiam-se pareceres que iam além de constatações levantadas por meios objetivos, como exames físicos, análise de antecedentes familiares ou hábitos de vida do paciente/réu. Nos exemplos citados, o discurso médico era um elemento a mais, vindo da ciência, no auxílio do direito; e, para além das razões patológicas, encerrava um complexo conjunto de referências de cunho moralista319. A influência desses estudos, segundo Michel Misse, terminou por determinar a ação policial. O autor refere-se a um “estoque ancestral de imagens lombrosianas que a polícia acumulou ao longo dos anos: os sujeitos ‘manjados’ (e sua generalização para outros tipos 316

Apud MARQUETTI, op. cit. p. 73. Observe-se que, na esfera cível, o réu Sebastião Bento Thomaz do Nascimento foi defendido por um médico,doutor Bernardo Ribeiro Vianna, da cidade de Palmas. 318 Apud MARQUETTI, op. cit., p. 74. 319 Em relatório emitido pela penitenciária no PC/1939/Xanxerê (Comarca de Xanxerê) fl. 102, lê-se: “Não encontramos nada, no seu pedido, que, à exceção da falta apontada, se insurja contra a medida. E essa falta cede à compreensão de que ‘as penitenciárias não formam almas para o céu, mas selecionam, darwinicamente, elementos para a sociedade’.” Ibidem, p. 74. 317

209

sociais), que a polícia pensa que conhece e que, portanto, pode incriminar por ‘antecipação’” (MISSE, 2008, p. 23-24). A defesa de Torres é um pré-julgamento das ações das vítimas e soldados; ao denegrir a imagem desses sujeitos, procura racionalizar os seus próprios preconceitos (LEVINE, 1995, p. 31). Essa ação policial moralizante das Forças Armadas pode ser entendida no contexto da implantação da República, no momento de significativas transformações pelas quais passava o conjunto da sociedade brasileira, e remonta aos tempos coloniais.

Em parte, a falta de guerras intensivas levou as Forças Armadas coloniais e milícias nacionais do Brasil a realizarem outras funções (com base em Caio P. Junior). O papel do Exército como carcereiro e força policial constituía uma parte mais consistente de seu trabalho do que o dever transcendental de defender o Brasil das invasões inimigas e de treinar homens para guerras “convencionais”. (BEATTIE, 2009, p. 213-214).

Na sequência de sua defesa, Torres questiona, indiretamente, a atuação da Justiça Militar, que ouviu testemunhas sem que ele estivesse presente. Da forma como agiu e justificou suas ações, deduz-se que o questionamento, além de uma reivindicação que lhe cabia por direito, de se resguardar, restou como uma insinuação de que, se estivesse presente, a exemplo do que fez Anastácia em Curitiba, as testemunhas não o teriam acusado da forma como fizeram. Citou outro jurista, Helie, que, em sua obra Instruction Crimminalle, trata sobre os interesses de testemunhas, os quais podem estar em jogo influenciando e modificando a “verdade” dos fatos: “A mais temível é o interesse pessoal: animado de um interesse qualquer, o homem não póde ser mais imparcial; sua consciência se perturba; elle não contempla as cousas sinão atravez dos prejuízos sofridos ou dos interesses a lucrar.”320 Reduziu toda a gravidade dos conflitos a um mero pretexto para o desabrochar de interesses pessoais, de desejos de lucro – 7 mil réis, segundo o Alferes. Aqui o Alferes emprega um valor simbólico para ilustrar seus argumentos, de que os polacos, acusando-o, tinham em mente obter algum tipo de dividendo financeiro. A defesa prossegue colocando em xeque também a validade dos depoimentos das praças, seus corréus no processo, que, “tomados de temor e covardia”, se acusaram uns aos outros, e “cujo ideal único é salvar-se a todo o pano da responsabilidade que lhes possa

320

Trata-se da seguinte referência: HÉLIE, Fautin. Traité de l’Instruction Criminelle ou Théorie du Code d’Instuction Criminelle. Bruxelles: Bruylant-Christophe, 1863. v. I.

210

caber”. E, por fim, reporta-se a informações que lhe inocentam, prestadas por dois colegas do destacamento que aparecem aqui pela primeira vez, antecipando o teor dos depoimentos que solicitou, ao final, fossem ouvidos em sua defesa, com base nos seguintes quesitos: “1º Sabe si o revólver do alferes estava carregado logo depois do conflicto? 2º Ouviu a declaração dos soldados Sebastião Bento Thomaz do Nascimento e João Antonio da Silva, dizendo que Mikilita e Lucio foram mortos no primeiro conflicto?” A defesa de Torres combina sua postura chauvinista com a preocupação dos líderes republicanos em garantir uma transição isenta de ameaças revolucionárias, ou, no mínimo, de manifestações desordeiras. Imigrantes e praças são desvairados e não possuem valores, mas contravalores como medo, covardia e desejo de lucros. Logo após as defesas dos demais réus321, encontram-se depoimentos breves e lacônicos das testemunhas de defesa de Torres, que responderam aos quesitos que arrolou ao final de sua defesa. Os dois primeiros depoentes foram os que o Alferes citou no texto da defesa. João Fleury de Souza Amorim322 respondeu ao primeiro quesito dizendo que o revólver de Torres encontrava-se carregado depois do conflito, ao chegar ao acampamento, não mostrando vestígio algum de ter sido disparado. Ao segundo quesito, respondeu que não ouviu declaração dos soldados de que Mikilita e Lúcio tivessem sido mortos no primeiro conflito, mas ouviu-o de outras pessoas, entre elas, a filha do próprio Mikilita. A segunda testemunha, Ephigenio Xavier323, respondeu aos quesitos da seguinte forma: “1. Soube por ouvir dizer que o revólver estava carregado logo depois do conflito. 2. Respondeu afirmativamente”. A terceira testemunha, João Antonio da Costa324: “1. Não sabe. 2. Os soldados declararam a ele que Torres e eles estavam sofrendo injustamente por um crime que não praticaram, por isso que os autores das mortes foram Alfredo e Marcelino, antes do Alferes chegar ao conflito”. E, por fim, a testemunha Arthur Abreu de Azevedo325: “1. Sabe por ter ouvido dizer pelo alferes Fleury. 2. Não sabe”. As declarações das testemunhas levadas por Torres revelam a falta de uma voz uníssona que isente o Alferes. A maior parte das respostas é negativa ou simplesmente trata de coisas que “ouviram dizer”.

321

Fl. 185 do PC/1900/General Carneiro. Irmão do Capitão Antonio Felix de Souza Amorim, o comandante do destacamento. Natural de Goiás, 28 anos, casado, Alferes do 39º Batalhão de Infantaria. 323 Natural do Paraná, 16 anos, solteiro, segundo Sargento do 13º Regimento. 324 Natural de Pernambuco, 25 anos, solteiro, ex-praça. 325 Natural do Paraná, 25 anos, solteiro, Alferes do 13º Regimento. 322

211

Quanto às argumentações, o Alferes, no quesito número 2, aproveitou-se da fragilidade do depoimento de Anastácia, prestado em Curitiba, para criar uma brecha que lhe absolvesse completamente das acusações, pela possibilidade de que as mortes tivessem se dado antes de sua chegada. Nesse momento, demonstra a fragilidade de seus argumentos, já constatada no próprio texto da defesa, em que se reporta às mortes da seguinte forma: “Eu não tratarei de descrever o conflicto, apenas direi que reinou durante todo o tempo em que se deu a maior confusão possível. Praças e polacos confundiram-se no meio dos tiros e das facadas, que partiam de uns e de outros. Houve mortes e muitos ferimentos. Morreram Mikilita e o menor Lucio.” Ou seja, o Alferes atestou que as mortes se deram nesse momento de “confusão”. A contradição torna-se ainda mais evidente quando questiona as testemunhas de defesa sobre a morte do menor Lucio ter-se dado no primeiro conflito: há um documento inconteste, o exame de corpo de delito, que, feito às 7 horas do dia em que os conflitos ocorreram, não atesta que o menor estivesse morto, apenas bastante debilitado.

5.1.3 Autoridade e hierarquia no interior da Comissão Estratégica

A evocação do respeito à hierarquia, com a obediência às ordens de autoridades superiores, foi-se tornando, desde o início das investigações, a principal justificativa para os crimes, conforme alegado tanto pelas praças como pelo Alferes Torres. A autoridade é aqui analisada com base em autores que a definem em termos de sua aproximação com outra noção, a de hierarquia. Partamos das considerações de Mario Stoppino (1998, p. 88):

Um primeiro modo de entender a Autoridade como uma espécie de poder seria o de defini-la como uma relação de poder estabilizado e institucionalizado em que os súditos prestam uma obediência incondicional [...]. Dentro dessa concepção, temos Autoridade quando o sujeito passivo da relação do poder adota como critério de comportamento as ordens ou diretrizes do sujeito ativo sem avaliar propriamente o conteúdo das mesmas.

As considerações do autor nos ampliam a compreensão de como se estabelecem e se perpetuam essas relações de poder fundadas na hierarquia. A obediência à autoridade pauta-se na aceitação tácita de que essa autoridade é institucionalizada e, portanto, legítima. Ou seja, sua existência justifica-se quando evocada a lei.

212

Para Stoppino, a crença na legitimidade da autoridade não se constitui em fundamento exclusivo do poder, mas, antes, é apenas uma de suas bases. O autor aponta ainda outras variáveis que concorrem para a pretensão que tem aquele que manda, de ser obedecido: “O detentor do poder pretende obediência não só por força da legitimidade de seu poder, mas ainda com base na possibilidade de obrigar ou punir, aliciar ou premiar.” (1998, p. 91). A obediência a uma autoridade, legalmente constituída, foi o argumento no qual todos os réus se pautaram, sendo a autoridade exercida pelo Alferes Torres a mais visada, nos depoimentos dos soldados e no posicionamento de parte dos oficiais que apuraram e julgaram o caso. Pode-se presumir que isso se deva pelo fato de que houve abuso, ou seja, pela postura assumida pelo próprio Alferes, que chamou para si a responsabilidade. Ou, ainda, porque seria o Alferes alguém com condições concretas de ter evitado o desfecho que o caso teve. O Alferes Torres cumpria ordens, e isso argumentou desde as primeiras vezes em que se manifestou. Os Soldados Sebastião e Alfredo também afirmaram, de forma clara, em suas defesas, que agiram no cumprimento das ordens dadas por Torres. Na defesa de Alfredo, lêse: “Si culpabilidade existe neste processo, toda inteira deve recahir sobre o Alferes Commandante que, ao envez de apaziguar o barulho já começado, dando ordem de prizão ás praças, ordenou logo fogo, instigou-os á luta.” E a defesa de Sebastião assume a coparticipação do réu na autoria do crime, mas justifica:

Dado o caso de ter sido o meu constituinte o auctor de semelhante scena de selvageria, ainda mesmo assim a responsabilidade não lhe poderia caber, por isso que operava sob ordem immediata do seu commandante que ao commetter este grande abuso de autoridade, gritava “Matem que eu respondo”.

No depoimento prestado anteriormente à apresentação da defesa, Sebastião havia afirmado que faria diferente se tivesse recebido ordem diferente. Em suma, tem-se a condição sine qua non no entendimento do que seja a autoridade, tão presente nessas relações hierarquizadas: a obediência inconteste às ordens de superiores, cujo poder de decisão é legitimado pelas instituições.

A obediência baseia-se unicamente no critério fundamental da recepção de uma ordem ou sinal emitido por alguém. A esta atitude do sujeito passivo pode corresponder uma atitude particular até em quem exerce Autoridade. Este transmite a mensagem sem dar as razões e espera que seja aceito incondicionalmente. (STOPPINO, 1998, p. 88).

213

Enfim, uma forma de autoridade institucionalizada em que o subalterno não questiona as ordens que recebeu; mesmo não concordando com elas, em tese, concordou de antemão, ao aceitar, tacitamente, as normas da instituição por ocasião de seu ingresso nela. Tal condição difere de outras formas de autoridade, em que as relações de poder, menos objetivas, se baseiam na persuasão (STOPPINO, 1998, p. 89). Hannah Arendt não compactua com a ideia de que a autoridade proceda da persuasão. Para a autora,

Visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida com alguma forma de violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. (ARENDT, 2000, p. 129).

Partindo das considerações da autora, analisemos o argumento de Torres, que, nesse momento, assume centralidade na justificativa de suas ações: o receio de não ser atendido dado o pouco tempo em que se achava na região onde viviam os polacos, e na qual alguns soldados já se encontravam há mais tempo. O Alferes assume uma fragilidade que lhe impede de agir de outra forma que não seja com o emprego da violência. O diálogo ou a argumentação não demonstrariam eficácia, por dois motivos: porque, estando tão recentemente habitando o lugar, não exercia nenhum outro tipo de autoridade (moral-tradicional ou carismática, por exemplo) sobre seus subalternos ou sobre os polacos; e porque, como a documentação vai revelando, trata-se de um oficial impetuoso e precipitado, que “sabe lidar com o povo” – ao povo, a vara. Carlos José Bernardo da Silva Barracho, partindo de Max Weber, nos esclarece melhor as várias definições de autoridade das quais podemos dispor em nossa análise: A autoridade para o autor [Weber], pode ser distinguida segundo três tipos básicos: a racional-legal, a tradicional e a carismática. Esses três tipos de autoridade correspondem a três tipos de legitimidade: a racional, a puramente afectiva e a utilitarista. O tipo racional-legal tem como fundamento a dominação em virtude da crença na validade do estatuto legal e da competência funcional, baseada por sua vez, em regras racionalmente criadas. A autoridade desse tipo mantém-se, assim, segundo uma ordem impessoal e universalista, e os limites de seus poderes são determinados pelas esferas de competência, defendidas pela própria ordem. Quando a autoridade racional-legal envolve um corpo administrativo organizado, toma a forma de

214

uma estrutura burocrática, amplamente analisada por Weber. (BARRACHO, 2007, p. 230).

As explicações postas pelos réus para os ataques criminosos, construídas a posteriori, nos espaços judiciais, pautaram-se na obediência a uma autoridade legitimada pelo pilar da hierarquia no interior das Forças Armadas – uma forma de autoridade de tipo racional-legal, conforme Barracho (2007, p. 230). Os réus, sujeitos passivos dessa hierarquia, obedeceram (segundo os esforços feitos em juízo para provarem sua inocência) de forma incondicional (STOPPINO, 1998); no caso específico de Torres, com o ordenamento do emprego da força, única forma de exercício de sua autoridade (ARENDT, 2000). Se partirmos do raciocínio dos juízes empenhados em punir os culpados, seria possível afirmarmos que, se o Alferes eximiu-se da acusação de que tenha ordenado o uso da força, sua atitude de partir com praças armadas para o local dos conflitos seria um forte argumento contrário. É possível, portanto, concordarmos com Arendt, de que a autoridade “sempre exige obediência”. Ao negar a tese de que a autoridade possa ser exercida por meio da persuasão, em uma relação igualitária, a autora afirma:

[...] ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. [...] A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum, nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado. (ARENDT, 2000, p. 129).

Está claro que o exercício da autoridade, ainda que de forte caráter hierárquico e estabilizado (STOPPINO, 1998, p. 90), ocorre também fora das instituições mais fundadas nesses princípios, como as militares ou religiosas. Ei-la muito presente, ainda que de forma não tão clara ou identificável, em espaços informais. O receio de Torres fica mais bem entendido quando percebido no contexto da Primeira República, com seu forte componente de participação militar na vida social e política do País, em que a ordem ameaçada por grupos “perigosos” só é mantida pelo trabalho competente, não “negligente e nem imprudente” dos militares, nas expressões usadas pelo próprio Alferes Torres. A desestabilização da ordem é latente, mediante a presença muito concreta de exescravos, estrangeiros e toda sorte de grupos marginalizados que poderiam se converter em “populações perigosas” (MONSMA, 2008). É como afirmou Cláudia Mauch (2011, p. 127):

215

“O reconhecimento de sua autoridade não era, portanto, automático, não vinha costurado na farda”. Imagens de um Exército despreparado e truculento vinham-se acumulando desde o período do Império. A Constituição de 1891 mostrou que se fazia necessário organizar melhor as Forças Armadas brasileiras326, especialmente pelo fato de que, especificamente o Exército, não havia apresentado disciplina e eficácia por ocasião da Guerra do Paraguai, momento em que foi mais firmemente posto à prova (AGUIAR, 1986, p. 21). Para Iberê Moreno Rosário e Barros, a Guerra do Paraguai (e, num segundo momento, a Segunda Guerra) foram momentos de intensa estruturação e fortalecimento das Forças Armadas brasileiras. Segundo o autor “Além do desenvolvimento técnico, houve movimentações políticas e conceituais [...]” (BARROS, 2014, p. 1), ou seja, a atuação do Exército esteve presente nos debates políticos. Luiz Henrique Ewbank, General de Brigada, Comandante das Armas do Estado do Paraná, em junho de 1890, ressalvadas as menções elogiosas de praxe, afirmava que a Pátria tinha, naquele momento, os olhos fitos nos componentes das Forças Armadas.

Vós, officiaes e soldados da guarnição de Curityba, pelo garbo e altivez com que trazeis a farda e pela severidade que mostrais no desempenho dos vossos deveres militares, subis, elevando nobremente o vosso nome, á gloriosa altura de verdadeiros e dignos depositarios dos louros colhidos pelos heroicos veteranos das Campanhas Brasileiras. A patria tem em vòs fito o olhar. [...] a garantia da ordem publica, hoje, mais do que nunca, necessária ao seu effectivo desenvolvimento; tudo está a vós confiado.327 (Grifos nossos).

Para Leonardo Trevisan (1987), o descrédito em relação ao Exército era também resultado de suas ações incisivas no momento da implantação do novo regime, como o ocorrido em Canudos, cujas fraquezas emergiram, vieram à tona quando posto à prova. A guerra havia ocorrido há pouco e era preciso recuperar o respeito e a imagem desgastada. Segundo Rogério Rosa Rodrigues (2008, p. 74), “Para uma corporação que tem como marco a disciplina e a exaltação de suas ações, Canudos foi um golpe forte”, a honra do Exército foi ferida e percisa provar que era confiável.

326

“Art 87 - O Exército federal compor-se-á de contingentes que os Estados e o Distrito Federal são obrigados a fornecer, constituídos de conformidade com a lei anual de fixação de forças [...] § 2º - A União se encarregará da instrução militar dos corpos e armas e instrução militar superior. § 3º - Fica abolido o recrutamento militar forçado.” 327 Ordem do dia expedida em 16 de junho de 1890. A República, n. 144, 18 jun. 1890, p. 3.

216

Para Peter Beattie, tudo isso era indício de que a presença do Exército em meio à população, até o início do século XX, era vista como intrusa – a instituição era sinônimo de ameaça. Segundo o autor, “Para ganhar mais confiança e respeito do público, o Exército procurou prevenir crimes nas fileiras e melhorar a disciplina das tropas.” (BEATTIE, 2009, p. 181). Ao longo do século XX, desde seus primeiros anos, a animosidade popular tendeu a diminuir em relação ao Exército. Submetidos à autoridade militar não estão apenas aqueles que fazem parte de suas fileiras, mas os demais indivíduos membros da sociedade, ou ao menos os que dela precisam mais firmemente, toda essa gama de “desvairados” “contraventores” que compõem o povo, que precisa da ordem, garantia de estabilidade. Ordem, seja qual for, se dá apenas na unidade. Stoppino cita o politólogo H. Eckstein, que propôs um entendimento da política a partir da concepção de “estruturas de autoridade”, definidas como “um conjunto de relações assimétricas, entre membros de uma unidade social ordenados de um modo hierárquico, que têm por objeto a condução da própria unidade social”.328 A disciplina, a ordem, a obediência e todos os demais atributos esperados dos pertencentes aos corpos armados, que lhe conferem estabilidade, por consequência, devem ser naturalmente expandidos para o corpo social como um todo. O Alferes Torres alegou ter enfrentado uma condição desconcertante. Estava há pouco numa região difícil, conforme descrita anteriormente, pelo fato de ser estratégica (a defesa de Alfredo lembra esse detalhe, ao reportar-se a Torres como o comandante do destacamento “estacionado na zona estratégica do Estado”) e a isso se somou a instalação de famílias de imigrantes, além dos ataques frequentes de comunidades indígenas que há tempos representavam um desafio ao seu desbravamento. Era a essa área que o destacamento comandado por Torres tinha a missão de levar o progresso, sendo a construção da estrada a melhor expressão desse “ato civilizatório”. Karl Monsma, estudando a ação policial em momentos de modernização das cidades, aponta para vários estudos que demonstram que “o uso indevido da violência pela polícia tipicamente ocorria quando policiais se sentiam desacatados ou desafiados” (2008, p. 4). Torres sentiu-se desafiado em sua autoridade; ora, segundo Monsma (ibidem, p. 5), “o desafio público a uma autoridade, sobretudo quando não reprimido, coloca em questão o direito de mandar e incentiva o desacato de outros subalternos” 328

H. ECKSTEIN, Authority patlerns: a structural basis for política/ inquiry. Amencan Political Science Review, v. LXVII, p. 1142-1161, 1973 apud STOPPINO, 1998, p. 89.

217

Tolerar o desafio às autoridades, por parte do povo, significava colocar essa mesma autoridade em risco, o que, em última análise, poderia fazer ruir o edifício social. Por isso importava “controlar e educar o povo” (ROCHE, 2004, p. 16). Nessa empresa, as autoridades policiais contavam com o auxílio dos inspetores, como o inspetor policial ou o inspetor de quarteirão, espécie de “homem da lei”, membro da comunidade, que exercia um poder de polícia em nível muito local. Em Jangada, outro exemplo de uma situação de desafio à autoridade foi registrado no ano de 1908: o inspetor policial José Tesseroli, negociante local, teve uma altercação com o lavrador Manoel José de Sant’Ana, após ordenar que este prendesse um seu animal que fazia estragos nas plantações vizinhas. Manoel sacou de um revólver e ameaçou Tesseroli, que lhe deu voz de prisão. Manoel retirou-se a cavalo, não atendendo a ordem do inspetor. A denúncia do promotor argumentou que o inspetor, “para manter sua autoridade”, fez imediatamente uma escolta, que seguiu ao encalce do denunciado e o trouxe à sua presença329. Retomemos as ideias de Hannah Arendt, de que, sendo que a autoridade exige obediência, a relação torna-se, portanto, autoritária (ARENDT, 2000, p. 129). As praças alegaram, de forma implícita, que a atitude de seu comandante foi autoritária. O Alferes deu ordens de atacar e eles obedeceram, ainda que, em tese, não concordassem com o teor da ordem recebida (lembre-se a declaração do Soldado Sebastião, de que agiria de forma condizente com outra ordem se a tivesse recebido). Há que se considerar que uma obediência cega e total encurvamento à ordem hierárquica jamais podem ser encarados como realidade concreta, trata-se de “um tipo ideal difícil de ser encontrado na realidade” (STOPPINO, 1998, p. 91). Vejam-se, por exemplo, as fés de ofício dos réus e os mapas estatísticos criminais: ainda que no Relatório do Ministério da Guerra (1900) afirme-se que o problema da disciplina jamais ofereceu dificuldades devido às “notaveis qualidades que enaltecem o caracter do soldado brasileiro”330, os dados desses documentos são provas contundentes do contrário. A atitude autoritária, ou de “grande abuso de autoridade” como alegado na defesa do réu Sebastião, e presente nas demais defesas e depoimentos dos corréus de Torres, vislumbra-

329

IP/1908/General Carneiro. MALLET, João Nepumoceno de Medeiros [Relatório] maio 1900, apresentado ao Presidente dos Estados Unidos da República do Brasil, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN), p. 8. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. 330

218

se como uma construção discursiva, construída, como dito antes, a posteriori, no momento em que os atos se transformaram em autos (CORRÊA, 1983, p. 40). Nos depoimentos prestados pelos réus, é praticamente unânime a informação de que o Alferes Torres foi chamado, ou seja, de que sua autoridade foi reivindicada pelos soldados, que estavam afastados cerca de 500 metros da casa em que se encontravam as vítimas dos ataques. Para Vitor Claret Batalhone Jr. (2011, p. 334), “Justamente por não implicar uma relação do tipo mando/obediência em sentido estrito é que a autoridade pode ser compreendida como algo que não anula a liberdade daqueles que a sofrem, mas antes, implica uma restrição da liberdade de ação.” Na concepção de Stoppino (1998, p. 93-94), Num dos seus possíveis significados, o termo "autoritarismo" designa, na verdade, uma situação na qual as decisões são tomadas de cima, sem a participação ou o consenso dos subordinados. Neste sentido, é uma manifestação de autoritarismo alegar um direito em favor de um comando que não se apoia na crença dos subordinados; e é uma manifestação de autoritarismo pretender uma obediência incondicional quando os súditos entendem colocar em discussão os conteúdos das ordens recebidas. Portanto, uma situação de autoritarismo tende a instaurar-se todas as vezes que o poder é tido como legítimo por quem o detém, mas não é mais reconhecido como tal por quem a ele está sujeito. E esta situação se acentua se o detentor do poder recorre à força, ou a outros instrumentos de poder para obter aquela obediência incondicional que não consegue mais na base da crença na legitimidade.

As praças somente passaram a questionar as ordens de Torres quando submetidas a inquérito e, posteriormente, a processo judicial. No momento em que se deram os conflitos, se algum questionamento houve, ficou suplantado no momento que reivindicaram sua autoridade, ao mandar chamá-lo. Não consta nos depoimentos que algum deles tivesse, com a chegada do Alferes, procurado convencê-lo da possibilidade de se parar com tudo por aí mesmo. Apesar disso, os conselhos militares se configuraram, para os soldados, em momentos de maior liberdade, em que puderam questionar os critérios de autoridade e hierarquia. Prossigamos na análise das demais defesas. Na do Soldado Sebastião Bento Thomaz do Nascimento331, feita por seu curador, o Alferes Narciso Antonio Bisarro, a fala é desse oficial e traz os postulados pseudocientíficos pontuados anteriormente. Não nega o crime, embora também o justifique como resultante de cumprimento de ordens. Basicamente assume 331

Fl. 175, do PC/1900/General Carneiro.

219

que o réu participou dos atos criminosos, mas insiste em que a responsabilidade não lhe deve ser imputada, e sim a Torres. A defesa de Sebastião prossegue:

É sabido que em face da lei não podemos cumprir ordens absurdas; mas também é sabido que o espírito de semelhante Lei ainda não poude ser comprehendida pelos nossos soldados, que em sua totalidade emergem da ultima camada social; por consequência alheios a sublime luta do espirito que sabe distinguir o bem do mal, a ordem da desordem e acredito mesmo que o meu constituinte e as demais praças envolvidas neste conflicto se tivessem a inteira comprehensão dos seus direitos e deveres, por certo não cumpririão a ordem que lhes foi dada pelo Alferes Torres e quase que afirmo, sem receio de errar, que o fizeram, simplesmente com receio de serem julgados mais tarde pelo crime de desobediência previsto em nossas Leis.

Esses apelos marcam o cruzamento de uma visão lombrosiana da realidade com as tentativas de, por meio desses argumentos, captar a benevolência dos oficiais membros do CG. Assim como a apropriação da legitimidade da autoridade é reivindicada segundo os interesses do momento, também se dá com o uso da noção de disciplina, como se notou no citado relatório de 1900, de que jamais tenha representado dificuldades para o Exército. Os alferes Torres e o curador do Soldado Sebastião são representantes da “boa sociedade”, que veem os soldados como os ingênuos e “bisonhos”332 que não conseguem sequer fazer distinção entre coisas simples. A defesa encerra, sem citar diretamente o nome do Alferes Torres, a quem afirmou deduzir-se que seja o maior culpado, já que, alega, “pela leitura dos autos apenas vê-se, sem auxilio de lentes, o responsavel directo, moral e material, pelo crime a que, por dever de officio, foi arrastado o meu constituinte” – estranha forma de julgar os pares em que, ao mesmo tempo, precisam demonstrar certo brilhantismo nas defesas, mostrar erudição e capacidade. A defesa do Cabo Herculano333 é a mais bem elaborada depois da de Torres. Também houve uma dedicação maior à leitura e análise dos depoimentos, buscando-se encontrar contradições que o inocentem e um de seus principais argumentos foi simplesmente o de que os demais réus queriam comprometê-lo. Usa um tom irônico em relação às testemunhas e aos companheiros, que afirmaram tê-lo visto com a carabina: “Só um grande poder vizual o faria vencer não só a distancia que o devia então separar de nós, como a escuridão da noite, poder 332 O termo bisonho não aparece nos autos, mas na gíria militar é empregado como um rótulo aos soldados ingressantes e inexperientes. Ver Mallet (op cit, 1901, p. 21). 333 Fl. 177 do PC/1900/General Carneiro.

220

que eu supponho muito extraordinário”, é a frase usada para se referir a afirmações feitas pelo Cabo Marcelino. Apela para a ética militar, condenando a atitude dos que se esconderam e defendendo o uso da verdade, “que deve ser o apanagio do soldado, que sabe compenetrar-se de sua nobre e elevada missão”. Referiu-se ao companheiro Benjamim Dorotheu, nesses termos: “julgo inadmissível a prudência desse soldado que impassível assistia, com certeza, a distancia, uma luta em que estavam empenhados companheiros e um official, não se movendo nem ao menos levado pela generosa intenção de soccorrer algum delles que por ventura estivesse ferido”. Boa parte do texto da defesa é composto de frases prontas, extraídas das doutrinas constantes dos documentos internos. Não há nenhum indício em sua fé de ofício que aponte para uma escolarização ou condições de escrever, por si, a defesa. Ao contrário das demais defesas, não incrimina Torres; ao contrário, elogia-o, dizendo: “[...] julgo o mais competente para saber quem condusio essa arma em todo tempo” (Torres afirmou que Marcelino é que ficou, até o final, com a carabina). Ao afirmar que entrou no conflito apenas para defender seus companheiros, cita novamente Torres, ao lado de quem permaneceu a maior parte do tempo: “simplesmente procurei deffender-me e defender a meus Companheiros principalmente o Snr Alfr. [sic] Torres ao lado de quem permaneci quasi sempre.” Na verdade, não aponta nenhum dos demais como culpados, e chega a sugerir que, estando os polacos com armas de fogo, talvez tenham-se ferido a si próprios. Não foi o maior apontado por Torres. Elogiar o comandante e colocar-se em sua defesa pode ser uma estratégia para angariar sua simpatia e proteção, como também a dos demais oficiais que compunham o Conselho. Trata-se de defesa mais sutil, que mantém o nível do diálogo. É ele, Herculano, ou outro, avaliando a postura dos soldados? Como se vê na defesa de Torres, as mortes perderam importância. Se Torres avaliou mais o comportamento das vítimas, a defesa de Herculano focou sobretudo o comportamento dos colegas. A defesa de Alfredo, assinada por ele mas escrita em terceira pessoa – refere-se ao réu como o “acusado” –, é curta. Basicamente culpa os companheiros João Antonio e Marcelino, alegando também que agiu em nome das ordens que receberam do Alferes Torres. Sobre o colega Sebastião, considerou seu depoimento indigno de fé, por ser “uno e singular” e por vir

221

de “um companheiro de armas, com quem, logo após o facto delictuoso, rompe as relações de amizade”. Concluiu responsabilizando o Alferes Torres, do qual não cita o nome, usando-se do argumento já apontado ao longo da defesa: “Si culpabilidade existe neste processo, toda inteira deve recahir sobre o Alferes Commandante que, ao envez de apaziguar o barulho já começado, dando ordem de prizão ás praças, ordenou logo fogo, instigou-os á luta.” Cumpria ordens de seu superior e nada poderia fazer desarmado. Praticamente assumiu a culpa, ao menos parcialmente, ao sugerir que Torres deveria prender as praças, o que quer dizer que, se Torres tivesse mandado prendê-los, teria evitado as mortes. Talvez seja o autor da defesa falando aqui, e não exatamente o denunciado. Questionou de forma inversa a ação do superior, como no caso analisado anteriormente, do Major Francisco de Mello, que alegou que seu superior deveria agir conforme o previsto nos códigos. Trata-se de outras formas de questionamento, pelos subalternos, da hierarquia e ação dos superiores. Fato contrário às acusações de atitudes autoritárias, o que se levanta aqui é a falta de ações imperativas quando a condição de autoridade assim exigia. A defesa de João Antonio, a rogo, é curta e a mais simples de todas. Não acusou nenhum dos companheiros e seu principal argumento foi o de que as testemunhas e os companheiros não lhe fazem nenhuma acusação. Foi o único a assumir a responsabilidade pelo desencadear dos acontecimentos: “Infelizmente fui um dos que se dirigiram á casa dos polacos para pedir um pouco d’água e como essa estivesse feichada foi necessário chamar alguém da casa e por isso bateu-se á porta [...]”. Também é a única defesa que cita a legislação: “Creio mesmo que o artigo 37, § 6 do Codigo Penal da Armada prevê sabiamente este meu caso.” Tal legislação refere-se a casos em que o crime foi cometido como resultado de obediência a ordem superior. Interessante que, dos cinco réus, João é o que tem a mais honrosa fé de ofício (o soldado foi elogiado pela desenvoltura que teve no conflito de Canudos), mas não faz uso dela. Após a juntada das defesas, declarou o Presidente do Conselho que estavam concluídas todas as diligências e observadas todas as formalidades do processo, e concedeu a palavra aos réus para aduzirem as provas que tivessem em sua defesa. Os réus nada alegaram e, então, o Presidente consultou os juízes para ver se queriam mais esclarecimentos;

222

responderam não ter mais nada a questionar. O Conselho reuniu-se na sala das conferências para deliberar, e esta sentença foi lida achando-se os réus presentes334: O conselho, por maioria de votos, absolveu os réus, pelo crime de morte e ferimentos com abuso de autoridade e falta ao cumprimento de ordem legal, porquanto as provas colhidas são insuficientes e fracas, sem fundamento para condenação. Suspensa a execução desta sentença em virtude da apelação necessária interposta para o Supremo Tribunal Militar, na forma da lei335. Sala das Sessões do Conselho de Guerra, Curityba, 14 de maio de 1901. “Vencido. Votei pela condenação do réo Francisco Correa de Torres, Alferes do 13 de Cavallaria, a dous annos de prisão com trabalho, por concorrerem circunstancias agravantes contra o reo, com concurso no grao máximo do artigo 151 do Código Penal da Armada [2 anos]; e pela absolvição dos seus correos, como irresponsáveis neste caso”. Benjamim Americo de Freitas Pessoa. Auditor de Guerra. “Vencido por estar de pleno accordo com o voto do Auditor de Guerra”. Olympio de Carvalho Fonseca, Capitão Presidente. (Grifo nosso).

O Supremo Tribunal Militar declinou de sua competência no julgamento do caso, alegando que, em se tratando de “pacientes [vítimas] paisanos”, os fatos escapam à jurisdição do foro especial militar. Encaminhou-o, pois, ao 5º Distrito Militar, em Curitiba, que o direcionou ao Juiz de direito da comarca de Palmas, doutor José Cesar de Almeida, em agosto de 1901; o 5º Distrito informou, ainda, que as praças encontravam-se presas, preventivamente. O percurso das investigações nos Conselhos de Investigação e de Guerra, este ainda mais abundante em documentação sobre os réus, convocados a se explicarem e terminando mais expostos e, para nossos propósitos, mais conhecidos, suscita-nos importantes considerações acerca do pensamento e comportamento militares e suas fragilidades, bem como das visões a respeito do povo nutridas pela intelectualidade da época, que também nos reportam à ação policial. Também amplia nossa percepção acerca da atuação da Justiça Militar. O conflito, momento da quebra da normalidade, traz à tona a realidade dos sujeitos concretos, e de como interagem, reagem, encaram e aplicam os discursos, normas e estatutos escritos pelas instituições, em situações concretas. É significativa a frase empregada por 334

Fl. 187 e 188 do PC/1900/General Carneiro. “Se os comandantes formavam um conselho de guerra estavam propensos a condenar, ao contrário do que ocorria nas cortes civis brasileiras. O conselho decidia, pelo voto da maioria, sobre um caso, e se culpado, proferia uma sentença. Todas as decisões eram enviadas ao CSMJ e, após 1893, para o STM no Rio de Janeiro para revisão.” (BEATTIE, op. cit., p. 275). 335

223

Torres, em sua defesa, de que os soldados, no segundo depoimento, “desapertaram para a direita”, gíria militar, segundo ele. O emprego de gírias demarca uma linguagem reelaborada e revela um modo muito próprio de lidar com as situações cotidianas. Nos conselhos militares, os réus são convocados a se explicarem e terminam mais expostos. Do Alferes Torres é que temos um material mais abundante, que revela audácia e excentricidade. Sua fé de ofício o descreve, em linhas gerais, como dedicado cumpridor de seus deveres patrióticos, sendo muitas vezes elogiado. Traz a biografia de um militar de iniciativa, de carreira dinâmica. Seus gestos são expansivos e arrogantes. Os depoentes afirmam que ordenou o reinício dos conflitos, que deu ordens para que as praças agissem. A testemunha Estephanio declarou que lhe “meteu o cavalo em cima”. Quando submetido a interrogatórios, ficou claro que se trata de um oficial que conhece os meandros da Justiça Militar. Exigiu que as testemunhas depusessem na sua presença e, em sua defesa escrita, não se defende exatamente das acusações que lhe fazem, mas antes ocupa-se em atacar polacos e praças. Nos quesitos de defesa que propôs para o CG, tentou desqualificar as testemunhas que, inicialmente, foram mais contundentes nas acusações que lhe fizeram. Em seguida, ao propor em seu depoimento outros quesitos para o interrogatório de testemunhas de defesa, as praças é quem procurou desacreditar. Depois do ocorrido em Jangada, sua fé de ofício traz a informação de que, em dezembro de 1900, foi “cassada a permissão que obtivera dessa auctoridade, para ir a caza de sua família competentemente escoltado, digo, acompanhado, em vista do abuso cometido em quinze do corrente que tão levianamente compromettera aos seus companheiros”. O assentamento não dá maiores detalhes do que exatamente o Alferes fez, mas deduz-se que mais uma vez extravasou seus ímpetos, revelando seu modus operandi. Ainda que o amanuense tenha sido cauteloso no ato do registro, como se nota quando corrige a infeliz expressão – “escoltado” – que inicialmente usou para se referir ao acompanhamento do oficial, não escondeu que o ato de Torres, seja qual for, comprometeu “levianamente” seus companheiros. A personagem Francisco Correia Torres volta à cena em 1905, nos registros judiciais. Enquanto aguardava julgamento, na esfera cível, na cidade de Palmas, esteve envolvido em questionamentos e acusações que se fizeram, por meio de um jornal manuscrito, aos

224

servidores do Poder Judiciário da cidade, o que gerou um inquérito policial336, que não teve maiores desdobramentos. As praças estão em uma posição frágil, fazem parte do Exército, que “não têm um lugar definido na teia de trocas e dependências pessoais que definia a sociedade brasileira” (MONSMA, 2008, p. 3). Das defesas das praças, a do Cabo Herculano foi a única a evocar, de forma mais direta, o conteúdo dos estatutos, ao dizer que o emprego da verdade deveria ser “o apanagio do soldado, que sabe compenetrar-se de sua nobre e elevada missão”. Alvos de inúmeras formas de disciplinarização (as fés de ofício revelam um cotidiano de prisões, castigos, capturas...), os soldados eram recrutados para comporem, temporariamente na maior parte das vezes, um corpus que, entre outras funções, uma das quais mais se ufanava era a de manter a ordem, para isso disciplinando corpos e mentes. Embora tenham adentrado as fileiras do Exército, os soldados continuaram a ser vistos e tratados, tal qual outros grupos, como a escória indisciplinada e ignorante. Representavam boa parte da população pobre, que, em sua maioria, não recebeu instrução ou educação, que carrega herança de sofrimento de toda forma de violências (física e moral). São as “sobras do arranjo social” (MENEZES, 1998, p. 3). A ironia está em saber que os aqueles que deveriam auxiliar na manutenção dessa ordem são os mais excluídos dela, são recrutados, mas considerados inaptos, incapazes de discernir entre o que devem ou não fazer, como se nota no modo pelo qual o curador de Sebastião se reportou ao seu curatelado e aos soldados, de forma geral. As condições de vida enfrentadas pelos soldados e o tratamento a eles dispensado dentro e fora das Forças Armadas assemelham-se às dispensadas aos imigrantes polacos. Os olhares lançados sobre as trajetórias de imigrantes para o Brasil oscilaram entre a exaltação e supervalorização – o discurso recorrente dos “braços que construíram”, que “desbravaram” – e a desqualificação pura e simples – o imigrante como o “inapto”, que traz vícios de seu país de origem –, discurso amparado por vezes em pressupostos pseudocientíficos. Enfim, pelo contraste entre histórias de “sucessos escritos sob a luz da modernidade”, ou interessadas em fazer emergir a “pobreza dos bastidores” (MENEZES, 1998, p. 2). Segundo Lená Medeiros de Menezes, as políticas de incentivo à imigração expressavam clara preferência por algumas nacionalidades (mediterrâneas, italiana... os eslavos não estavam no topo da lista). Muitos imigrantes se estabeleceram no País em um

336

IP/1905/Palmas.

225

momento crítico, tempo marcado por “distanciamentos profundos entre o discurso legal, que contemplava postulados liberais, e as práticas políticas autoritárias do cotidiano, enraizadas numa mentalidade escravista e latifundiária” (MENEZES, 1998, p. 3). A leitura dos autos, especialmente quando atentamos para a postura do oficial Torres, evidencia essa mentalidade, manifesta em relações autoritárias e repressivas, mais sentidas pelas camadas populares. São modos verticais dessa herança escravista, empregados na solução de questões cotidianas que se resolviam de maneira simples, encerrados no emprego de chavões/clichês como “embriagados” ou “não sabem o que fazem” – discursos que desumanizam esses outros negando totalmente sua dignidade e protagonismo. Ao longo do século XIX, a ciência e o direito de inspiração positivista vieram fazer coro a essas ideias de superioridade/inferioridade dos diversos grupos étnicos, que passaram a orientar políticas públicas e também ações moralizadoras de autoridades militares e policiais, já acostumadas a práticas racistas. Importante lembrar que o RPCM, em seus artigos de 33 a 38, atribuía poder de polícia aos oficiais do Exército. Daniel Roche (2004, p. 16), em seus estudos sobre a população de Paris nos séculos XVIII e XIX, pergunta: “Haverá algo mais moralizante do que a ação policial?”. Para o autor (ibidem, p. 16),

É, pois, numa fronteira cultural do social que se encena a representação do povo. São-lhe atribuídos, por um lado, todos os signos de atraso moral e intelectual: a ignorância, os preconceitos, o descontrole, a paixão. Essa desqualificação passa muito bem pelo vocabulário da animalidade, da infância, do desvario. Eis por que importa controlar e educar o povo.

A afirmação de Daniel Roche encaixa-se perfeitamente nas categorias e representações do povo que se fez no Brasil. As expressões “paixão”, “ódio” e “sede”, empregadas na defesa de Torres, são evocadas na tentativa de reforçar estigmas que desqualifiquem polacos e soldados, não só como alguém que poderia ter algo a dizer, mas também por sua condição naturalmente inferior, de pessoas ao povo, incapazes de relacionar-se, imaturos, potencialmente problemáticos. Aos fracassados e desajustados, o controle, a vigilância e a punição. As preocupações manifestas pelo Alferes, a de não ser respeitado em sua autoridade e de que os polacos, por sua “natureza viciada”, eram perniciosos e ameaçadores, e a forma como agiu revelam mecanismos de uma espécie de “extra-direito”. Para Alvarez, Salla e

226

Souza (2003, p. 13), “Os ‘delitos’ previstos em lei tinham a mesma importância conceitual que os ‘perigos’ que emergiam do espaço social.” Ou seja, a ação policial, moralizadora, para ser eficiente, precisava antever situações de perigo e ameaças. Os autores relembram que o ensaísta e jornalista Elísio de Carvalho dizia, em 1914, que “uma boa policia vale pelo melhor código penal” (ibidem, p. 13). Segundo Karl Monsma (2008, p. 3-4), O policiamento necessariamente envolve o uso de estereótipos, para identificar suspeitos e situações potencialmente problemáticas (Skolnick, 1975, p. 83). Os estereótipos da polícia não precisam ser étnicos ou raciais, mas em contextos com divisões étnicas nítidas, o pertencimento de grupo facilmente assume um peso grande na categorização dos indivíduos pela polícia. Esses estereótipos muitas vezes são os mesmos que se encontram no meio social de origem dos policiais.

Para o autor, “Os delegados tinham um conjunto de categorias de percepção, disposições e estratégias de ação – ou seja, um habitus – já formado no regime escravocrata, que orientava sua ação policial e suas relações aos escravos e aos outros grupos.” (MONSMA, 2008, p. 39). A despeito de todo o preconceito expresso em teorias raciais que emergiram na esteira do darwinismo social, muito presentes nas defesas de Torres e Sebastião, ocorre também uma situação muito específica entre as forças policiais e grupos étnicos subalternos, em que a polícia, que lidava mais diretamente com esses grupos, tinha a tarefa de controlá-los (ibidem, p. 3). Estudos revelam que “Era comum soldados da polícia aproveitarem sua posição e armas para roubar paisanos, sobretudo imigrantes, ou para extravasar seus ressentimentos contra imigrantes com espancamentos.” (MONSMA, 2008, p. 37). Além de que os grupos subalternos eram um problema, e seu ódio se ampliava, uma vez que, se praticavam algum delito, criavam mais trabalho e representavam maior perigo para o policial. Por fim, é importante ressaltarmos que, apesar da tendência dos conselhos em inocentar oficiais e condenar soldados e paisanos, os autos revelam nuances que podem desmitificar uma primeira impressão de transparência e antecipação das sentenças. O fato de os réus irem a CG e aí apresentarem defesas escritas revela que não encaravam as coisas de forma tão natural assim, entendendo seu livramento como um fato dado. Retomando a feliz expressão de Sidney Chalhoub (2001, p. 41) sobre o processo judicial, de que este se configura como uma “encruzilhada de muitas lutas”, não podemos cair na armadilha de que a justiça sempre favorece os já favorecidos. As testemunhas de defesa do

227

Alferes Torres, por exemplo, não apresentaram discursos tão coesos e corporativistas como pareceria natural que fosse. Outra importante evidência são os votos do presidente e auditor do CG, contrários aos demais conselheiros. Ainda que a pena de dois anos possa ser considerada frouxa para crimes de assassinato, há que se considerar que, mesmo entre altos escalões, houve preocupação em incriminar os responsáveis pelos crimes de morte e ferimentos de 11 de junho de 1900, em Jangada.

5.2 O COMPORTAMENTO DA JUSTIÇA COMUM NO JULGAMENTO DOS RÉUS MILITARES

As investigações dos crimes na esfera cível, ou Justiça Comum, distanciaram-se ainda mais dos fatos originários, a ponto de fazerem com que estes quase desaparecessem. Na esfera militar, arranjos e adequações aos códigos já haviam provocado um distanciamento em relação ao ocorrido na noite de 11 de junho, e na Justiça Comum o afastamento tornou-se abissal.

É como se, a cada nível hierárquico do processo de incriminação, os atores encarregados de esclarecer um determinado crime, em sua “materialidade e autoria”, afastassem-se progressivamente da “cena do crime”, transformandoa em uma narrativa de segunda e terceira mãos. (MISSE, 2010, p. 44).

A construção dos fatos/verdades por aqueles que respondiam pelos “interesses da justiça” (expressão usada pelo réu Sebastião em interrogatório prestado em 1902) deu-se em espaços e condições herméticos em relação à cena do crime, envolvendo sujeitos ainda mais alheios. Três novas testemunhas, que residiam em Palmas, foram requisitadas. Ouviram falar dos crimes porque estiveram de passagem por General Carneiro e não sabiam sequer o nome dos polacos, pois aquela cidade dista 16 léguas desta e pouca relação tinham com seus moradores, como declarou a testemunha Alexandre Ferraz dos Santos. No entanto, seus depoimentos passaram a pesar muito mais no direcionamento do processo e na interpretação dos fatos e definição de verdades do que a documentação juntada pela Justiça Militar.

228

Os réus Herculano e Alfredo desapareceram de cena e não há nenhuma informação a seu respeito, exceto que haviam dado baixa do Exército. Os demais (Alferes Torres e Soldados Sebastião e João) foram a júri popular e foram inocentados. Por algum tempo, estiveram interagindo com a população da região de Palmas. Nos registros judiciais depositados no Cartório do Crime de Palmas, o Alferes Torres apareceu ainda mais uma vez em um Inquérito Policial, de 1905, envolvido em discussões que perpassaram por um jornal manuscrito que circulou (um único número) na cidade de Palmas, fazendo críticas de forma “leviana” aos servidores públicos daquela cidade337. O soldado João Antonio da Silva, em 1906, com 27 anos, foi queixoso em outro processo crime. Serviu o Exército juntamente com o réu Miguel Borges dos Santos, no 39º Batalhão de Infantaria, encontraram-se em Jangada, lembraram os tempos de praça e Miguel agrediu João, alegando que se desentenderam levados por embriaguez, uma “tomadeira de aguardente”338. Nos autos de perguntas ao réu, quando foi a julgamento em Palmas, informou as profissões de pintor e agricultor. O Soldado Sebastião Bento Thomaz do Nascimento foi testemunha de um crime que se deu em 1910. Declarou à Justiça ter 28 anos (tinha 18 em 1900), ser solteiro e exercer a profissão de pedreiro339. Os dois soldados, trasladados à cidade de Palmas para verem-se processar, aí permaneceram, ao menos por algum tempo; regressar às suas cidades de origem certamente demandaria um gasto de valores dos quais que não dispunham. O Alferes Torres foi transferido para o 6º Batalhão, e servia ao 4º Regimento de Cavalaria, em Dom Pedrito (RS), quando foi a Palmas responder ao processo.

5.2.1 A construção dos fatos/verdades na esfera cível

Após a chegada, na comarca de Palmas, dos autos produzidos pela Justiça Militar, em setembro de 1901, o promotor público Major João Manoel da Cunha Sobrinho340 apresentou

337

IP/1905/Palmas. O fato se deu em março, mês em que Torres foi a julgamento. PC/1906/Palmas. 339 PC/1910/Palmas. Réu Salvador Pimpão. Agrediu fisicamente a polaca Tecla Bäumel (filha legítima de Epiphanio Banabana, casada, natural da Polônia, doméstica, residente em Palmas). 340 João Manoel da Cunha Sobrinho foi professor de primeiras letras em Palmas. Em 1893, foi nomeado pelo Governador do Paraná, José Pereira Santos Andrade, para a comissão auxiliar que deveria coligir documentos relativos às questões de limites com Santa Catarina, ao lado do Juiz José Cesar de Almeida (o mesmo que conduziu o processo de 1900 contra os militares) e do Coronel Rufino de Oliveira Sá Ribas (A República, Curitiba, ano 12, n. 24, 31 jan. 1897. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 20 jan. 2015.). Foi nomeado Promotor Público da comarca de Palmas em setembro de 1898 (A República, Curitiba, ano 338

229

denúncia contra os réus processados no CG. O promotor assumiu, ao longo do processo, um claro posicionamento em favor de Torres, e desfavorável aos soldados. A denúncia apresentou, em linhas gerais, os fatos narrados por testemunhas e réus na esfera militar. Observa-se já uma tendência a atribuir maior culpa à ação dos soldados, que teriam batido brutalmente na porta da casa de Mikilita e que, tendo a sua mulher respondido que o marido não estava, continuaram em seu procedimento desordenado, promovendo um confronto com os homens hospedados no rancho ao lado. Sobre os polacos, a denúncia diz que já voltaram da festa “um tanto alcoolizados”. O promotor enfatizou o primeiro conflito e o fato de que os soldados que avisaram as autoridades não informaram que o embate já havia encerrado. Sobre o que ocorreu após a chegada de Torres, há poucas informações. O texto encerra reportando-se aos exames de corpo de delito, que, segundo ele, oriundos de processo militar e “Feitos militarmente, achamse eivados de vícios em face de nossas leis civis”, mas mesmo assim “provam com toda a evidência os crimes praticados”341. Os interrogatórios de testemunhas tiveram início em 11 de novembro de 1901, à revelia dos réus342, dos quais nenhum se encontrava em Palmas. Das testemunhas oculares,

13, n. 214, 30 set. 1898. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 20 jan. 2015.). Fundou o Club Republicano em Palmas (A República, Curitiba, ano 14, n. 97, 2 maio 1899. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2015.) e foi membro do Partido Republicano Federal, onde fez parte de seu diretório (A República, Curitiba, ano 15, n. 213, 25 set. 1900. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 20 jan. 2015.). Participou ativamente das discussões de limites com o estado de Santa Catarina, na defesa dos interesses do Paraná. A partir de 1903, os registros de que dispomos apresentam-no como Tenente Coronel. 341 O promotor enquadrou os réus nos artigos 294, § 1º, e 305 § único, do Código Penal, e com o máximo das penas do art. 294, §1º, citados de acordo com o parágrafo 3º do art. 66. “Art. 294. Matar alguém: § 1º Se o crime for perpetrado com qualquer das circunstâncias agravantes mencionadas nos §§ 2º, 3º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º e 19º do art. 39 e § 2º do art. 41: Pena de prisão celular por doze a trinta anos. § 2º Se o homicidio não tiver sido agravado pelas referidas circunstâncias: Pena de prisão celular por seis a vinte e quatro anos [...]. Art. 305. Servir-se alguém, contra outrem, de instrumento aviltante no intuito de causar-lhe dor física e injuriá-lo: Pena de prisão celular por um a três anos [...].” “Art. 66. Na aplicação das penas serão observadas as seguintes regras: § 3º Quando o criminoso pelo mesmo fato e com uma só intenção, tiver cometido mais de um crime, impor-se-lhe-ha no grau máximo a pena mais grave em que houver incorrido.” 342 Os encaminhamentos iniciais na comarca de Palmas trataram das intimações dos réus, e uma troca de correspondências e telegramas entre o Juiz de Palmas e o Quartel General do Comando do 5º Distrito Militar tratou de esclarecer a quem cabia a responsabilidade pelo comparecimento dos réus. O Juiz de Palmas solicitou ao Chefe de Polícia do Estado passagens para o transporte dos réus, e o 5º Batalhão respondeu que não cabia ao governo providenciar o comparecimento dos réus a juízo, porque achavam-se em liberdade, cabendo ao Juiz intimá-los para verem processar-se. O promotor requereu então ao Juiz carta precatória a fim de os réus serem presos em Curitiba, preventivamente. O 5º Distrito Militar informou ainda, em 8 de janeiro de 1902, ao Juiz da primeira vara de Curitiba, a quem o requerimento foi encaminhado, que o Alferes Torres havia sido transferido do 13º Regimento para o 4º Regimento de Cavalaria, no Rio Grande do Sul, que Herculano e Alfredo já tinham dado baixa do Exército. Quanto aos demais, a informação constante do ofício é de que “só podem ser presos com culpa formada, porquanto estiveram assim considerados, presentemente por muito empo, sem que lição procedesse contra eles”.

230

depuseram apenas Gregório, Nicolau e Anastácia. Gregório acrescentou ao que já havia declarado, que Torres teria empregado as expressões “Mata e pincha343 para fora como cachorro” (o que também foi afirmado por Nicolau). A testemunha também frisou que esteve em tratamento, em consequência dos ferimentos, durante onze semanas. As anotações do escrivão do cartório indicam certa dificuldade em fazer com que as demais testemunhas intimadas (Serafina, Francisco, Vasco, Estephanio, Senka, Bazílio, Carlos e Antonio) comparecessem. Mandados foram emitidos ao subcomissário de polícia de General Carneiro, mas até fins de fevereiro de 1902 não haviam sido devolvidos344. O Juiz chegou a emitir mandado para que comparecessem “debaixo de vara”, o que não alterou em quase nada esse quadro. Ao longo do processo, encontram-se anotações de que algumas testemunhas, de Jangada, passaram a residir em Porto União. Uma ou outra nova informação sobre seus paradeiros levou ao adiamento de sessões do Tribunal. O exercício do Poder Judiciário esbarrava em grande gama de problemas que iam desde as distâncias a serem percorridas por oficiais de justiça e testemunhas até a falta de qualificação do pessoal345 que auxiliava os servidores, como os que eram nomeados ad hoc para escrivães, oficiais de justiça346 ou para procederem a exames de corpo de delito. Mais determinante do que os problemas apontados era o grande peso do curso que se dava aos processos e às decisões tomadas, que tinham as relações de mandonismo local347, exercidas em redes das quais faziam parte os operadores do direito (juízes, promotores, advogados, escrivães); e em vez de os “interesses da Justiça” muitas vezes prevaleciam interesses políticos e econômicos. Os operadores do direito, em sua maioria, eram membros de elites locais – ou a elas associados –, proprietários de terras ou oriundos das famílias mais

343

Pinchar: "Impelir, empurrar, derrubar" (BRUNSWICK, Henrique. Novo Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa. 3. ed. Lisboa, Empresa Literária Fluminense, [19--?], p. 893). 344 Fl. 195 PC/1900/General Carneiro. 345 É comum encontrarem-se nos autos anotações como essas: “O sr. escrivão faça ciente mais uma vez ao oficial de justiça que, quando não encontrar o réo, explique porque o não encontrou, isto é, se está ausente de casa, em viagem, devendo regressar, ou se está foragido, em logar incerto ou não sabido, o que qualquer oficial de justiça, quando não é totalmente negligente pode saber ou vir a saber por informações de pessoas fidedignas.” (Juiz ao escrivão, PC/1929/Xanxerê, fl. 63). “Não estando sufficientemente preparados os presentes autos, visto não terem intimadas as testemunhas, formalidade indispensavel para o julgamento, determino [...] se proceda a diligencia necessária para que o réo seja submettido a julgamento na proxima sessão do jury. Este Juiz chama a attenção do Sr. Escrivão para que seja mais cuidadoso no cumprimento de seus deveres, e que certifique nos presentes autos que as testemunhas não foram intimadas para comparecerem ao julgamento deste caso.” (PC/1900/General Carneiro, fl. 405). 346 À fl. 416 do PC/1900/General Carneiro, por exemplo, encontra-se uma nomeação de Oficial de Justiça ad hoc, feita pelo Juiz José Cesar de Almeida. 347 Ver: CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Dados, v. 40, n. 2, 1997.

231

abastadas, e suas aproximações e alianças eram sacramentadas, às vezes, por meio de uniões matrimoniais. A violência resultante das práticas judiciárias, “violência dirigida contra a realidade” (CORRÊA, 1983, p. 28), violência simbólica que “leva à substituição da realidade pela norma” (AZEVEDO, 2011, p. 35), é caracterizada por Sidney Chalhoub (2001, p. 282) como

[...] racional e contida, proveniente da tentativa de aplicação de leis criminais elaboradas para a perpetuação de um determinado tipo de dominação de classe. No entanto, como este corpo de leis é concebido pelas autoridades judiciárias como expressão dos interesses de toda a sociedade, os magistrados não se concebem geralmente como pontas-de-lança de dominação de classe.

A Lei n. 322, de 8 de maio de 1899, em seus artigos de 71 a 74, previa o cargo de Juiz Municipal, que poderia substituir (Art. 131) o Juiz de Direito em seus impedimentos. Os juízes municipais suplentes comporiam uma lista em número de três. Na Comarca de Palmas, em setembro de 1899, foram nomeados, pelo Governador do Estado, como primeiro, segundo e terceiro suplentes, Antonio Ferreira Ribas (Tenente-Coronel), Candido Mendes de Almeida Sampaio (Tentente-Coronel) e Herculano Martinho Bahls348, respectivamente. O Juiz de Direito da Comarca de Palmas, ao qual o caso dos militares da Estratégica foi entregue, doutor José Cesar de Almeida, entrou em licença em outubro de 1901 e logo em seguida foi, a seu pedido, exonerado do cargo349 (retornou a este em maio de 1904). O cargo foi assumido pelo segundo suplente e, logo em seguida, quando se deram os primeiros interrogatórios de testemunhas, o Juiz (interino) que respondeu pelo processo foi o terceiro suplente. O primeiro suplente também substituiu o Juiz em outras ocasiões. Esses três juízes municipais, suplentes do Juiz de Direito, eram todos membros do Partido Republicano, como também o era o Promotor Público do caso, Major João Manoel da Cunha Sobrinho. Herculano Martinho Bahls, que também exerceu a função de Promotor Público, foi eleito camarista, em 1892350, pelo partido. O Tenente-Coronel Candido Mendes de Almeida Sampaio declarou, em 1910, possuir uma fazenda em Palmas, denominada São

348

A República, Curitiba, ano 14, n. 205, 13 set. 1899. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 19 maio 2015. 349 A República, Curitiba, ano 16, n. 246, 30 out. 1901. Brasil, p. 2; e n. 251, 6 nov. 1901, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 9 maio 2015. 350 A República, Curitiba, ano 7, n. 770, 25 set. 1892. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 9 maio 2015.

232

Pedro, com a extensão de 68.055.750 m²351. Em sua maioria, trata-se de cidadãos pertencentes a uma elite que, ao mesmo tempo em que se diz progressista, é conservadora. Segundo Mariza Corrêa (1983, p. 27-28),

O mito de que todos são iguais perante a lei confronta-se consigo mesmo ao permitir a entrada da realidade concreta, feita de desigualdades, no plano do debate jurídico: ao estabelecer uma grade de procedimentos formais que dirigem o andamento judicial de um processo, estabelecendo ao mesmo tempo a necessidade de uma rede de relações informais que ponha em marcha esses procedimentos, confrontando cotidianamente os interesses impessoais dos códigos escritos com os interesses pessoais dos atores jurídicos.

Ao lado desses “excedentes de poder” (ELIAS, 2000, p. 22), materializados em cargos políticos, propriedades de terras e outros bens, sua influência expandia-se perpassando pelas patentes de Exército ostentadas por muitos deles, como o caso do Major e do Tenente-Coronel citados. Na Primeira República, identidades militares e políticas chegaram a se confundir, ou seja, ser republicano poderia significar uma identificação com ideologias e interesses do Exército, cujos comandantes conduziram a política, em âmbito federal, nos primeiros anos de implantação do regime. Quanto ao “desaparecimento” das testemunhas, embora os registros apontem para certa mobilidade – mudança de colônias, trabalho em fazendas próximas352 – é provável que tenham se sentido inibidas ou amedrontadas, e por isso buscaram esquivar-se, ou que isso seja indício claro da existência de um conjunto de motivações intencionais de terceiros de alguma forma interessados em fazer com que deixassem de depor. Tais percalços levaram o promotor a alegar ao Juiz (agora já se trata de outro substituto, o doutor Antonio Cancio de Medeiros Cruz353) que a reiterada procura pelas testemunhas arroladas tornaria o processo moroso, requerendo que fossem as ausentes substituídas por outras que sabiam dos fatos criminosos de que tratava o processo: Messias

351

A República, Curitiba, ano 24, n. 105. 7 maio 1910. Brasil, p. 3. Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2015. O proprietário da fazenda publicou um protesto contra a companhia construtora responsável pela construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. 352 O Oficial de Justiça Pedro Drabika certificou, em 20 de junho de 1905, que não intimou as testemunhas Nicolau e Francisco por constar que estavam trabalhando na fazendo do senhor Duca Pimpão e que as testemunhas Bazílio, Carlos e Antonio residiam no Porto da Uniao (PC/1900/General Carneiro, fl. 407). 353 Atuou como Juiz Municipal do Termo de Serro Azul, da comarca de Curitiba, e depois à comarca de Porto União. Em novembro de 1901 e de fevereiro a maio de 1902, atuou como Juiz de Direito na comarca de Palmas, em uma substituição do Juiz Titular doutor José Cesar de Almeida. Após alguns anos no cargo de Juiz Municipal em Porto União, exonerou-se desse cargo e passou a atuar como advogado, em União da Vitória.

233

Marques de Faria Carneiro, Pedro Ferraz dos Santos e Alexandre Ferraz dos Santos, moradores da cidade de Palmas. O promotor manifestou preocupação em relação aos questionamentos do governo austríaco, ao concluir sua petição, solicitando que as testemunhas fossem interrogadas sobre o que sabiam, “satisfazendo-se assim o andamento da Justiça e as reclamações do Consul Austriaco”. A referência às reclamações do Cônsul, mais do que o interesse em que “justiça fosse feita” em relação aos ataques promovidos contra a comunidade de imigrantes poloneses, pode revelar essas alianças políticas e barganhas presentes em nomeações para cargos públicos. Esses servidores aguardavam promoções e avanços nas carreiras profissionais e mesmo políticas, ou outras vantagens que dependiam em muito desses alinhamentos e aproximações. As “novas” testemunhas foram intimadas e prestaram depoimento em 11 de março de 1902, à revelia dos réus (esses também foram intimados), encontrando-se presente apenas o procurador do Alferes Torres, Moyses de Ramos Andrade. A primeira testemunha, Pedro Ferraz dos Santos354, declarou que passou, em 11 de junho, durante o dia, por General Carneiro e soube do ocorrido pelo negociante José Tesseroli. O que soube foi que as praças atacaram a casa dos polacos, dos quais só sabia informar o nome dos mortos e feridos, e que uma praça foi ferida. Perguntado se o Alferes Torres interviu no conflito, disse que não, porque o conflito “teve lugar por causa dos soldados que foram propositalmente, sem a sciencia do Torres à casa dos polacos, a fim de raptar uma polaca que lá se achava”. Disse que Torres, por ordem do diretor, foi pôr fim “aos desmandos de seus subordinados” e que Mikilita já estava morto quando lá chegou. Sobre as prisões efetuadas, declarou não saber se Torres prendeu polacos, mas que prendeu os soldados. Sobre o procedimento de réus e vítimas, disse que Torres era homem de bem, morigerado e cumpridor de seus deveres; que as praças eram bem comportadas antes do fato criminoso e que os polacos nada conhecia que desabonasse seu procedimento. Messias Marques de Farias Carneiro355, estafeta (espécie de carteiro a cavalo) dos correios, de União da Vitória para Palmas, declarou que na noite dos crimes, em função da profissão que exercia, pousou em casa de José Tesseroli. Esteve “de prosa” com o proprietário da casa, e mais o finado Modesto Cordeiro (é possível que seja o Modesto citado pela 354 355

A testemunha declarou ter 44 anos, ser solteiro, empregado público, natural e residente em Palmas. A testemunha declarou ter 32 anos, ser casado, lavrador, natural e residente em Palmas.

234

testemunha Senka Kerela, no IPM) e o Alferes Torres, e aí soube que os soldados tinham ido à colônia General Carneiro, para divertirem-se. No dia seguinte, soube da ocorrência de “grande conflito” envolvendo acusados e vítimas. Que o Capitão do destacamento, Felix Amorim, ordenou e fez seguir para o local do conflito o Alferes Torres e algumas praças e “Torres achou grande desordem”, estando Estephanio Mikilita já morto. Não sabia que Torres tivesse dado voz de fogo, visto que, “quando chegou, a desordem já estava feita”. Torres era homem de bem, pacato e cumpridor dos deveres e “os soldados eram desordeiros na opinião dele, visto como praticaram um ato reprovado, condenado pela moral e pelo direito”; e os polacos eram de bons costumes e morigerados A testemunha Alexandre Ferraz dos Santos356 esteve de passagem (não informou quando) por General Carneiro e ouviu falar dos fatos. Afirmou não ter conhecimento de que Torres tivesse interferido no conflito e que “é voz publica que, quando chegou Torres, já estava [Mikilita] morto”. Não sabe o nome dos polacos porque Palmas dista 16 léguas de General Carneiro e pouca relação tem com seus moradores. O motivo que apontou para o ato das praças foi a pretensão de raptarem duas polacas para fins libidinosos, que tinham mau procedimento e eram baios; que Torres é homem de bem e os polacos também. Segundo dicionário da época, o termo baio significava “da cor do ouro desmaiado, melado, amulatado” (BRUNSWICK, [19--?], p. 162). Usando um dicionário do século XVIII, mas que foi reeditado ao longo do Oitocentos, temos que baio era “[...] cor de besta cavalar, cor de oiro desmayado, tirante a branco. Cor de mulato.” (SILVA, 1789, p. 252). O termo, normalmente empregado para se referir a animais cavalares e muares de cor acastanhada ou amarelada, por extensão, passou a ser aplicado a pessoas em função da cor da pele. As fés de ofício dos soldados indicam cores como parda e preta. O depoimento de Alexandre Ferraz dos Santos vai ao encontro do discurso contido na defesa que Torres apresentou ao CG, atribuindo o caráter e o modus operandi dos polacos a uma pré-condição, de cunho étnico (determinismo biológico). A testemunha faz aqui o mesmo em relação aos soldados, reporta-se a rotulá-los de “baios”, o fato de terem agido de forma aos valores morais predominantes. Os dois discursos se cruzam, fazendo eco aos debates raciais que aqueceram os meios acadêmicos do século XIX e boa parte do XX.

356

A testemunha declarou ter 23, ser solteiro, jornaleiro, natural de Campos Novos (SC) e residente em Palmas.

235

Os depoimentos são construções claramente feitas a posteriori. Prova disso é que todos os indiciados, no Inquérito Policial Militar, declararam saber da morte de Estephanio Mikilita apenas no dia seguinte. Ou seja, a informação apresentada de que, quando o Alferes Torres chegou, Mikilita já estava morto foi claramente forjada ao longo do processo militar, embasada especialmente no depoimento excêntrico que a viúva Serafina prestou ao comparecer ao 5º Distrito, em Curitiba. Essa informação mais os juízos de valores emitidos, de que os motivos dos soldados eram reprovados pela moral e de que pretendiam raptar duas jovens para atos libidinosos, assumiram importância central no debate que se deu no Tribunal, com a intenção de inocentar Torres e incriminar os demais. Não estamos empenhados em descortinar as “verdadeiras causas” (é provável que tenha havido motivações implícitas) dos conflitos, ou as “reais intenções” dos soldados, ou quem matou ou não matou, senão observar a forma como os discursos/verdades que inocentaram ou incriminaram foram construídos. Verdade ou não que os soldados quisessem seduzir as jovens polacas, a hipótese não pode ser descartada, pois o fato é que a jovem Senka Kerela, de 16 anos, que se encontrava na residência de Mikilita na noite do conflito, no depoimento prestado ao IPM, afirmou ter sido agarrada pelo soldado Alfredo, que, ao reconhecê-la, teria dito aos demais que não a fizessem mal, já que era criada do senhor Modesto. Após os depoimentos, o promotor dirigiu-se ao Juiz, doutor José Cesar de Almeida, nos termos abaixo:

Pelo que se ve do inquérito de testemunhas e do processo militar, é difícil conhecer com verdade o autor ou os autores dos crimes. Estudando-se [...] não se encontra base segura para a criminalidade de Torres, deduzindo-se apenas presunções que em face do art. 67 do cod. Penal357 não provem prejudicar o dito Torres, ainda mais porque dizem as ultimas testemunhas em numero de três que Torres so chegou ao local depois que haviam praticado os assassinatos, isto é, um assassinato e ferimentos. O mesmo não se dá com os demais acusados [...] que se envolveram no conflito. Opino pela despronuncia de Torres por falta de provas suficiente e pela pronuncia dos demais acusados. No entretanto, o Juiz julgará como entender a plena justiça.

357

“Art. 67. Nenhuma presunção, por mais veemente que seja, dará lugar à imposição de pena.”

236

Aqui o promotor assumiu abertamente a defesa de Torres, colocando-se num papel que mais se parece com o de um advogado de defesa. Se não havia base para pronunciar Torres, segundo os argumentos usados, como poderia haver para pronunciar os demais réus, se, como argumentou, pelo processo militar ficava difícil conhecer “com verdade” os autores? O promotor transformou os depoimentos das três últimas testemunhas praticamente em verdades definitivas, que inocentariam Torres e incriminariam os soldados, ao passo que, ao material juntado pela justiça militar, atribuiu dois pesos e duas medidas. A defesa de Torres358, juntada aos autos por seu procurador, logo na sequência do pedido de despronúncia desse réu feita pelo promotor, parece não encontrar-se nessa ordem por acaso, já que os depoimentos das três testemunhas auriculares também foram usados em suas argumentações. Dos autos produzidos na esfera militar, argumentou que “demonstram exuberantemente a não criminalidade de Torres”. A defesa usou os novos depoentes para reforçar a ideia de que, como o promotor também alegou, Mikilita já estava morto quando o Alferes Torres lá chegou. Questiona se as testemunhas de acusação são confiáveis, praticamente reproduzindo as citações empregadas na defesa apresentada pelo réu ao CG (a frase de Bentham, de que as testemunhas “são os olhos e ouvidos da justiça”, e o Tratado de Provas, de Mittermaier, são exemplos) com as mesmas expressões lisonjeiras dirigidas aos juristas. Ressaltou as contradições observadas nos depoimentos da viúva Anastácia, e reportou-se ao “rancor” que guardavam os polacos por terem sido presos. Encerrou solicitando ao Juiz que despronunciasse o réu, fazendo assim volvê-lo “com sua honra impoluta ao seio da sociedade em geral, praticando com isso justiça”. Coincidência ou não, essa sequência de documentos e as alegações que contêm produzem a sonoridade de um movimento orquestrado. Começando com o “desaparecimento” das testemunhas oculares, seguido da substituição por testemunhas auriculares, passando pelo requerimento da promotoria de despronúncia de Torres, pela defesa do procurador do réu, culminou com a conclusão apresentada pelo Juiz, doutor Antonio Cancio de Medeiros Cruz, despronunciando Torres. A conclusão359 do Juiz substituto foi embasada basicamente nas “verdades” trazidas pelos últimos depoentes. O Juiz já partiu da afirmação de que, na noite dos crimes, o Cabo Herculano e os Soldados Alfredo, Sebastião e João “após uma festividade religiosa tentaram 358 359

PC/1900/General Carneiro, fl. 231. PC/1900/General Carneiro, fl. 232.

237

raptar para fins libidinosos duas polacas, resultando serio conflito” (grifo nosso). Prosseguiu dizendo que

[...] Dos autos de corpo de delicto vê-se que foram mortos Estephanio Mililita e o menor Lucio, alem de outros ferimentos, por armas de fogo e cortantes e que avisado o Director da comissão estrategica, este mandou o Alferes Francisco Corrêa Torres, que infelizmente, ao chegar ao local do crime já encontrou o cadáver do dito Estephanio e outros feridos, effetuando a prisão dos soldados deshordeiros e de alguns polacos, não constando que [...] mandasse o mesmo Alferes fazer fogo contra os polacos [...] Dos depoimentos das testemunhas360 resulta que os autores unicos dos crimes de morte [...] bem como dos ferimentos simples [...] são os soldados acima referidos e que motivaram a desordem. Dos depoimentos resulta que o Alferes Francisco Corrêa Torres, indo por ordem superior ao theatro do crime, ahi chegou effetuando prisões e não dando ordens de fazer fogo contra os polacos victimados; o que tudo visto e examinado pronuncio os soldados [...] no gráo máximo dos art. 294, paragrafo 1 e 303 do código penal por concorrerem as circunstancias aggravantes do art. 39, §§ 1º, 4º, 5º e 13º do mesmo código e os sujeito a prisão e livramento, deixando de pronunciar o denunciado Alferes Francisco Corrêa Torres por não ter sido o mesmo causa dos crimes praticados e nem existirem indícios vehementes contra si. O escrivão lance os nomes dos réus no rol dos culpados e passe contra eles mandado de prisão. Palmas, 13.03.1902. (Grifos nossos).

Da documentação juntada nos conselhos militares, o Juiz reporta-se unicamente aos exames de corpo de delito, da forma crítica como outros já haviam feito antes, já que os ditos exames não atestaram que Lucio estivesse morto. As supostas motivações dos soldados para atacarem a casa de Mikilita, “contrárias à moral e ao direito”, são logo evocadas como condição inquestionável para o desenrolar dos conflitos, fazendo eco aos debates moralistas analisados anteriormente. Segundo Mariza Corrêa (1983, p. 301), as interpretações construídas, quando levadas ao júri que irá decidir, “além da escolha da apresentação mais coerente com o modelo que os julgadores visualizam para a sociedade onde vivem, [são] também um selo de aprovação dos procedimentos escolhidos por essa mesma sociedade”. As tentativas de reduzir tudo às possíveis intenções libidinosas das praças vão-se colocando em termos de apelo ao senso moral dos membros do júri. Trata-se de soldados que vieram de fora, que trazem praticamente todos os estigmas atribuídos às camadas populares e mestiças. À conclusão do Juiz, segue-se o libelo acusatório do promotor. Nos quesitos do libelo, o promotor afirmou que os soldados foram “armados e municiados” à casa de Mikilita, 360

O Juiz não especifica quais testemunhas, mas o teor das conclusões evidencia que se trata das últimas três a deporem.

238

chamando-o em vozes “alteradas e assustadoras”. Voltaram depois da meia-noite com uma escolta, com armas de guerra e “encolerizados com o que havia acontecido no primeiro conflito e, não obedecendo as ordens de Torres, que lhes ordenou calma e ordem”, investiram contra os polacos que saíram da casa armados de cacetes para se defenderem de nova agressão, e desfecharam contra os mesmos polacos diversos tiros e golpes de sabres. Prosseguiu anunciando que provaria que os réus procuraram a noite para praticarem o crime, e que o cometeram por “motivos reprovados”. Pediu condenação nos mesmos artigos solicitados pelo Juiz substituto e reduziu as testemunhas iniciais em número de cinco (Gregório, Nicolau, Anastácia, Francisco, Vasco), mantendo as que depuseram depois (Pedro, Messias e Alexandre). A expressão “motivos reprovados” pode tanto indicar as constatações de cunho moralista com as quais o promotor, Major, membro do Partido Republicano, compactuava, como também que, de acordo com a lei, não havia circunstâncias atenuantes. Impressionante como a manipulação dos autos pode se dar de forma a construir versões tão casadas com interesses de inocentar ou culpar. A Justiça Militar, querendo ou não, havia já construído abundante material do qual cada um dos atores jurídicos poderia servir-se na construção de suas argumentações. Bastou acrescentar três testemunhas, auriculares (é de supor que qualquer pessoa que tivesse simplesmente ouvido falar poderia depor, afinal, os fatos eram “voz pública”), mais ou menos embasadas em informações frágeis, captadas no boca a boca, para formalizar uma versão que (re)direciona o fato jurídico. Constrói-se uma versão que se adeque ao que pretendem os sujeitos que se encontravam, naquele momento, em poder de conduzir o processo, “cada um deles usando a parte do ‘real’ que melhor reforce o seu ponto de vista” (CORRÊA, 1983, p. 41). Desse momento do processo, pode-se dizer, com Sidney Chalhoub (2001, p. 207), que houve “distorções de maior peso” dos fatos. Nesse momento, apareceu em cena o réu Sebastião Bento Thomaz do Nascimento, encaminhado a Palmas pela Repartição Central de Polícia de Curitiba361. Aguardou o julgamento na Colônia Militar de Chapecó, que ocorreu em maio de 1903, embora nem todas as testemunhas de acusação tivessem sido intimadas. O Juiz nomeou como defensor do réu preso (que declarou ter 20 anos) o senhor Tarino Jacinto da Cunha.

361 Cf. Oficio da Repartição Central de Policia. Curitiba, 14 nov. 1902. Ao Juiz de palmas. “Com este vos será apresentada a praça do 39º Batalhão de Infantaria, de nome Sebastião Bento Thomaz do Nascimento, ficando assim satisfeita a vossa requisição.” (PC/1900/General Carneiro, fl. 238).

239

No auto de perguntas ao réu, alegou inocência afirmando que não interveio nas lutas ocorridas. Afirmou que avisou Torres e seguiu com ele até o local, mas não agiu nas lutas que se deram. Não pediu o comparecimento de companheiros seus que atestassem sua inocência antes porque não havia quem o orientasse no momento em que contrariou o libelo. Após a rotina forense de leitura do auto de formação de culpa, pronunciamentos do promotor e do defensor do réu, réplica e tréplica (que infelizmente não ficaram registrados), os jurados se retiraram para decidir. O júri absolveu Sebastião Bento Thomaz do Nascimento em 15 de maio de 1903, e em seguida o Juiz endossou a decisão do júri, determinando que, findo o prazo legal para interposição de sentença, fosse emitido alvará de soltura.

5.2.2 Os julgamentos dos réus pelos júris populares e o desfecho do processo

A absolvição do primeiro dos réus a ir a júri popular marcou uma espécie de recomeço ou retomada do processo. Em face da decisão do júri, o promotor recorreu ao Tribunal Superior de Justiça do Estado, usando como principal argumento que havia mais réus a serem julgados, e requereu a extração dos traslados necessários362. Aos autos, juntaram-se as razões da apelação, do promotor e do apelado Sebastião. As razões da apelação partiram do argumento de que a decisão do júri contrariou as evidencias, já que o réu Sebastião tinha maus precedentes, o que era comprovado por seus assentamentos (a sua fé de ofício é a que contém mais rabiscos, feitos a lápis), e que, portanto, o processo não poderia encerrar dessa forma. O promotor ateve-se ao primeiro conflito e às testemunhas que depuseram no IPM, e reportou-se à pronúncia do CI (a mesma que pronunciou Torres e que o promotor pareceu ignorar ou não notar anteriormente). Usou os depoimentos das três últimas testemunhas que depuseram como provas praticamente incontestáveis da culpabilidade dos soldados e concluiu a apelação dizendo que as provas evidenciavam que, se Sebastião não foi autor, foi coautor e que uma das testemunhas afirmou que, por motivos “que a moral reprova”, o réu provocou o conflito que resultou nos crimes.

362

“Art. 453. Para a decisão das appellações serão remettidos ao Juiz superior os proprios autos, quando nelles fôr comprehendido um só réo: ou quando sendo mais, forem todos appellantes, ou interessados igualmente na decisão da appellação: quando no processo houver mais do que um réo, e dever proseguir a respeito dos que ainda não tiverem sido julgados, subirá ao Juizo superior o traslado, dando o Juiz do Feito todas as providencias para a sua breve extracção e expedição.” O traslado do processo encontra-se arquivado no Cartório do Crime do Forum da Comarca de Palmas, PR, o mesmo onde se encontra o processo original.

240

As razões apresentadas pelo apelado Sebastião, por meio de seu defensor, se assemelham, em teor, à defesa apresentada pelo réu ao CG. Também aqui a fala do acusado se confunde com a do tutor, ora em primeira pessoa, ora em terceira:

O promotor diz que os ferimentos e mortes deram-se no primeiro conflito, e se utiliza dos depoimentos de Fleury, Efigenio, Joao e Pedro Ferraz que não sabem qualquer coisa de viso. Desrespeitou as fontes mais claras, fl. 196-201, foi desencavar as três primeiras no processo militar que é um verdadeiro caos, onde predomina a ficção preparada pelo espirito de classe para salvar torres dos monstruosos crimes que cabem a ele e a ninguém mais. No julgamento do conselho de guerra, fl. 187 ve-se a sentença, os dois membros que mais responsabilidade tinham na decisão, dr. Benjamim Americo de Freitas Pessoa, auditor de guerra, e coronel Olympio de Carvalho Torres, presidente votaram pela condenação a dois anos com trabalho e pela absolvição dos demais. Os dois votos, embora vencidos, foram pronunciados por dois membros do conselho de guerra, que nele tinham mais responsabilidade, por ser o primeiro, formado em ciências jurídicas e sociais e o segundo, uma patente elevada do exercito, provam de modo irrecusável. No entanto foi absolvido e esta no exercito desfrutando a mais ampla liberdade enquanto o apelado misero soldado, é o exemplo do martyr do golgotha, sofre o suplicio de uma prisão injusta, não obstante ter sido, duas vezes absolvido. O promotor pretende responsabilizar o apelado e os outros coreus praças de pret do exercito, para negar a de torres. Também quer afastar a responsabilidade de Marcelino, que apesar de ser o principal executor das ordens do alferes não foi denunciado, que o promotor diz que quando recebeu a arma já estava descarregada. Quem conhece a arma de guerra mannlicher sabe que ela é de repetição, cuja carga, é de cinco cartuxos, colocados em uma chapa de latão, predispostos e seguros, na configuração de um pente. Quando recebi [Sebastião] da mao de Torres, recebi descarregada, acompanhada de dois pentes de cartuchos. Quando entreguei ao cabo Marcelino, por ordem de Torres fiz como recebi, descarregada e com as duas cargas de cinco tiros. Marcelino aqui não mentiu, mas o que fez dos cartuxos so ele ou uma testemunha que quiser dizer a verdade poderá dizer.

O Tribunal Superior anulou todo o processo, alegando a falta do número legal de testemunhas, e determinou que, assim que fosse completado o número, se procedesse a novo julgamento363. A decisão do Superior Tribunal forçou o promotor a apresentar nova denúncia contra os cinco réus; inclusive em relação a Torres, a quem tentara proteger até aqui, o teor da denúncia muda em relação à primeira, provocando uma reação diferente no procurador do réu Torres. Na nova denúncia da promotoria, os polacos aparecem como fracamente armados, com cacete, única arma com que se achavam, uma praça foi dar parte a Torres sem relatar que

363 No acórdão do Superior Tribunal, além do número insuficiente de testemunhas, a testemunha Gregório foi descredenciada por ser considerada informante, já que foi uma das vítimas, bem como Anastácia, por ser a viúva de um dos mortos (Cf. cópia do acórdão, fl. 323 do PC/1900/General Carneiro).

241

o conflito estava terminado, e sem graves incidentes. Torres, com ameaças, fez os colonos abrirem as portas; ao saírem, foram recebidos a bala (na denúncia anterior o esforço consistia em provar que no primeiro conflito foi que ocorreram os crimes). Novamente reportou-se aos exames de corpo de delito, que se encontravam, “perante as leis civis, eivados de vícios”. Informou que Torres se achava na guarnição do estado do Rio Grande do Sul; Herculano e Alfredo, em lugar desconhecido; Sebastião, na Colônia Militar de Chapecó; e João, na cidade de Palmas. Arrolou como testemunhas Nicolau, Francisco, Vasco, Estephanio, Senka, Bazílio, Carlos, Antonio, Messias Marques de Faria Carneiro, então apenas chamado Messias Marques (o promotor não explicou o porquê dessa alteração no nome da testemunha), e Pedro Ferraz. O Juiz renovou as intimações, mas o paradeiro das praças mostrou-se desconhecido, até mesmo de Sebastião, que deveria aguardar na Colônia de Chapecó; apenas do réu João, que estava preso para julgamento, se sabia o paradeiro. Em telegrama encaminhado pelo 5º Distrito, de Curitiba, informa-se que Torres364 não pertencia mais àquele Distrito e sim ao 6º Distrito, servindo, naquele momento, no 4º Regimento de Cavalaria (RS). Sobre os demais réus, informou-se que já haviam sido todos excluídos do Exército, com baixa. Depuseram, à revelia dos réus, que não compareceram, Nicolau, Francisco, Vasco, Estephanio, Pedro, Messias, Carlos, Antonio e Bazílio. Após os depoimentos, novamente o promotor manifestou-se, mantendo a postura inicial, despronunciando Torres e pronunciando os demais, usando-se basicamente do sumário inicial. O Juiz (agora novamente José César de Almeida, que esteve no início do processo) pronunciou todos os réus. Iniciou comentando a decisão do CG e prosseguiu fazendo uma breve retrospectiva do andamento que o processo teve, desde que mandou o promotor público dar vistas até a decisão do Supremo Tribunal. Considerou que “todos os co-delinquentes foram causa e, portanto, auctores das mortes e ferimentos, executores e cooperadores immediatos, embora tivessem sido na acção instigados, provocados e determinados pelo Alferes Torres”365.

364

Cf. Oficio n. 3900, do Comando do Sexto Distrito Militar, Quartel General em Porto Alegre, datado de 14 de dezembro de 1904, e dirigido ao doutor José Cesar de Almeida: “Em resposta ao vosso officio datado de 12 do mes findo [novembro], declaro-vos que o Ministério da Guerra, em aviso de que referido em telegramma da Chefia do Estado Maior de 11, tudo do corrente, mandou por à disposição da justiça d’esse Estado para se ver processar pelos crimes de que é accusado, o Alferes do 4º regimento de cavalaria Francisco Corrêa Torres.” (Fl. 338 do PC/1900/General Carneiro). 365 O Juiz citou o Código Penal: “Art. 18. São autores: § 1º Os que directamente resolverem e executarem o crime; § 2º Os que, tendo resolvido a execução do crime, provocarem e determinarem outros a executal-o por

242

A conclusão, cuidadosa e detalhada (são dez páginas, o documento mais extenso juntado aos autos na Justiça Comum) reporta-se única e exaustivamente às peças do processo militar, e às decisões dos Conselhos de Investigação, que pronunciou os réus, e de Guerra, cujos votos do auditor e do presidente foram contra a absolvição do Alferes Torres. É importante destacar o seguinte comentário:

Considerando que a pronuncia deve ser decretada quando, depois de recolhidos todos os esclarecimentos, se mostra a existência dos indicios sufficientes, unicos que podem gerar uma persuasão sincera, e investido de tão elevada missão, o Juiz não tem regras restrcitas, determinadas por lei, que lhe possão guiar, dispondo de um poder, mais ou menos discricionario, na pfrase de P. Bueno366, deve ir encontrar garantias no seo bom senso e caracter moral.

O parágrafo, no contexto das conclusões do Juiz, após as várias considerações que faz, parece ser uma clara retaliação aos atos dos juízes que estiveram à frente do processo enquanto esteve afastado, especialmente ao Juiz Antonio Cancio de Medeiros Cruz. Por pressa e descuido, ou de acelerar a obtenção de resultados para “mostrar serviço”, ou ainda com propósito claro de compactuar com a postura do promotor, o Juiz tomou os depoimentos das testemunhas auriculares praticamente como única possibilidade de construir uma versão válida dos fatos. O Juiz reportou-se aos crimes como bárbaros e enquadrou os réus nos artigos 294 e 303 do Código Penal, com as circunstâncias agravantes do art. 39 (§§ 1º, 4º, 5º e 13º). O promotor, em função das conclusões do Juiz, apresentou novo libelo acusatório, desta vez mais enxuto, com apenas cinco quesitos, reafirmou os “motivos reprovados” e afirmou que agiram sob o comando de Torres. Procederam-se aos julgamentos de Torres367, 37 anos (defensor Romão Rocha, depois nomeado escrivão interino); João, 28 anos (defensor doutor Bernardo Ribeiro Viana, a pedido

meio de dadivas, promessas, mandato, ameaças, constrangimento, abuso ou influencia de superioridade hierarchica; § 3º Os que, antes e durante a execução, prestarem auxilio, sem o qual o crime não seria commettido; § 4º Os que directamente executarem o crime por outrem resolvido.” 366 José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente (1803-1878). Carreira jurídica (Juiz, Desembargador) e política (Presidente de Província, Deputado, Senador, Ministro), com vasta obra bibliográfica na área do Direito (Fonte: .) 367 Fl. 375. Oficio do comando do 5 distrito militar, de Curitiba, de 2 de março de 1905: “[...] tenho a honra de participar a v. exa. Que segue para essa cidade o alferes do 4 reg. De cavalaria, torres, mandado por a disposição de v. exa. Para se ver processar pelo crime... as passagens são de acordo com o aviso do ministério da guerra de 13.02.1902. por conta do estado, pede a v. exa. Que providencie as de regresso.”

243

do presidente do Tribunal); e Sebastião, 26 anos (defensor Isidoro Costa Pinto)368. Os réus receberam em tempo cópia do libelo acusatório. Torres, em março de 1905, foi absolvido pelo júri das acusações de ter atirado nos polacos e ter morto dois deles, e de ter provocado ferimentos em outros. O mesmo ocorreu com os demais: João, em setembro de 1905; e Sebastião, capturado em novembro de 1909 e julgado em dezembro de 1909369. Os quesitos do libelo de culpa pouco mudaram de um réu para outro370. São perguntas que se aproximam da lógica empregada nos exames de corpo de delito, sendo algumas praticamente idênticas. Algumas dessas informações os exames, no caso em questão, não registraram, ou seja, os jurados foram questionados sobre dados dos quais não tinham condições concretas de dispor. Não leram todas as peças dos autos e participaram da tomada de decisão num momento muito específico do processo, ao qual têm acesso brevemente por meio das falas do Juiz, do advogado de defesa e do promotor371.

368

Cf. Oficio n. 2340, da Repartição Central da Policia do Estado do Paraná. Curitiba, 6 nov. 1909, ao Juiz de Direito de Palmas: “Devidamente escoltado, segue o pronunciado Sebastião Bento Thomaz do Nascimento, que foi capturado nesta Capital no dia 25 de Setembro ultimo. Afim de ser junta ao respectivo processo, envio a ficha dactyloscopica do mesmo pronunciado.” (Fl. 432 do PC/1900/General Carneiro). A folha datiscópica citada contém: “Registro geral N. 265. Nome Nascimento – Sebastião Bento Thomaz. Vulgo [em branco]. Idade 34 anos. Naturalidade Brasileira. Filho de Severiano Nascimento e de Joana Gonçalves. Profissão: Pedreiro. Instrucção: baixa. Estado solteiro. Residência Curityba. Matricula n. 179 de (não dá para entender) Guia Ch. Pol. Identificada em 27.9.09. Motivo: Homicidio. Observações [em branco]. FIRMA DO DENTENTO [Assinatura de Sebastião].” No verso da folha, encontram-se as digitais de Sebastião (Fl. 433 do PC/1900/General Carneiro). 369 O Juiz nomeou Cyro Ferreira do Amaral e Silva como promotor interino para substituir o promotor titular, que se encontrava no gozo de licença, desde 22 de outubro de 1908 (Cf. A República, Curitiba, ano 23, n. 265, 11 nov. 1908. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2015.). 370 “1º O réo [...], no dia 10 de junho do anno de 1900, pela meia noite mais ou menos, na colonia “General Carneiro”, deste Termo, commandante de uma escolta de praças do Exercito, disparou diversos tiros em os colonos [...], fazendo-lhes os ferimentos descriptos no auto de corpo de delito de fls?torres, na noite... dirigindo a escolta, disparou tiros.... fazendo-lhes os ferimentos descritos? 2º Destes ferimentos resultaram as mortes dos pacientes [...]. 3º Estes ferimentos por sua natureza, foram causas efficientes. Das mortes? 4º Estes ferimentos, por suas sédes, foram causas efficientes das mortes? 5º As constituições dos pacientes concorreram para tornarem os ferimentos irremediavelmente mortaes? 6º As mortes resultaram, não porque os males causados pelos ferimentos fosses mortaes, e sim por terem os offendidos deixado de observar o regimen medico-hygienico reclamadao pelo seu estado? 7º O réo cometteu os crimes impellido por motivos reprovados ou frivolos? 8º O réo commetteu os crimes com superioridade em armas, de modo que os offendidos não puderam defender-se com probabilidade de repelir as ofensas? 9º O réo cometteu.os crimes com emprego de diversos meios? 10º Existem circunstancias attenuantes à favor do réo? e quaes? Quesitos sobre o segundo ponto principal da causa. 1º O réo [...], no dia [...] ferio levemente os colonos [...]? 2º O réo commetteu os crimes impellido por motivos reprovados ou frivolos? 3º O réo commetteu os crimes com superioridade em armas, de modo que os offendidos não puderam defender-se com probabilidade de repellir as offensas? 4º O réo commetteu os crimes com emprego de diversos meios? 5º Existem circunstancias attenuantes à favor do réo? e quaes?” 371 Sobre o júri, história e modificações, ver: MOSSIM, Heráclito Antônio. Júri: crimes e processo. São Paulo: Atlas, 1999; LYRA, Roberto. O júri sob todos os aspectos. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1950; TUCCI, Rogério Lauri. Tribunal do júri: estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999; MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. Capinas: Bookseller, 1997.

244

O júri popular é um corpo que se encontra no topo da escala hierárquica (que começa com os policias que procedem ao inquérito) dos que têm o poder de decisão, de “dizer a verdade”, ou seja, a verdade que irá prevalecer, colocar um ponto final na questão. Em tese, os jurados foram informados ou apresentados aos fatos e a algumas de suas interpretações, mas são os que menos acesso tiveram à documentação ou que passaram menos tempo analisando-a. Segundo Mariza Corrêa (1983, p. 39),

Em termos formais, o tribunal do júri, uma parcela representativa da sociedade, é quem decide a sorte do acusado. Em termos reais, essa decisão é construída aos poucos e a partir de uma série de outras decisões que concorrem para dar maior ou menor peso e força a uma das versões definidas publicamente, frente aos jurados.

As justificativas históricas para a existência do júri defenderam a composição de um tribunal de cidadãos idôneos e imparciais, em condições de olhar os fatos de forma um tanto diferenciada da que faz o Juiz, por encontrarem-se, os jurados, mais próximos da cena do crime, mais identificados com réus e vítimas, ou seja, mais sensíveis a esses sujeitos de carne e osso. Não são raras as vezes em que os julgados não se enquadram dentro dos padrões de conduta e dos valores de seus julgadores, que representam a “boa sociedade”. Os julgadores podem ser justamente os que menos se identificam com esses outros. Para concluir, retomemos a clara afirmação de Boris Fausto (2001, p. 32) de que “Os autos traduzem a seu modo dois fatos: o crime e a batalha que se instaura para punir, graduar a pena ou absolver.” Nas esferas militar e cível, o processo aqui analisado revela uma construção social cuja gama de sujeitos, e interesses, é numerosa e diversa. Cada qual com seu peso, revela a complexidade e dinamicidade presentes na formação da Nação e povo brasileiro. O andamento do processo na esfera cível revelou o quanto as Forças Armadas podiam se fazer presentes e influenciar a vida da população civil, revelando que as diversas facetas do poder econômico, político e militar podem estar muito próximas, muito a serviço uma da outra. Não obstante o fato de que foram absolvidos soldados, de outras formas condenados por estruturas extremamente autoritárias e injustas, o Exército mostrou-se com força de impor-se no ordenamento da sociedade.

245

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os crimes cometidos por quadros do Exército em 1900 em General Carneiro perturbam nossa sensibilidade não apenas pelas cenas de horror e abuso com que uma residência de imigrantes foi atacada por esses militares armados mas também pela forma como se assemelham de cenas presenciadas ainda hoje. Sobretudo em cinturões de pobreza dos grandes centros urbanos ou em áreas rurais conflitivas, disputadas por fazendeiros, indígenas, pequenos agricultores, seringueiros e outros profissionais, a violência praticada por agentes públicos ou privados contra parcelas da população mais fragilizadas socialmente parece andar de mãos dadas com a impunidade. A região abordada, para o governo uma Zona Estratégica em termos geopolíticos e econômicos, foi para seus habitantes, mais ou menos estranhos um ao outro, lugar de disputas, tensões e da luta pela sobrevivência. São populações posicionadas em um ambiente de forte hostilidade, vivenciando na pele o trauma da invasão de seus habitats (índios), as agruras decorrentes de deslocamentos forçados (imigrantes) e o drama de pertencer a uma sociedade hierárquica, que havia abolido a escravidão há pouco tempo e não sabia exatamente o que fazer com a sua densa fatia demográfica não branca (nacionais). Embora tenhamos procurado situar a Zona Estratégica, de marcada presença militar, e seus habitantes de uma maneira panorâmica, nosso foco percorreu uma questão específica: a presença da Comissão Estratégica num momento crucial de confronto com imigrantes poloneses, moradores de colônias recém-implantadas. Ao nos aproximarmos dessas regiões “periféricas”, e pouco estudadas, percebemos a complexidade e profundidade em que se construíram as relações sociais e os valores morais que formaram a nação brasileira. Esse exercício, de trazer à tona sujeitos desconhecidos, invisíveis na historiografia permite-nos “conhecer e amar a singularidade de um lugar, de um momento, de milhares de vidas” (ROCHE, 2004, p. 12), e compreender o quanto o regional pode conter o nacional, o macro. As palavras de Nélida Piñon em relação ao palco das batalhas de Canudos (“calcinada pelo horror das matanças inúteis, a terra parece clamar por uma verdade que esclareça tantos absurdos” (apud LEVINE, 1995, p. 15)) – soam de maneira absurdamente familiar à Zona Estratégica do Paraná, e a imensas parcelas do território brasileiro. Território marcado por um longo processo de demarcação de fronteiras geopolíticas e, sobretudo, econômicas e sociais

246

(ininterruptas e ainda em curso), traz em seu bojo a confluência de incontáveis e absurdos conflitos e pequenas guerras. A “encruzilhada de muitas lutas”, à qual se refere Sidney Chalhoub (2001, p. 41) sobre as disputas pela condução e resultados de um processo judicial, é tão somente a transferência, para os salões e corredores dos tribunais, dos dilemas e disputas travados na vida de cada dia. Boa parte dos arquivos de delegacias de polícia e fóruns preserva o que poderíamos denominar de uma documentação “marginal”, de acordo com os propósitos com que os consultamos, já que não se tratam exatamente de documentos formais, como os que surgem das exigências da rotina das instituições. A vida castrense requer um corpo documental que justifique sua existência e funções, como estatutos e códigos, ou que oriente suas atividades práticas e operacionais, como carreira profissional, treinamentos de seus quadros, estratégias de guerra, e assim por diante. Boletins e inquéritos policiais e processos judiciais, quando tratam de membros de suas fileiras, contêm justamente o registro de suas ações desviantes, que se contrapõem aos padrões de conduta normatizados. Expressões como “passagem pela polícia” e “antecedentes criminais” acabam por incorporar uma força quase que definitiva em termos dos estigmas que são capazes de atribuir ao sujeito, posicionando-o às margens do aceito pelos membros da sociedade circundante. Os ataques aos polacos cometidos por militares destacados para uma operação de engenharia do Exército não se tratavam de uma ação militar propriamente dita, ainda que tenham sido assim justificados pelos réus. Ao nos propormos a perseguir os objetivos propostos pela Nova História Militar, de investigar e conhecer a atuação das Forças Armadas fora das atividades propriamente militares, também a documentação precisa ser buscada, às vezes, fora dos arquivos preservados por essas forças, que contêm os registros de suas ações normais ou válidas. Lembre-se que os processos divulgados, por exemplo, no site do STM são aqueles considerados relevantes por demonstrarem a “atuação incólume” do Tribunal Castrense372 – encarados aí em outra perspectiva, a da atuação do Tribunal, e não das ações criminosas de suas fileiras. A leitura desses autos, agora numa investigação que fazemos como historiadores, nos aproxima das cenas de crimes que extrapolam os meros números que aparecem nos mapas estatísticos dos relatórios do governo, e o conteúdo dos estatutos e códigos escritos. Por meio 372

Disponível em: . Acesso em: 02 mar. 2015.

247

desses documentos, achegamo-nos a situações (“casos”) em que os códigos e emblemas são outros, em que a ação militar distancia-se do texto escrito para deixar-se orientar por outros textos, fluidos e que não se permitem ler em suportes fixos, mas naqueles impalpáveis, de natureza mental, moral, social... Esse legado documental, forjado contra a vontade daqueles que têm aí seus nomes grafados, são essa janela tão cara aos pesquisadores, pela qual podemos percorrer pequenos fatos que ocorreram mais ou menos distantes dos cenários dos grandes e destacados combates que se deram em guerras e revoltas de maior projeção. Esses eventos mais destacados, que estão mais vivos em nossa memória histórica, foram durante muito tempo narrados com tintas de heroísmo, exaltados como proezas e glórias do Exército Nacional. Nesses casos, os crimes se autojustificaram; e seus autores, quando oficiais, têm seus nomes imortalizados em nomes de ruas, praças ou cidades; dos soldados, quase sempre temos que nos conformar com o que dizem os registros institucionais, redigidos por oficiais. O processo-crime base deste trabalho tem a vantagem de ter passado pelas duas esferas, militar e civil, e nos permitir um olhar sobre como, nesse caso, tanto militares como os agentes do Poder Judiciário lidaram com a situação, como julgaram, os acordos e solidariedades tácitas. Infelizmente não é o tipo de documento encontrado facilmente; a maior parte dos processos criminais que tramitaram na Justiça Militar são de acesso difícil, muitos ainda considerados sigilosos. Muitos desses eventos militares menores foram levados a cabo com a mesma brutalidade, e encerram as mesmas tentativas de autojustificarem-se, como se viu ao longo das investigações nos conselhos de Investigação e de Guerra, especialmente nas defesas que fez o Alferes Torres. Ou seja, um caso quase imperceptível como o que procuramos reconstituir, de cifras e números infinitamente menores e menos alarmantes de vítimas, poderia ser buscado, caso tenha deixado alguma marca ou indício, em centenas de lugares de menor visibilidade no cenário nacional, fora dos grandes eixos, sendo surpreendentemente revelador de realidades profundamente subscritas. As colônias de imigrantes localizadas na Zona Estratégica situam-se em meio a contradições marcantes que se dão entre o discurso e as políticas de incentivo governamentais, e as práticas por vezes autoritárias do Exército, seu braço mais importante. Embora apareçam aqui e ali manifestações de interesse das autoridades com relação à apuração dos fatos, não há uma destacada preocupação com a punição dos responsáveis. Não

248

se trata de afirmarmos que não houve nenhuma consciência da gravidade da questão, ou de que todos os oficiais fossem descomprometidos a ponto de simplesmente ignorarem esses absurdos. Logo no início, ouvimos vozes dissonantes por meio do telegrama emitido pelo Capitão Felix Amorim, relatando o caso às autoridades militares do 5º Distrito, seguidos dos apelos do Ministro da Guerra e dos votos do Auditor e do Presidente do Conselho de Guerra, condenando os réus – o que salta aos olhos é a forma como os crimes foram-se esvaindo nesse longo percurso de interrogatórios e julgamentos em que ninguém foi, de fato, responsabilizado. O comportamento da Justiça (Militar e Civil), nesse caso, é indicativo dessa intrincada malha em que se cruzam um número incontável de sujeitos que influenciam na construção de uma verdade aceitável, a qual por vezes pode corresponder a interesses que se sobrepõem aos dos principais atores envolvidos, réus, vítimas ou seus familiares e pessoas próximas. Ao longo do processo, são muitos os sujeitos que observam, opinam, julgam e direcionam a construção da verdade final, e os fatos da noite praticamente se perdem – as vozes dos que estiveram presentes somem a ponto de tornaram-se inaudíveis. Mergulhar nesses arquivos é perscrutar os bastidores em que se exerce a justiça, é desvendar algo do que se faz, nos conselhos e tribunais, além de julgar. Algumas perguntas permanecem, e continuarão a nos intrigar: se fossem apenas soldados os envolvidos nos crimes, teríamos um resultado diferente? Embora no âmbito militar os conselheiros tenham podido manifestar-se de maneira individual, os réus foram julgados de forma um tanto conjunta, como destacamento, já na esfera cível compareceram isoladamente, de forma mais individualizada, separados os soldados (os dois que foram a julgamento) do oficial. Poderíamos esperar resultados diferentes na Justiça Comum do que os anunciados pela Justiça Castrense? A Justiça Militar vem resistindo há muitas décadas aos ataques, críticas e toda sorte de tentativas de mudanças, e a força de suas autojustificativas e autodefesas equipara-se à força de suas armas. A atuação dessa justiça especializada carece de pesquisas que promovam uma “devassa histórica”373 de suas sentenças, remexendo e revirando seus arquivos, com a finalidade de estabelecer paralelos com o comportamento e a atuação da Justiça Comum – esta mais abundante em estudos inovadores.

373

Fazemos novamente uso das palavras de Nélida Piñon (apud LEVINE, op. cit., p. 15).

249

As pesquisas e publicações sobre a Justiça Militar são escassas, boa parte produzida por seus próprios quadros, os historiadores de farda, em debates de caráter mais teórico, que pouco fazem uso do arquivo. Microestudos como este podem contribuir para romper com o hermetismo em que as corporações militares foram-se protegendo, projetando, em nível social, uma imagem de autossuficiência. Oxalá os arquivos estivessem todos de portas abertas, aguardando os pesquisadores interessados.

O ocorrido em General Carneiro destaca-se entre a diversidade e complexidade do contexto, pelo encontro específico entre esses dois grupos tão distantes e ao mesmo tempo marcados por tantas similitudes. Como os polacos é que foram atacados, e não o oposto, tendemos a sentir certa compaixão por eles374, mas não é nossa pretensão criar aqui uma polaridade, ilusória e enganosa. Embora se trate de grupos etnoculturais com fortes distinções, optamos por não encarar as coisas dessa forma, como uma realidade formada por lados opostos. O que temos são homens e mulheres concretos, que, embora vivendo em condições um tanto adversas, (re)elaboraram suas vidas diante das realidades naturais e humanas com que se depararam, interagindo por meio do convívio com os novos atores (em menor intensidade com os indígenas, com quem as relações se deram num plano mais distanciado). No caso dos polacos, tornaram-se também eles componentes da paisagem humana local, muitos também armaram-se e alguns foram parar no banco dos réus. Os documentos revelam que suas comunidades foram caracterizadas pelo conflito, tanto entre os conterrâneos como deles com os nacionais. Os estudos sobre a imigração polonesa na região sul do Paraná, suas interações e envolvimento com os nacionais e o fenômeno da criminalidade no interior de suas comunidades esperam por pesquisadores interessados. Suas crenças religiosas, por exemplo, são interessantes pelas diferenças de ritos trazidos, que resultaram na construção de templos diferenciados; seus casamentos, apadrinhamentos e as mais diversas formas como o exercício da religião ordenou suas comunidades podem provocar inúmeros e instigantes problemas de pesquisa. Do mesmo modo como os olhares sobre a imigração oscilaram entre a exaltação e a negação, assim também foi com a forma como se pensou e como se tratou o soldado

374

Aqui parafraseio Robert Levine, ao referir-se aos ataques promovidos em Canudos (LEVINE, op. cit., p. 31).

250

brasileiro, em sua grande maioria um mestiço, representante da população pobre em geral, majoritária no Brasil. Em momentos em que se fazia necessário forjar uma imagem apropriada do Exército, ele é descrito como nobre, intrépido e corajoso. Quando flagrado em situações como a ocorrida em 1900, os rótulos irão adequar-se aos interesses de onde partiram os discursos. Turbulentos e desordeiros, para os que condenaram suas atitudes inadequadas; ineptos e incapazes de discernir, para os que redigiram suas defesas. Nos epítetos de “generoso”, “intrépido” e “corajoso”, ouvimos falar os românticos que tentaram adequar o povo brasileiro, “degenerado” – do qual o soldado, por seu perfil, é um perfeito representante –, na perspectiva de passado heroico, marcado pela resistência, visão forjada inicialmente em relação aos indígenas. Nos rótulos de “turbulentos” e “desordeiros”, ouvimos os postulados pseudocientíficos do século XIX, reflexos dos dilemas vividos por uma sociedade que se vê forçada a confiar sua segurança e a ordem em seu país justamente aos autores da desordem. Transcorrido mais de um século desde que as famílias de camponeses foram brutalmente atacadas em sua residência, as forças policiais, cujos quadros ainda procedem, em grande número, das camadas inferiores, continuam a ser sinônimo de contradição. Em tempos em que determinadas facetas do crime, especialmente os que ocorrem entre as parcelas mais vulneráveis da população, bem como a ação policial, tornam-se muito mais expostas, particularmente em programas policialescos que são verdadeiros longas-metragens veiculados diariamente em canais de TV aberta, a caracterização dos agentes policiais pouco muda. Em uma perseguição policial a “bandidos”, por exemplo, é comum ouvirmos dizer, se houverem vítimas que a opinião pública julgue inocentes, que os policiais são despreparados375; tornam-se eles, então, os bandidos armados. Se o roubo e o assalto imperam, a sociedade, que “às vezes exige o policial e às vezes o monstro”376 grita por mais policiamento e rigor no tratamento aos contraventores. 375

A pesquisa “Opinião dos policiais brasileiros sobre reformas e modernização da segurança pública” é reveladora da realidade observada na formação dos policias brasileiros. A pesquisa ouviu mais de 21 mil profissionais de segurança pública (entre policiais civis, militares, rodoviários federais, agentes da polícia científica, peritos criminais e bombeiros) de todas as unidades da Federação – mais da metade deles, policiais militares, sobretudo praças. 82,7% dos entrevistados respondeu que a formação que obteve para o exercício da função foi de no máximo um ano; 38,8% já sofreram com algum tipo de tortura física ou psicológica e 64,4% já foram humilhados por superiores hierárquicos. (Pesquisa realizada pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas - CPJA, da Escola de Direito da FGV em São Paulo e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com a SENASP, 2014. Disponível em: ). Acesso em: 20 jul. 2015. 376 “‘A perversão começa na formação’, diz ex-PM condenado”. Entrevista com Rodrigo Nogueira Batista, op cit

251

Num revelador estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro que analisou as legislações disciplinares que regem as corporações de segurança pública brasileiras em perspectiva comparativa com as vigentes em outras nações, as conclusões apontam para uma realidade em que sua aplicação assemelha-se de forma perturbadora às condições observadas há tempos377. Segundo seus autores, com algumas exceções, “As legislações disciplinares das polícias do Brasil, tanto as militares quanto as civis, [...] ainda se caracterizam pela ênfase na preservação da hierarquia, deixando em segundo plano a regulação das relações com a sociedade.” (CANO, 2013, p. 367, grifo nosso). O sistema disciplinar no Brasil é destinado a proteger, sobretudo, a imagem da instituição, defendendo uma moral social conservadora e tradicional, que regula tanto a conduta profissional como a vida privada de seus agentes (ibidem, p. 367). A aplicação da legislação disciplinar serve-se de conceitos vagos como decoro, discórdia, desídia e outros, que abrem brechas e dão liberdade aos superiores hierárquicos que as interpretam, de alterar penas já ditadas, aumentando a insegurança jurídica e abrindo espaço para o surgimento de arbitrariedades e práticas autoritárias. Nesse sistema, o profissional dos níveis inferiores é visto como alguém que deve obedecer passivamente às ordens superiores, e que não tem o direito de questionar sua validade, muito menos alguma possibilidade de mudança (CANO, 2013, p. 367-368). “Em última análise, o sistema disciplinar atualmente em vigor parece mais condizente com uma visão de uma segurança tradicional, vertical e fechada do que com um paradigma da segurança pública moderna e democrática [...]” (CANO, 2013, p. 368), concluem os autores do estudo. Sem assumirmos uma posição muito fechada em relação à essas questões, já que espaços de questionamento sempre existiram, é possível dizer que muito ainda falta no sentido de se vislumbrar a referida modernização. A difícil tarefa de combater a criminalidade, quando a corrupção e a violência são ainda praticadas em larga escala em meio aos responsáveis pela segurança pública – embora não exclusivamente nesses espaços –, faz com que, para grande número de cidadãos comuns, as forças policiais sejam encaradas como um espectro que torna difícil e tensa a relação da

377

CANO, Ignacio (Coord.); DUARTE, Thais Lemos; FERNANDES, Márcia Adriana de Oliveira; SILVA, Pedro Seixas da Silva; RIBEIRO, Eduardo. Análise comparativa das legislações disciplinares das corporações de segurança pública: uma proposta de matriz de Lei Disciplinar para o Brasil. In: FIGUEIREDO, Isabel Seixas; NEME, Cristina; LIMA, Cristiane do Socorro Loureiro (Orgs.). Direitos humanos. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), 2013. 382 p, p. 303 a 382. (Coleção Pensando a Segurança Pública, v. 2).

252

população com essas autoridades. A ordem do Alferes Torres “Matem que eu respondo!”378 é ainda reproduzida no interior das Forças Armadas e aplicada sobre milhares de brasileiros impedidos de exercer sua cidadania, dos quais os homens que implantaram, a ferro e a fogo, o regime republicano não souberam sofrear o clamor (PIÑON apud LEVINE, 1995, p. 13).

378

“[...] olha, vocês podem fazer o que vocês quiserem, pega o pivete, bate, quebra o cassetete, dá porrada no flanelinha. Só não deixa ninguém filmar e nem tirar foto. O resto é com a gente.” A denúncia das condições de tratamento e formação de policiais, corrupção e autoritarismo entre suas fileiras é de Rodrigo Nogueira Batista ( “‘A perversão começa na formação’, op cit). Ver a obra do autor: BATISTA, Rodrigo Nogueira. Como nascem os monstros: a história de um ex-soldado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Topbooks, 2013. Denúncias de um ex-policial também podem ser encontradas em: ABRANTES, Darlan Menezes. Militarismo, um sistema arcaico de segurança pública. 3. ed. Fortaleza: Premius, 2008.

253

FONTES DE PESQUISA

Processos criminais arquivados no Fórum da Comarca de Palmas, PR

IP/1887/Bela Vista de Palmas. Denunciado: Santos Baron. IP/1905/General Carneiro. Denunciado: Antonio Paz de Almeida. IP/1905/Palmas. Denúncia sobre jornal manuscrito. IP/1908/Cedro. Denunciado: Jorge Manoel da Silva. IP/1908/General Carneiro. Denúnciado: Manoel José de Sant’Ana. IP/1908/Palmas. Denunciado: Isidoro Costa Pinto. IP/1911/Palmas, Fazenda Santa Rita. Denúncia de matança de índios IP/1916/Iraty. Denúncia de matança de índios IPM/1900/Colônia Militar do Chapecó. Denunciado: Antonio José Ferreira. IPM/1900/Colônia Militar do Chapecó. Denunciado: Antônio José Ferreira. PC/1887/Bela Vista de Palmas. Réu: José Antonio Brandão. PC/1900/Campo Erê. PC/1900/General Carneiro: Alferes Francisco Corrêa Torres e outros . PC/1905/Iraty. Réu: Joaquim da Cruz. PC/1906/Palmas. Réu: Miguel Borges dos Santos. PC/1907/Palmas. Réus Bazílio de Paula Guedes e outros. PC/1909/General Carneiro. Rinko Kolub. PC/1909/Jangada. Réus: Bazilio Wascovisky e Paulo Okpis. PC/1910/Palmas. Réu: Salvador Pimpão. PC/1912/Jangada. Antonio Gelasky. PC/1913/General Carneiro. Réus: Bazílio Waskovsky e Thomas Gaiowis. PC/1915/General Carneiro. Réu: João Clemente Tesseroli e outros. PC/1915/General Carneiro. Réu: João Clemente Tesseroli e outros. PC/1916/General Carneiro. Réus: Joaquim Rodrigues e Antonio de Souza. PC/1917/Palmas. Réu: José Raymundo Vasconcellos

254

Jornais

A Notícia, Curitiba, ano 3, n. 508, 17 jun. 1907. Brasil. Disponível em: . Acesso em: 23 jul. 2014. A

Notícia,

Curitiba,

ano,

2,

n.

67,

26

jan.1906.

Brasil.

Disponível

em:

. Acesso em: 12 jun. 2014. A República, Curitiba, ano 12, n. 114, 29 maio 1897. Brasil. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2014. A República, Curitiba, ano 12, n. 24, 31 jan. 1897. Brasil. Disponível em: . Acesso em 20 jan. 2015. A República, Curitiba, ano 13, n. 214, 30 set. 1898. Brasil. Disponível em: . Acesso em 20 jan. 2015.) A República, Curitiba, ano 14, n. 205, 13 set. 1899. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 19 maio 2015. A República, Curitiba, ano 14, n. 41, 21 fev. 1899. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2014. A República, Curitiba, ano 14, n. 56, 11 mar. 1899. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. A República, Curitiba, ano 14, n. 88, 20 abr. 1899. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014). A República, Curitiba, ano 14, n. 97, 2 maio 1899. Brasil. Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2015. A República, Curitiba, ano 15, n. 153, 13 jul. 1900. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 18 mar. 2014. A República, Curitiba, ano 15, n. 213, 25 set. 1900. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 20 jan. 2015. A República, Curitiba, ano 15, n. 220, 3 out. 1900, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2014. A Republica, Curitiba, ano 15, n. 239, 26 out. 1900. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. A República, Curitiba, ano 15, n. 36, 12 fev. 1900. Brasil, p. 3. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2014.

255

A República, Curitiba, ano 15, n. 38, 14 fev. 1900. Brasil, p. 2.

Disponível em:

. Acesso em 13 ago. 2014. A República, Curitiba, ano 16, n. 18, 22 jan. 1901. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. A República, Curitiba, ano 16, n. 246, 30 out. 1901. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 9 maio 2015. A República, Curitiba, ano 16, n. 251, 6 nov. 1901. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 9 maio 2015. A República, Curitiba, ano 16, n. 283, 14 dez. 1901. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 21 mar. 2014). A República, Curitiba, ano 16, n. 37, 13 fev. 1901. Brasil. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014 A República, Curitiba, ano 17, n. 29, 5 fev. 1902. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2014. A República, Curitiba, ano 17, n. 56, 11 março 1902. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 21 de março 2014). A República, Curitiba, ano 21, n. 14, 17 jan. 1906. Brasil, p. 14. hemerotecadigital.bn.br>. Acesso em 23 jul. 2014. A República, Curitiba, ano 23, n. 265, 11 nov. 1908. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2015. A República, Curitiba, ano 24, n. 105. 7 maio 1910. Brasil, p. 3. Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2015. A República, Curitiba, ano 29, n. 102, 6 maio 1915. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em 21 jul. 2014. A República, Curitiba, ano 7, n. 770, 25 set. 1892. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 9 maio 2015. A República, Curitiba, ano 8, n. 192, 20 ago. 1893. Brasil, p. 3. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2014. A República, Curitiba, ano 8, n. 241, 10 nov. 1893. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em 23 jul. 2014. A República, Curitiba, ano. 16, n. 114, 20 maio 1901. Brasil, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014.

256

A República, Curitiba, n. 15, 18 jan. 1890. Brasil, p. 2 e 3. Disponível em . Acesso em 23 jul. 2014. A República. Curitiba, ano 15, n. 231, 17 out. 1900, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. A República. Curitiba, ano 15, n. 68, 25 mar. 1899, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, ano 27, n. 38, 7 fev. 1901. Brasil, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2014. O Dia, Órgão do Partido Republicano Catharinense, Florianópolis, Ano 4, n. 991, 1º maio 1904. Brasil, p. 3. Disponível em: . Acesso em 23 jul. 2014> O Militar, Rio de Janeiro, ano 1, n. 6, 30 set. 1854. Brasil, p. 4. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2014. O Militar, Rio de Janeiro, ano 1, n. 7, 26 out. 1854. Brasil, p. 4. Disponível em: . Acesso em 17 jul. 2014. O Palmense, Palmas, ano 6, n. 146, 4 fev. 1906. Brasil, p. 2. O Palmense, Palmas, ano 6, n. 154, 22 abr. 1906. Brasil, p. 1 O Palmense, Palmas, ano 6, n. 160, 12 jul. 1906. Brasil, p. 2. O Palmense, Palmas, ano 6, n. 179, 2 dez. 1906. Brasil, p.4. O Palmense, Palmas, ano 6, n. 224, 20 out. 1906. Brasil, p. 2. O Palmense, Palmas, ano 7, n. 183, 1 mar. 1907. Brasil, p. 3. O Palmense, Palmas, ano 8, n. 243, 1º mar. 1908. Brasil, p. 1. Revista do Exército Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 4, n. 4, p. 100, 1885. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015). Revista do Exército Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 4, n. 4, p. 84, 1885. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015).

Relatórios do Ministério da Guerra

COELHO, Jeronymo Francisco. [Relatório] s/d 1858, apresentado à Assembléia Geral Legislativa, pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Localização:

257

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN). Disponível em . Acesso em 10 fev. 2014). FROTA, Antonio Nicoláo Falcão da. [Relatório] jun. 1891, apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN). Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. MALLET, João Nepumoceno de Medeiros [Relatório] maio 1899, apresentado à Assembléia Geral Legislativa, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN),. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014 MALLET, João Nepumoceno de Medeiros [Relatório] maio 1900, apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN),. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. MALLET, João Nepumoceno de Medeiros [Relatório] maio 1901, apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo Ministro de Estado da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN),. Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. MELLO, Manuel Felizardo de Souza e. [Relatório] s/d 1850, apresentado à Assembleia Geral Legislativa, pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN). Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. MELLO, Manuel Felizardo de Souza e. [Relatório] s/d 1851, apresentado à Assembleia Geral Legislativa, pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN). Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. MORAES José Manoel de. [Relatório] s/d 1830, apresentado à Assembleia Legislativa, pelo Ministro da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN). Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. MOURA, Francisco Antonio de. [Relatório] maio 1892, apresentado ao Vice Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado dos Negócios da Guerra.

258

Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN). Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. OLIVEIRA, Conselheiro Candido Luiz Maria de. [Relatório] s/d 1885, apresentado à Assembléia Geral Legislativa, pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN). Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014.

Relatórios do Governo da Província do Paraná

BELLO, Luiz Alves Leite de Oliveira. [Relatório] 1º out. 1883B, apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. BURLAMAQUE, Polidoro Cezar. [Relatório] 17 ago. 1867, apresentado a Carlos Augusto Ferraz de Abreu, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. CARDOSO, José Francisco. [Relatório] 1º mar. 1860, apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. CARVALHO, Carlos Augusto. [Relatório] 1º out. 1882, apresentado à Assembléia Legislativa do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN). Disponível em Acesso em: 10 fev. 2014. CERQUEIRA, Arthur Pedreira. [Relatório] s/d 1900, apresentado ao Governador do Estado do Paraná, pelo Secretário dos Negócios de Obras Públicas e Colonização. Localização: Arquivo Público do Paraná. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. D’OLIVEIRA, Brazilio Augusto Machado. [Relatório] 15 set. 1884, apresentado à Assembléia Legislativa, pelo Presidente da Província do Paraná. Localização: Arquivo Público do Paraná. Disponível em Acesso em: 10 nov. 2014.

259

PEDROSA, João José. [Relatório] 16 fev. 1881A, apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. PEDROSA, João José. [Relatório] 8 maio 1881B, apresentado ao Presidente da Província Sancho de Barros Pimentel, por ocasião da transmissão do cargo. Localização: Arquivo Público do Paraná. Disponível em . Acesso em: 10 fev. 2014. RIBEIRO, Miranda. [Relatório] s/d 1888C, apresentado à Assembleia Legislativa da Província do Paraná, pelo Presidente da Província. Localização: Arquivo Público do Paraná. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2014.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

260

Teses e dissertações

ANDREAZZA, Maria Luiza. Paraíso das delícias: estudo de um grupo imigrante ucraniano (1895-1995). 1996. 412 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, 1996. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2013. BARRACHO, Carlos José Bernardo da Silva. Estratégias de poder e autoridade em contextos sócio-políticos diferenciados. 2007. 384 f. Tese (Doutorado em Ciências Políticas). Universidade de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela, 2007. Disponível em: . Acesso em 10 jan. 2015. FERNANDES, Thais Cristina. Justiça Militar da União e o Princípio da Imparcialidade: o embate entre o Direito e a Doutrina Militar. 2013. 96 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito). Curso de Direito. Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), Lorena, 2013. Disponíel em: . Acesso em: 02 dez. 2014. FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson. Crimes de Fronteira: a criminalidade na fronteira meridional do Brasil (1845-1889). 2012. 343 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS), Porto Alegre, 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2013. LAMB, Roberto Edgar. Uma jornada civilizadora: imigração, conflito social e segurança pública na província do Paraná – 1867 a 1882. 1994. 120 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal do Paraná (UFPR), . Acesso em: 20 jan. 2014. MARQUETTI, Délcio. Bandidos, forasteiros e intrusos: a criminalidade na Região do Alto Irani, 1917-1942. 2003. 152f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade de Passo Fundo (UPF), Passo Fundo, 2003. MAUCH, Cláudia. Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre, 1896-1929. 2011. 284 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2011. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/.../000791411.pdf?...1. Acesso em: 12 dez. 2014. MENDES, Adilson Miranda. Origem e composição das fortunas na sociedade tradicional paranaense (Palmas: 1859-1903). 1989. 429 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal do Paraná (UFPR),

261

Curitiba,1989. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015. RIBEIRO, José Iran. “De tão longe para sustentar a honra nacional”: Estado e Nação nas trajetórias dos militares do Exército Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. 2009. 376 f. Tese (Doutorado em História Social) Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2009. RODRIGUES, Rogério Rosa. Veredas de um grande sertão: a Guerra do Contestado e a modernização do Exército brasileiro. 2008. 430 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2015. SILVA, Sabrina Souza da. Todos são culpados? Uma etnografia na auditoria de Justiça Militar do Estado do Rio de Janeiro. 2013. 208 f Tese (Doutorado em Antropologia) Programa de Pós Graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2013. Disponível em: Acesso em: 12 nov. 2014. TOMACHESKI, Mauro Baltazar. A terra prometida da virgem Maria: imigrantes, viajantes intelectuais e colonos na imigração polaca. 2014. 266 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, 2014.

Demais referências

ABRANTES, Darlan Menezes. Militarismo, um sistema arcaico de segurança pública. 3 ed. Fortaleza: Editora Premius, 2008. AGUIAR, Roberto. Os militares e a constituinte. São Paulo: Alfa-Ômega, 1986. ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007. ALMEIDA, Silvia Capanema P. A modernização do material e do pessoal da Marinha nas vésperas da revolta dos marujos de 1910: modelos e contradições. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 45, pp. 147-169, 2010. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103... Acesso em: 23 ago. 2013. ALVAREZ, Marcos César; SALLA, Fernando; SOUZA, Luís Antônio F. A sociedade e a lei: o Código Penal de 1890 e as novas tendências penais na Primeira República. Justiça e História. Porto Alegre: v. 3, n. 6, 2003. ALVES, Paulo. A verdade da repressão: práticas penais e outras estratégias na ordem republicana: 1890-1921. São Paulo: Editora Arte & Ciência/UNIP, 1997.

262

ANDRÉA, José. O Marechal Andréa nos relevos da história do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977. ANDRÉS-GALLEGO, José. História da gente pouco importante: América e Europa até 1789. Lisboa: Estampa, 1993. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000. ASSIS, Jorge César. Comentários ao código penal militar. Curitiba: Juruá, 2004. ASSIS, Jorge Cesar. Uma visão crítica sobre o Ministério Público Militar durante o período da República Velha. Site Jus Militaris, 2009. Disponível em . Acesso em: 12 abr. 2014. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004. AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. A força do direito e a violência das formas jurídicas. Revista de Sociologia Política, Curitiba, v. 19, n. 40, out. 2011, p. 27-41. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2014. BALANDIER, George. A desordem: elogio do movimento. Trad. de Suzana Martins. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BANDEIRA, Esmeraldino Olímpio Torres. Direito, Justiça e Processo Militar. 1º volume, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1919. BANDEIRA, Esmeraldino Olímpio Torres. Curso de Direito Penal Militar. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1915. BARROS, Iberê Moreno Rosário e. As forças armadas brasileiras defendem valores e não apenas território: como a revista “Em Guarda” retrata a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Anais eletrônicos do XXII Encontro Estadual de História da Anpuh-SP. Santos, 2014. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2015. BARTH, Frederik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Tradução de John Cunha Comeford. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. ROSENTAL, Paul-André. Construir o “macro” pelo “micro”: Fredrik Barth e a “microstoria”. In: REVEL, Jacques (org.) Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Tradução Dora Rocha. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998.

263

BATALHONE JR. Vitor Claret. O poder dos começos: uma reflexão sobre a autoridade. História da historiografia, número 7, nov/dez 2011. Ouro Preto, p. 331-337. Disponível em: . Acesso em: 23 nov. 2014. BATISTA, Rodrigo Nogueira. Como nascem os monstros: a história de um ex-soldado da polícia militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 2013. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. BEATTIE, Peter M. Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil, 1864-1945. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. BEATTIE, Peter. Conscription versus penal servitude: army reform‟s influence on the Brazilian state‟s management of social control, 1870-1890. In: Journal of Social History. Fairfax, Virginia: Johns Hopkins University, 1999. v. 32, nº 4. BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 15. BENTO, Cláudio Moreira. Pesquisa na História Militar. In: PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes; CODEÇO, Vanessa Ferreira de Sá. Anais do Encontro de Historiadores Militares. Resende, RJ, Brasil, de 18 a 20 de maio 2012. Rio de Janeiro: EPHiMEx, 2012, p. 35-46, p. 10, grifo no original. Disponível em: www.dphcex.ensino.eb.br/.../Anais-IEncontro-HistMilitares-28-10-2012.p.

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis, Vozes: 1985. BORUSZENKO, O. Os ucranianos. Boletim Informativo da Casa Romário Martins. 2. ed. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, v. 22, nº 108, 1995. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. BOUTIN, Leônidas. Colônias Militares na Província do Paraná. Curitiba: Separata do Boletim do IHGEP, Nov/1977. BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português 1415-1825. Tradução Anna Olga de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe II. São Paulo: Martins Fonte, 1989. BRETAS, Marcos Luiz. As Empadas do Confeiteiro Imaginário A pesquisa nos arquivos da justiça criminal e a história da violência no Rio de Janeiro. Acervo. Revista do Arquivo

264

Nacional. Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, jan/jun 2002, p. 7-22. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2014. BREVES, Wenceslao de Souza. O Chapecó que eu conheci. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Nº 6, Florianópolis, 1985, p. 7-73. BRUIT, Héctor; ABRAHÃO, Fernando Antônio. Criminalidade e modernização em Campinas: 1880 a 1930. Bases teórico-metodológicas e fontes para seu estudo. Resgate, n. 10. Campinas, 2001, p. 9 a 22. BRUNSWICK, Henrique. Novo Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa. 3. ed. Lisboa: Empresa Literária Fluminense, [19--?]. BUCHMANN, Elane Tomich. A trajetória do sol: um estudo sobre a identidade do imigrante polonês no sul do Brasil. Coleção Farol do Saber. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992, p. 7-37. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. CALMON, Pedro. Franklin Dória, Barão de Loreto. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1981. CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei: 1889-1930. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. CANO, Ignacio (Coord.); DUARTE, Thais Lemos; FERNANDES, Márcia Adriana de Oliveira; SILVA, Pedro Seixas da Silva; RIBEIRO, Eduardo. Análise comparativa das legislações disciplinares das corporações de segurança pública: uma proposta de matriz de Lei Disciplinar para o Brasil. In: FIGUEIREDO, Isabel Seixas; NEME, Cristina; LIMA, Cristiane do Socorro Loureiro (Orgs.). Direitos humanos. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), 2013. 382 p, p. 303 a 382. (Coleção Pensando a Segurança Pública, v. 2. Disponível em: . Acesso em: 23 jul. 2015. CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 1-23. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Negros, loucos negros. Revista da USP, São Paulo, n. 18, 1993, p. 146-151.

265

CARVALHO, Bruno Guedes de. Verde-olivas carmesins? Militares subalternos, radicalização política e historiografia política no Brasil. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. CARVALHO, José Murilo de. As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador. In: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano. Tomo III, vol. 2. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 182-234. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo Caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Dados, v. 40, n. 2, 1997. CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Selo Negro, 2000. CASTRO, Celso. Exército e nação: estudos sobre a história do exército brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012. CASTRO, Celso. O espírito militar: um estudo de antropologia social na Academia Militar das Agulhas Negras. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. CASTRO, Celso. Os militares e a República: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. CASTRO, Celso. Revoltas de soldados contra a república. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (Orgs.). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004. CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor e KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova História Militar Brasileira. RJ: FGV, 2004. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Unicamp, 2000. CENTRO DE MEMÓRIA DO OESTE DE SANTA CATARINA – CEOM. Sobre a cultura cabocla: inventário da cultura imaterial cabocla no oeste de Santa Catarina. Chapecó: Argos, 2008. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril – cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996;

266

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da bélle époque. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo. Contexto, 2006. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Diccionario de Medicina Popular e das Sciencias Accessarias para Uso das Famílias. v. 1. 6. ed. Paris: A. Roger & F. Chernoviz, 1890. CIDADE, Francisco de Paula. Síntese de três séculos de literatura militar brasileira. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998. Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1834. Parte Primeira. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, Rua da Guarda Velha, 1866. CORRÊA, Mariza. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983. COSTA, Gustavo Villela Lima da; OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de. Mestrado interdisciplinar em estudos fronteiriços/UFMS: perspectivas, discussões e pesquisas. Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 4, n. 6, jan./jul. 2012, p. 27-44. CUCHE, Denys. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002. CUNHA, Olívia M. Gomes; GOMES, Flávio Gomes dos Santos (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DORNELLES, João Ricardo W. O que é crime. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. DOSSE, François. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São Paulo: Editora Unesp, 2013. DUARTE, Antônio Pereira. A construção científica do ordenamento militar. Revista do Ministério Público Militar. Ano 37, n. 22 (nov. 2011). Brasília: Procuradoria-Geral de Justiça Militar. DUARTE, Geni Rosa (et al.) Experiências e memórias de deslocamentos no oeste do Paraná. Cascavel, PR: EDUNIOESTE, 2012. DUBY, Georges. As três ordens, ou o imaginário do feudalismo. 2. ed. Tradução Maria Helena Costa Dias. Lisboa/Portugal: Estampa, 1994.

267

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. L.; Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma comunidade; tradução Vera Ribeiro; tradução do posfácio à edição alemã, Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. ELMIR, Cláudio Pereira. O crime em disputa, o campo jurídico e as lutas para a instauração do discurso legítimo acerca da negatividade do social. In: RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti e FÉLIX, Loiva Otero (Orgs.). RS: 200 anos – definindo espaços na história nacional. Passo Fundo: UPF Editora, 2002, p. 325-332. ESPIG, Márcia Janete. Uma “ferrovia estratégica”? A atuação da Estrada de Ferro São Paulo Rio Grande durante a Guerra do Contestado. In: VALENTINI, Delmir José; ESPIG, Marcia Janete e MACHADO, Paulo Pinheiro (orgs.). Nem fanáticos, nem jagunços: reflexões sobre o Contestado (1912-2012). Pelotas: Editora da Universidade Federal de Pelotas, 2012. FAGUNDES, João Batista. A Justiça do Comandante. 2. ed., Brasília, Edição do Autor, 2002. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. FIGUEIREDO, Antonio Cândido de. Dicionário da Língua Portuguesa. v. II. 11. ed. Lisboa: Livraria Bertrand, 1951, p. 745. FLORES, Maria Bernardete Ramos. Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estação do chopp. Florianópolis, SC: Letras contemporâneas, 1997. FORTES, Adílio. A Proto-história do município de Chapecó, oeste de Santa Catarina: 1641 a 24-08-1917. São Paulo: Carthago, 1990. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1996. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989. FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: Ditos e escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 411-422. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. São Paulo: Vozes, 2004. FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o Arquivo de Gustavo Capanema. Estudos Históricos, Rio de Janeiro (CPDOC-FGV), v. 11, n. 21, p. 59-87, 1998; FREYESLEBEN, Márcio Luiz Chila. A prisão provisória no Código de Processo Penal Militar. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. FREYRE, G. Sobrados e Mocambos. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961 GAWRYCKI Marcin Florian. O exótico Brasil na literatura polonesa de viagens: em busca da realidade imaginada. In: Polonicus: revista de reflexão Brasil-Polônia / Missão Católica Polonesa no Brasil. Curitiba, Ano 1, n. 1 (jan/jun. 2010), p. 43-80.

268

GAYOL, Sandra. Sociabilidad en Buenos Aires, hombres, honor y cafés, 1862-1910. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2000; PESAVENTO, Sandra Jatahy; GAYOL, Sandra (orgs.). Sociabilidades, justiças e violências: práticas e representações culturais no Cone Sul (séculos XIX e XX). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p. 149. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações. A Micro-História e Outros Ensaios. Lisboa: DIFEL/Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. GOMES, Flávio dos Santos; CUNHA, Olívia Maria Gomes. Introdução: que cidadão? Retóricas da igualdade, cotidiano da diferença. In: GOMES, Flávio dos Santos; CUNHA, Olívia Maria Gomes da (org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 7-19. GOMES, José Eudes Arrais Barroso. Um escandaloso theatro de horrores: a capitania do Ceará sob o espectro da violência. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2010. GOMES, José Eudes. Na mira da lei: no Brasil a legislação que regulamenta o porte de armas remete ao período colonial. Revista de História, 23/05/2011, . GRIMSON, Alejandro. Pensar Fronteras desde las Fronteras. Nueva Sociedad n.170. Noviembre-Deciembre. Honduras, 2000. GRINBERG, Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla B.; LUCA, Tania R. de. (orgs.) O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. pp. 119139. GUSMÃO, Chrysolito de. Direito penal militar. Rio de Janeiro: Editor Jacintho Ribeiro dos Santos, 1915. HARTOG, François. O Espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. HEINZ, Flavio. Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma história comparada da América Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009. HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005. HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, Memória e Resíduo. Uma reflexão sobre Arquivos Pessoais e o caso Filinto Muller. Estudos Históricos, Rio de Janeiro (CPDOC-FGV), v. 10, n. 19, p. 41-66, 1997.

269

HILL, Christopher. O Mundo de Ponta-Cabeça. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. HOBSBAWM, E. J. Nações e nacionalismos desde 1870: Programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. HOBSBAWM, Eric. A outra história: algumas reflexões. In: KRANTZ, Frederick (Org.). A outra história: ideologia e protesto popular nos séculos XVII a XIX. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 18-33. HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. HOERTEL, Max. Crimes propriamente militares: A Deserção. Revista do Superior Tribunal Militar. Informativo da Justiça Militar da União. Ano 3, n. 4, jul-dez 2006. Disponível em: IAROCHINSKI, Ulisses. Polaco: identidade cultural do brasileiro descendente de imigrantes da Polônia. Curitiba: Edição do Autor, 2010. IAROCHINSKI, Ulisses. Porque Polaco! Cracóvia, Polônia: Universidade Jaguielônica Instituto de História, 2003. Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2015. JENKINS, Keith. A história repensada. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004. JULLIARD, Jacques. A Política. In LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. KANT DE LIMA, Roberto. Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada. Anuário Antropológico/2009 2, 2010: 25-51. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 1015. KEITH, Herny Hunt. Soldados salvadores: as revoltas militares brasileiras de 1922 e 1924 em perspectiva histórica. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1989. KLOBUKOWSKI, E. Recordações de viagem. Anais da Comunidade Brasileiro-Polonesa. v. 4. Curitiba: Gráfica Vicentina, 1971. KRAAY, Hendrik. “O abrigo da farda”: o Exército brasileiro e os escravos fugidos, 18001888. In: Afro-Ásia. Revista de Estudos Afro-orientais da Universidade Federal da Bahia. Salvador. nº 17, 1996. LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. São Paulo: Paz e Terra, 1988. LAROCCA, Júnior Joel, LAROCCA Pier Luigi e LIMA, Clarisse de Almeida. Casa eslavoparanaense. Arquitetura de madeira dos colonos poloneses e ucranianos do sul do Paraná. Ponta Grossa: Editora Larocca Associados, 2008.

270

LELLO. Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro. Vol. 3. Porto: Lello & Irmão, [19--?]. LEMOS, Renato. A Justiça Militar e a implantação da ordem republicana no Brasil. Topoi, v. 13, n. 24, jan.-jun. 2012, p. 60-72. LEMOS, Renato. Justiça Militar e ordem republicana no Brasil: da linha de comando à defesa do Estado (1889-1895). Usos do Passado — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ, 2006. Disponível em: . Acesso em: 28 maio 2014. LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. LEVI, Giovanni. Prefácio. OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 11-16. LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992, p. 133-161. LEVINE, Robert M. O sertão prometido: o massacre de Canudos no Nordeste brasileiro, 1893. São Paulo: Editora da USP, 1995. LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: Escalas, Indícios e Singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ, UCAM, 1999. LOBÃO, Célio. Direito Processual Penal Militar. Brasília: Brasília Jurídica, 2009. LOPES, Sergio. O território do Iguaçu no contexto da “Marcha para o Oeste”. Cascavel: Edunioeste, 2002. (Coleção Thésis). LOUREIRO NETO. José da Silva. Direito penal militar. São Paulo: Atlas, 1999. LUVAAS, Jay. A História Militar. O ponto de vista de um historiador clássico. In: WEIGLEY, Russel F. (org.). Novas dimensões da história militar. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1981-82, p. 37-55. LYRA, Roberto. O júri sob todos os aspectos. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1950. MACHADO NETO, Zahidé. Direito penal e estrutura social: comentário sociológico ao Código Criminal de 1830. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo/Saraiva, 1977. MACHADO, Ironita P. História e direito: possibilidades metodológicas. História: debates e tendências, Passo Fundo, v. 1, n. 1, p. 81-93, 2011.

271

MACHADO, Lia Osório. Limites, Fronteiras e Redes. In: T. M. Strohaecker, A. Damiani, N. O. Schaffer, N. Bauth, V. S. Dutra (org.). Fronteiras e Espaço Global, AGB-Porto Alegre, Porto Alegre, 1998, p. 41-49. MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão. Trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1930-1888). São Paulo: Brasiliense, 1987. MACHADO, Ricardo; VOIGT, André Fabiano (Orgs.). Desterritorializações do Vale. Blumenau: Liquidificador Produtos Culturais, 2012. VOIGT, André Fabiano. A invenção do teuto-brasileiro. Blumenau, SC: Liquidificador Produtos Culturais, 2103. MAGNOLI, Demétrio. O Corpo da Pátria: Imaginação Geográfica e Política Externa no Brasil (1808-1912). São Paulo, Unesp-Moderna, 1997. MALAN, Alfredo Souto. Uma escolha, um destino. Vida do General Malan d’Angrogne. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977. MANCUSO, Amanda Pinheiro. A História Militar: notas sobre o desenvolvimento do campo e a contribuição da História Cultural. Revista História em Reflexão: Vol. 2 n. 4 – UFGD Dourados jul/dez 2008. MANCUSO, Amanda Pinheiro. A profissão militar: uma revisão de conceitos. XII Congresso Brasileiro de Sociologia. 31 de maio a 03 de junho de 2005 Fafich/UFMG – Belo Horizonte, MG. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2014. MARMILICZ, Paulo Tomaz. A antiga colônia polonesa de Guarani das Missões e suas relações atuais. Ijuí: Policromia, 1996. MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. Campinas: Bookseller, 1997. MARTINS, José de Souza. Fronteira. A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: HUCITEC, 1997. MARTINS, Maria Cristina Bohn; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt (Org.). Uma história em escalas: a microanálise e a historiografia latino-americana. São Leopoldo: Oikus/Ed. da Unisinos, 2012. MATHIAS, Carlos Fernando. Notas para uma história do judiciário no Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: significado da liberdade no sudeste escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. MATTOS, Meira. A geopolítica e as projeções do poder. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1977.

272

McCANN, Frank D. A nação armada. Ensaios sobre a História do Exército Brasileiro. Recife: Guararapes, 1982. MELLO, J.D.C. O inquérito policial em face do anteprojeto. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal. Ano 2, n. 9, 1965. MENDES, Fábio Faria. A Economia Moral do Recrutamento Militar no Império Brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n.38, 1998. Disponível em: Acesso em: 14 set. 2013. MENDES, Regina Lúcia Teixeira de. Brasileiros: nacionais ou cidadãos? Um estudo acerca dos direitos de cidadania no Brasil em perspectiva comparada. SJRJ, Rio de Janeiro, n. 20, p. 61-80, 2007. MENEZES, Lená Medeiros de. Um outro olhar sobre a imigração no Rio de Janeiro. In: Acervo: Revista do Arquivo Nacional, vol. 10, n. 2, jul/dez de 1997. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1998. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2013. MEZNAR, Joan E. The Ranks of the Poor: Military Service and Social Differentiation in Northeast Brazil, 1830-1875. Hispanic American Historical Review, n. 72, v. 3, p. 335-351, ago. 1992. MIRANDA, Ana Paula Mendes de; PITTA, María Victoria. Rotinas burocráticas e linguagens do Estado: políticas de registros estatísticos criminais sobre mortes violentas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Revista de Sociologia Política. V. 19, n. 40. Curitiba, outubro de 2011, p. 59-81. MISSE, Michel. O inquérito policial no Brasil: Resultados gerais de uma pesquisa. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. V. 3, n. 7, Jan/Fev/Mar 2010, pp. 35-50. MISSE, Michel. Sobre a construção social do crime no Brasil. Esboços de uma interpretação. In: _____. (org.). Acusados & acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan/Faperj, 2008. MONSMA, Karl. "A Polícia e as Populações 'Perigosas' no Interior Paulista, 1880-1900: Escravos, Libertos, Portugueses e Italianos", in Desigualdade na Diversidade: 26ª Reunião Brasileira de Antropologia (CD ROM). Brasília, Associação Brasileira de Antropologia. 01 a 04 de junho de 2008. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2015. MONSMA, Karl. 2006. Conflito simbólico e violência interétnica: europeus e negros no Oeste Paulista, 1888-1914. História em Revista (UFPel). Pelotas, RS, v. 10, n. Dezembro, p. 95-115.

273

MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Voluntários Negros da Pátria: O recrutamento de escravos e libertos na Guerra do Paraguai In: Gente de Guerra e Fronteira: Estudos de História Militar do Rio Grande do Sul. Pelotas/RS: Ed. da UFPEL, 2010, p. 175-198. MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Inquéritos Disciplinares e Fés-de-Ofício: Fontes documentais para a análise do comportamento estudantil da mocidade militar no final do Império (Escola Militar/RS). Métis, Caxias do Sul, v.1, p. 43-172, 2004. MORGADO, Sergio Roberto Dentino. Abordagem Tradicional da História Militar. In: PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes; CODEÇO, Vanessa Ferreira de Sá. Anais do Encontro de Historiadores Militares. Resende, RJ, Brasil, de 18 a 20 de maio 2012. Rio de Janeiro: EPHiMEx, 2012, p. 9-19. Disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2015. MOSSIM, Heráclito Antônio. Júri: crimes e processo. São Paulo: Atlas, 1999. MOTTA, Cândido. Classificação dos criminosos: introdução ao estudo do Direito Penal. São Paulo: J. Rossetti, 1925. NACKE, Aneliese et al. (Orgs.). Os Kaingang no oeste Catarinense: tradição e atualidade. Chapecó, SC: Argos, 2007. NEUMANN, E. S. A fronteira tripartida: a formação do continente do Rio Grande - século XVIII. In: Luiz Alberto Grijó; Fábio Kuhn; Cesar Augusto Barcellos Guazzelli; Eduardo Santos Neumann. (Org.). Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2004, p. 25-46. OLIVEIRA, Lendel Fernandes. A inconveniência do julgamento dos crimes militares impróprios pelo escabinato na justiça militar. Revista do Ministério Público Militar. Ano 36, n. 21, abr. 2010. Brasília: Procuradoria-Geral de Justiça Militar. OLIVEIRA, Luiz Roberto Cardoso de. Existe violência sem agressão moral? Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 23, n. 67, junho/2008. Opinião dos policiais brasileiros sobre reformas e modernização da segurança pública. (Pesquisa realizada pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas - CPJA, da Escola de Direito da FGV em São Paulo e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com a SENASP, 2014. Disponível em: ). Acesso em: 20 jul. 2015. PEDRA, Justiça militar da união em evolução: a mais tradicional justiça brasileira e os desafios da atualidade. Revista do Ministério Público Militar. Ano 39, n. 24 (nov. 2014). Brasília: Procuradoria-Geral de Justiça Militar. PERROT, Michele. Os excluídos da história, operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

274

PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru, SP: Jalovi, 1980. PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas: os degredados no Brasil-Colônia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil/Fundação Biblioteca Nacional, 2000. PIKE, Luz Irene. Militares revolucionários del Brasil em la frontera argentino-brasilenã: uma aproximación hacia los procesos transfronterizos (1924-1927). In: VALENTINI, Delmir José; ESPIG, Marcia Janete e MACHADO, Paulo Pinheiro (orgs.). Nem fanáticos, nem jagunços: reflexões sobre o Contestado (1912-2012). Pelotas: Editora da Universidade Federal de Pelotas, 2012. PILOTTO, Osvaldo. Cem anos de imprensa no Paraná (1854-1954). Edição do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. Curitiba: Estante Paranista, ano 1, n. 1, 1976. PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. PORTO, M. E. de Campos. Apontamentos para a história da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890. POSSAMAI, Paulo César. Soldados do norte nas guerras do sul: o recrutamento militar na Bahia e em Pernambuco para a Colônia do Sacramento. In: Clio Revista de Pesquisa Histórica. Dossiê História Colonial I. ISSN: 0102-9487 n. 29.1, 2011. POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Tradução Elcio Fernandes. 2. ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2011. RADIN, José Carlos. Italianos e ítalo-brasileiros na colonização do oeste catarinense. Joaçaba: Ed. da Unoesc, 1997. RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática. 1993. RAMOS JR., J. Semiotécnica da observação clínica. Rio de Janeiro: Sarvier, 1996. REICHEL, Heloisa. Fronteiras no Espaço Platino. In: REICHEL, Heloisa (org./e outros). História Geral do Rio Grande do Sul. Passo Fundo, Méritos, 2006. RENK, Arlene. A luta da erva: um ofício étnico da nação brasileira no oeste catarinense. Chapecó: Argos, 2006. REVEL, Jacques (Org.) Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. REVEL, Jacques. Conhecimento do território, produção do território: França, séculos XIII-XIX. A invenção da Sociedade. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.103-158. REVEL, Jacques. Prefácio: a história ao rés-do-chão. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

275

RIBAS, Joaquim Osório. História do Município de General Carneiro. 2008. RIBEIRO, José Iran. Apresentar armas! Considerações historiográficas, metodológicas e empíricas sobre a redução de escala na pesquisa em História Militar. In: MARTINS, Maria Cristina Bohn; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Uma história em escalas. A microanálise a historiografia latino-americana. São Leopoldo: Oikos, Editora Unisinos, 2012, p. 151-180. RIBEIRO, Luciano Melo. 200 anos de Justiça Militar no Brasil. Rio de Janeiro: Action Ed., 2008. RIBEIRO, Renato Janine. Memórias de si, ou... Estudos Históricos, Rio de Janeiro (CPDOC-FGV), v. 11, n. 21, p. 35-42, 1998. ROCHE, Daniel. O povo de Paris: ensaio sobre a cultura popular no século XVIII. São Paulo: Edusp, 2004. RODRIGUES, Rogério Rosa. As trincheiras da palavra: os historiadores de farda e as narrativas históricas da guerra do Contestado. VALENTINI, Delmir José; ESPIG, Marcia Janete e MACHADO, Paulo Pinheiro (orgs.). Nem fanáticos, nem jagunços: reflexões sobre o Contestado (1912-2012). Pelotas: Editora da Universidade Federal de Pelotas, 2012, p. 237261. ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de Direito Penal Militar: Parte Geral. São Paulo: Editora Sariava, 1994. ROSENTAL, Paul-André. Construir o “macro” pelo “micro”: Fredrik Barth e a “microstoria”. In: REVEL, Jacques (org.) Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Tradução Dora Rocha. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. SANTOS, Francisco Ruas. Prefácio. WEIGLEY, Russel F. (org.). Novas dimensões da história militar. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1981-82, p. 37-55. SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. SCHULZ, John. O Exército e o Império. In: ELLIS, Myriam (et al). O Brasil monárquico, v. 4: declínio e queda do Impérios. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. História Geral da Civilização Brasileira, p. 235-238. SCHULZ, John. O Exército na política: origens da intervenção militar, 1850-1894. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças - Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. SEYFERTH, Giralda. A identidade teuto-brasileira numa perspectiva histórica. In: MAUCH, Claudia; VASCONCELLOS, Naira (Orgs.). Os Alemães no Sul do Brasil. Canoas: ULBRA, 1994.

276

SHARPE, A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portuguesa. Tomo 1 e 2. Rio de Janeiro, Oficinas da S. A. Litho-Litotipographia Fluminense, 1922. (Edição fac-símile da 2. ed., de 1813, sendo a 1. ed. de Lisboa, Officina de Simão Thadeo Ferreira, em 1789). SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa. Tomo 1. Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1813[1789]. SIUDA-AMBROZIAK, Renata. A comunidade polônica brasileira e a sua visão da Polônia e do Polonismo. In: Polonicus: revista de reflexão Brasil-Polônia/Missão Católica Polonesa no Brasil. Curitiba: Ano 2, n. 3 (jan/jun. 2011), p. 91-104. SOARES, Luiz Carlos; VAINFAS, Ronaldo. Nova história militar. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINVAS, Ronaldo. Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 113-132. SOARES, Mariza. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010. SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência. Mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Polícia, violência e patrimonialismo em São Paulo (1889-1930). Métis: história & cultura, vol. 6, n. 11, jan/jun 2007, p. 69-91. SOUZA, Marcelo Weitzel Rabello de Souza. Esse tal crime propriamente militar. Busca de um conceito. Revista do Ministério Público Militar. Ano 38, n. 23 (nov. 2013). Brasília: Procuradoria-Geral de Justiça Militar. STOPPINO, Mario. Autoridade. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11. ed. Tradução de Carmem C. Varriale et al. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. THOMPSON FLORES, Mariana Flores da Cunha; FARINATTI, Luiz Augusto. A fronteira manejada: apontamentos para uma história social da fronteira meridional do Brasil (século XIX). HEINZ, Flavio. Experiências Nacionais, Temas Transversais: subsídios para uma história comparada da América Latina. São Leopoldo, Oikos, 2009. THOMPSON, E.P. A formação da classe operária: A arvore da liberdade. 2. ed. Tradução Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

277

TRAMONTINI, M. J. A Organização Social dos Imigrantes: A colônia de São Leopoldo na fase pioneira (1824-1850). São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000. TREVISAN, Leonardo. O Pensamento Militar Brasileiro. São Paulo: Global Editora, 1987. TUCCI, Rogério Lauri. Tribunal do júri: estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história. Micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002. VEIGA-NETO, Alfredo. De geometrias, currículo e diferenças. In: Educação & Sociedade, ano XXIII, n. 79, Agosto de 2002. VICENZI, Renilda. Mito e história na colonização do oeste de Santa Catarina. Chapecó, SC: Argos, 2008. VIDAL, Dominique. Vivre sur Fond de Frontiéres. Les Migrants du Mozambique à Johannesburg. Cultures & Conflits (em ligne), n. 72, Frontiéres et Logiques de Passage, 2008. VILLAS BOAS, Gláucia; GONÇALVES, Marco Antônio. O Brasil na Virada do Século: o debate dos cientistas sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. WACHOVICZ, Ruy. Paraná: a comunicação histórica do mar-oceano ao rio-mar. Revista Paranaense de Desenvolvimento. Curitiba, n. 83, set-dez. 1994, p. 85-97. WACHOWICZ, Ruy Cristovam. Paraná, Sudoeste: Ocupação e colonização. 2. ed. Curitiba: Vicentina, 1987. WADI, Yonissa Marmitt. A História de Pierina: Subjetividade, crime e loucura. Uberlândia, EDUFU, 2009. WEIGLEY, Russel F. (Org.). Novas dimensões da história militar. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1981. WENCZENOVICZ, Thaís Janaina. Montanhas que furam as nuvens! Imigração Polonesa em Áurea (1910-1945). Passo Fundo: Ediupf, 2002. WERLANG, Alceu. Disputas e ocupação do espaço no oeste Catarinense. Chapecó, SC: Argos, 2006. ZENHA, Celeste. As práticas da Justiça no cotidiano da pobreza. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 5, n. 10, março/agosto de 1985, pp. 123-146.

278

ANEXOS

ANEXO A - FÉS DE OFÍCIO

279

FRANCISCO CORRÊA TORRES Em maio de 1894 foi honrado pelo Comando do Regimento pela dedicação com que o “coadjuvou nos mistéres do seu posto”. 1899 foi incluído no estado efetivo do Regimento. Em junho foi louvado pelo Comando do Regimento, ao deixar esse cargo, pelo bom desemprenho de suas obrigações como subalterno. Em setembro de 1899, foi elogiado pelo Comando do Regimento pela sua boa coadjuvação e esforços empregados nos serviços. Em outubro de 1899 foi enviado a Guarapuava, sendo novamente elogiado pelo valioso auxílio que prestoulhe na espera das suas atribuições. Em dezembro “passou a ausente por excesso de licença” (havia recebido licença de 30 dias para tratamento de saúde). Passou a ser considerado na capital do estado. Em fevereiro de 1900 foi novamente elogiado pelo “modo verdadeiramente” patriótico com que se houve no serviço de segurança de que se achava investido na cidade de Guarapuava, demonstrando saber sacrificar-se pela Pátria, uma vez que esta necessita de seu efficaz concurso”. Foi aprovado plenamente em exame pratico d’arma de Cavalaria que prestou para o posto de Capitão. Foi preso 8 dias por haver se exibido em estado de embriagues (está sublinhado) e sujamente vestido ante a população dessa cidade que se achava em festa. Em abril foi louvado pelo zelo, dedicação e lealdade que prestara ao Comando na esfera de suas atribuições. Em Maio seguiu para a Comissão Estratégica. Em Agosto apresentou-se preso para responder a Conselho de investigação, por pesar sobre si a responsabilidade dos fatos que se deram no Jangada. Em Dezembro foi “cassada a permissão que obtivera dessa auctoridade, para ir a caza de sua família competentemente escoltado, digo, acompanhado, em vista do abuso cometido em quinze do corrente que tão levianamente compromettera aos seus companheiros. Em 1901, em Janeiro seguiu para o Jangado, onde foi ver-se processar. A vinte e oito passou a responder a Conselho de Guerra.

SEBASTIÃO BENTO THOMAZ DO NASCIMENTO Filho de Severino Bento Thomaz do Nascimento, nascido em 1882, natural do Paraná, cor parda, cabelos carapinhos, 1,66 m de altura. 1898. Verificou praça voluntariamente no Batalhão do 5º Distrito Militar, incluído no estado efetivo desta companhia e ficou no ensino de recrutas. Impedido de 3 a 18 de setembro por falta de revistas. Preso para uma averiguação, preso por oito dias por ter agredido a um seu companheiro, travando-se de razões no refeitório e dado lugar a que se quebrasse 10 pratos. Ficou detido no quartel, ficando obrigado a no prazo de oito dias apresentar o sabre-punhal de sua carabina Mauser que extraviou. Passou a empregado do rancho. Preso para averiguação e sujeito a Inquérito Policial Militar, por ser acusado de haver extraviado o sabre-punhal de sua carabina Mauser. Ficou preso por 25 dias fazendo todo o serviço pela culpa acima, levando-se em conta o tempo de prisão já sofrido e fez-se-lhe carga da importância de todo armamento. Recolhido a célula, por haver, quando saiu de guarda, entregue seu armamento com insubordinação. 1899: impedido de 11 a 15 de janeiro para uma averiguação. Prezo de 13 a 23 de fevereiro correndo em marcha-marcha uma hora pela manhã e uma a tarde porque achando-se de guarda no quartel pediu licença para jantar e só regressou no dia seguinte, depois de vencida a parada. Em março passou a ausente do quartel. Em 18 de março foi preso por 10 dias, fazendo faxinas no quartel, por ter faltado ao quartel desde a revista de recolher de doze e por uma escolta foi conduzido ao quartel. Em abril foi posto em liberdade e destacado para a Comissão Estratégica. 1900: foi preso, sujeito a Conselho de Investigação e recolhido ao xadrez do 13º Regimento de Cavalaria. 1901, a 26 de janeiro respondeu a Conselho de Investigação.

280

JOÃO ANTONIO DA SILVA Filho de Manoel Soares da Silva, nascido em 1877, no Rio de Janeiro, cor preta, cabelos carapinhos, olhos pretos, sem ofício, solteiro, 170 m. em 1894 verificou praça voluntariamente na Fortaleza de Santa Cruz, com destino ao sul, para servir por 5 anos, por ter sido julgado apto para o serviço do Exército. Em abril foi incluído no estado efetivo do 39º Batalhão de Infantaria e no da Primeira Companhia. Foi considerado recruta no ensino. Passou a prompto do ensino de recrutas por emergência do serviço. Matriculou-se na Escola Regimental. Preso de 7 a 22 de julho, em célula, a jejum de pão e água, por ter promovido desordens em uma taberna. Embarcou para a capital federal com destino a Bahia. Foi elogiado pelo tentente-coronel Clauderio de Oliveira e Cruz, comandante do batalhão, “pelo caráter de disciplina, lealdade e muita subordinação que manifestou como bravo defensor da Pátria.” Seguiu para Queimadas, daí para Contendas, para Tanquinha, para Cansanção, para Luizinquinquá, para Monte Santo, onde acampou e passou a fazer parte da Brigada, sob o comando do Coronel João Cezar Sampaio. Em setembro o comandante “louvou-o e agradeceu-lhe pela boa vontade em que concorreu para que perante as autoridades superiores mais uma vez patenteasse o batalhão garbo e disciplina já bastante reconhecidos”. De Monte Santo seguiu para Caldeirão Grande, para Sussuarana, Varzea Grande e de lá, para Canudos, onde acampou em 28 de setembro. Seguiu para Canna Brava, de lá regressou ao arraial de Canudos. “O capitão Eduardo Augusto da Silva, commandante do batalhão em sua ordem regimental numero cento e setenta e cinco de sete, disse que seria injusto si omittisse um franco agradecimento pelo heroísmo, coragem e sangue frio que demonstrou no dia primeiro, durante o assalto que nesse dia se deu contra o arraial de Canudos. Seguiu para Monte Santo acompanhando doentes e feridos do batalhão. Recolheu-se ao batalhão por ter o mesmo acampado em Monte Santo, se dali seguiu para o Riacho da Onça, depois para Causaução, para Pedras Brancas, para Quemiadas, São Salvador, onde aquartelou na Palma, em 16 de novembro. Dezembro, dia 3 embarcou para a Capital Federal onde chegou a 6, a 7 seguiu para o Paraná onde desembarcou na Ilha das Cobras, onde fez quarentena. Seguiu para Paranaguá, para Curitiba onde passou a empregado do rancho. 1898. Março foi promovido a anspeçada. Passou a prompto de empregado no rancho. Detido por 10 dias por haver estado em um baile, sem licença. 1899: em março foi designado para seguir para a colônia de Chopim. Preso preventivamente a 2 de abril e solto a 3, em que seguiu para a Colônia de Chopim, sendo incluído no contingente da dita colônia. Foi rebaixado do posto indefinidamente e preso por 25 dias em célula no 13º Regimento de Cavalaria alternados por períodos de sete dias, a jejum de pão e água, com intervalos de quarenta e oito horas a ração completa por ter se ausentado da colônia do Chopim, no dia 27 de maio, sendo preso na cidade de Ponta Grossa a 3 de junho, pelo comissário de polícia por estar cometendo furtos. Carga de 14.225 réis, importância de sua passagem e das praças que o escoltaram de Ponta Grossa à Curitiba. A 28 de julho seguiu destacado para a Conservação de linhas estratégicas. 1900: em julho foi preso, sujeito da Conselho de Investigação. Foi mandado contar pelo dobro somente para reforma o período decorrido de 9 de agosto a 5 de outubro de 1897, em que esteve em operações de guerra no interior do Estado da Bahia. 1901, em 26 de janeiro respondeu a conselho de investigação.

ALFREDO JOSÉ RIBEIRO

281

Filho de pais incógnitos, natural de Pernambuco, nascido em 1879, cor parda, cabelos pretos carapinhos, olhos pretos, cozinheiro, solteiro, 1,75 m de altura. Voluntário de 22 de novembro de 1893. Em dezembro de 1898 foi incluído no estado efetivo do 3º Regimento. Antes era do 1º Batalhão de Engenharia. Desconta em sua praça 2 anos e 10 meses que andou desertado. Foi escoltado por achar-se ausente do quartel a 19 e ter sido capturado a 23, pelo que ficou preso por 8 dias. Em 1899, em janeiro destacou para a Colônia Militar de Chapecó. Em maio foi excluído do estado efetivo por haver desertado da Colônia Militar de Chapecó. Em julho foi recebido no estado efetivo e ficou preso aguardando esclarecimentos. Foi anulada sua deserção pois ausentou-se da Colônia de Chapecó e apresentou-se em Palmeiras antes de completar a deserção. Foi preso por 25 dias em célula. Mandou-se fazer carga de 4 mil e 50. Em julho passou a empregado no rancho, e em seguida foi destacado para a Comissão Estratégica, onde apresentou-se em 06 de agosto. Em 1900, em julho, 18, recolheu-se ao destacamento em que achava ficando preso sujeito a conselho de investigação. Em 1901, janeiro passou a responder ao conselho de guerra como incurso no art. 151 do Código Penal da Armada.

HERCULANO GOMES DA SILVA

Filho de Herculano Gomes da Silva, nasceu em 1877, natural de Pernambuco, cor parda, cabelos pretos crespos, olhos castanhos, sem oficio, solteiro, 1,60 cm de altura. Voluntário por três anos, de 11 de maio de 1898. Em 1898, verificou praça voluntariamente no Quartel General do Comando do Segundo Distrito Militar, para servir por cinco anos, sendo incluído no estado efetivo da primeira companhia, e ficou considerado recruta no ensino. Em julho de 1898 foi promovido ao posto de anspeçada. Foi preso por 4 dias por não ter feito a devida continência ao cidadão Tenente Coronel Cesar Furtado de Mendonça, quando este entrava no quartel. Em agosto foi matriculado na Escola Regimental. A 26 de agosto foi rebaixado do posto por 8 dias e impedido por 4 por ter se alcoolizado quando de guarda na Delegacia Fiscal. Em setembro foi rebaixado do posto por 30 dias por ter iludido a sentinela das armas, dizendo ter licença do oficial do Estado Maior, para sair a rua, só regressando à meia noite. Em outubro seguiu em diligência para a Paraíba. Em dezembro foi rebaixado do posto por 60 dias por ter furtado de um seu companheiro uma calça de pano e duas de flanela, sendo encontradas em seu poder. Em 1899, em maio foi rebaixado do posto definitivamente e preso por vinte e cinco dias em célula por haver extraviado o seu sabre-punhal. Em 9 de junho passou a ausente do quartel, em 15 de junho apresentou-se e foi preso por 25 dias em célula por andar 7 dias ausente. Em 20 de junho foi eliminado da escola regimental. Em julho foi excluído do estado efetivo do batalhão. Em Julho, foi incluído no estado efetivo de Cavalaria deste esquadrão. Designado para um dos corpos do 5º Distrito. Deixou de recolher um capote de pano alvadio, e foi-lhe feito carga de 17 mil e 200 réis. Em agosto de 1899 passou a empregado como bagageiro do Senhor Tenente ajudante. Em 1900, fevereiro foi impedido por 8 dias, por ter faltado a parada achando-se escalado para a guarda. Em 15 de março seguiu destacado para a Comissão de Estradas Estratégicas. Em abril foi promovido a anspeçada e em seguida a cabo d’esquadra. Em julho recolheu-se ao destacamento, ficando preso, sujeito a Conselho de Investigação. Em outubro foi rebaixado do posto definitivamente, sendo ainda mandado submeter-se a novo conselho de investigação, por ter se aproveitado, na noite do dia 2 do estado de embriaguez de um seu companheiro que se achava recolhido no xadrez,

282

servindo-se do mesmo para a pratica de atos imorais, resultando a baixa do mesmo. Em 1901, janeiro passou a responder a conselho de guerra. Preso pago de soldo e gratificação.

ANEXO B - DEFESAS QUE OS RÉUS APRESENTARAM AO CONSELHO DE GUERRA

FRANCISCO CORRÊA TORRES No dia 10 de junho do anno p. f. na colônia militar General Carneiro, em casa do polaco Mikilita, soldados daquelle destacamento entraram em lucta com diversos polacos. A lucta foi renhida e sangrenta. O resultado dessa lucta foi a deliberação tomada e executada immediatamente de ir-se pedir providencias a auctoridade competente. O capm. Amorim, segundo documento existente nos autos, encarregou-me de ir apaziguar o conflicto. Parti para

283

esse fim com as praças que me vieram buscar, Sebastião do Nascimento e João Antonio da Silva. Ao chegarmos ao local do conflicto, eu e os meus comandados que eram todos os que depõem neste processo, na qualidade de co-réos, fomos recebidos pelos polacos a tiros, garrafadas e pedradas. O aspeçada Liberalino (sic) jazia por terra, sem sentidos. Havia ódio de parte a parte, rugidos de ódio, resultado da lucta precedente. Logo de chegada, travou-se novo conflicto, que eu não pude conter, ninguém poderia, e dentro do qual eu me vi arrastado, envolvido na onda fatal dos acontecimentos, sendo que apesar da recepção que tivemos, as minhas intenções não eram aggressivas. Eu trazia commigo a idéa (sic) de harmonizar as cousas. E de facto, o Cabo Herculano (de acordo com o seu primeiro depoimento mais espontaneo e sincero do que os outros) esteve a meu lado e viu quanto reluctei para conter os animos, exaltados pela cólera, pela sêde de vingança nascido do amôr próprio em sangue. As praças, diante da provocação brutal dos polacos, nada queriam, nem podiam talvez attender. O ódio as cegara, a agressão insólita dos polacos atirando logo em começo desse conflicto João Antonio da Silva por terra, sem sentidos, com uma cacetada vibrada sobre a cabeça, as garrafadas, os tiros, as pedradas, tudo isso transtornava os espíritos por completo, explodia em fervores sinistros, lançava a confusão e a horror no meio da noite pavorosa. Imaginai, snrs juízes, em condições tais, como a minha presença que as praças invocaram, tirando-lhes a responsabilidade directa, dava-lhes sobretudo o prazer de satisfazer os ódios que a brutalidade de polacos ébrios excitava até a loucura, não permitindo nenhum modo sique de intervenção pacifica. Eu não tratarei de descrever o conflicto, apenas direi que reinou durante todo o tempo em que se deu a maior confusão possível. Praças e polacos confundiram-se no meio dos tiros e das facadas, que partiam de uns e de outros. Houve mortes e muitos ferimentos. Morreram Mikilita e o menor Lucio. Foram feridos: Carpe Muzica, Onofre Orodstze, e as praças Marcelino Pereira do Nascimento, Liberalino de Paula Costa, Sebastião Bento Thomaz do Nascimento, Alfredo José Ribeiro, Manuel Joaquim de Araujo. Em consciência, snrs juízes, no meio de um conflicto, á noite, entre homens ébrios e cheios de ódio, quem pode affirmar quais foram e quem os deu, os autores deste ou daquele de delicto? Quem póde, em consciência, responsável pelas consequências de um conflicto que arma assim, de um momento para outro, bruscamente, inesperadamente, á semelhança de uma tempestade? A mim se me apresenta como o principal auctor desse tumulto e das suas lamentáveis consequências. Respondamos com a lei. Quais são as pessoas que me acusam como tal? Pessoas da família de Mikilita, amigos, patrícios e co-réos. Diante do Direito essas pessôas podem verdadeiramente ter o valor de testemunha, que, na frase de Bentham, são os olhos e os ouvidos da justiça? Vejamos. Entre os polacos, a primeira que se nos apresenta é Anastacia Mikilita, mulher de Estephanio Mikilita, uma das victimas. Analysemol-a. No depoimento que fez no conselho de investigação, perguntada si sabe com que armas foram feitos os ferimentos em seu marido e quaes os autores desses ferimentos, respondeu que não sabe quaes as armas nem quaes os autores dos ferimentos. Perguntada mais, si no conflicto houve tiros e quem os deu, respondeu que nada sabe a esse respeito, porque nada viu. Agora vêde: No depoimento feito em conselho de guerra, respondeu que viu o alferes disparar o revólver na noite escura, e viu as carabinas dispararem. - Stepanhio Dombrosky, segunda testemunha. Viu o alferes, armado de revolver, mas não o viu disparar essa arma. Nada entende de portuguez; para depor precisa de interprete. Mas no meio do horrível conflicto onde ninguém se entende, o homem que não entende Portuguez, tem o dom de entender a voz de fogo, e de saber que essa voz é do alferes! Telepathia com certeza.

284

- A testemunha Onofre diz que o alferes disparou não um revólver, mas uma arma grande e isso viu por ser noite de luar. As demais testemunhas dada mais adiantaram sobre os facto, tudo sabem por ouvir dizer. Eis ahi, snrs juízes, o depoimento testemunhal dos amigos, patrícios e parentes do infeliz Mikilita. Além de contradictorios, como vistes, ellas trazem em si a macula original. São almas empenhadas em lucros certos, em indenizações largas e apetitosas. Nenhum de vos ignora a cobiça viroosa (sic) que reina no coração desse povo. Desde que lhe acenam com a esperança de lucros fabulosos, é capaz de tudo. Accusa pai e mãe si for mister. Accusa, accusa, accusa. Accusa a torto e a direito, não pelo interesse da justiça, mas pelo interesse das algibeiras. E é tal a precipitação em accusar que pouco se lhe dá de ir deixando a cada passo, aqui e alli, o sulco da contradicção flagrante, e onde vai brilhar mais tarde, felizmente, a luz serena da razão. Quando a justiça militar apresentou-se na Colonia General Carneiro, lugar onde não fui ouvido, os polacos fizeram uma procissão de lagrimas e de horrores. Era um desfilar de aleijados, cegos, mudos, paralyticos. E tendo como alviu (ininteligível?) do alferes, e tudo por sete contos de reis (esclarecer melhor), pouco mais ou menos! Que fé póde merecer o depoimento dessas testemunhas? No seu Tratado de Provas, Mittermaier, um dos assombros da jurisprudencia, entre as razões de duvidas da fé devida á testemunha, apresenta como a causa mais séria de suspeição o interesse que a testemunha pode ter no resultado geral do processo. “E concordarão, diz aquelle respeitável jurista, em que a paixão ou o interesse que se póde ter em fazer declarar culpado o accusado, são assaz fortes para impellir á mentira.” Helie, o notável Helie, em sua conhecida obra Instruction Crimminalle, tratando da prova testemunhal, tratando da prova testemunhal, chama-a de maravilhoso instrumento da verdade, mas como todas as causas humanas cheia de imperfeições e debilidades. “Todos os actos humanos, diz elle, recentem-se das suas próprias fraquezas e dos seus próprios prejuízos. O que a testemunha vê ou crê vêr, nem sempre é o que é. É fácil de indicar as principais causas dos seus erros. A mais temível é o interesse pessoal: animado de um interesse qualquer, o homem não póde ser mais imparcial; sua consciência se perturba; elle não contempla as cousas sinão atravez dos prejuízos sofridos ou dos interesses a lucrar. O interesse ou a presunção trahem-se a cada momento nas suas declarações, nos termos que a testemunha emprega, nos factos sobre os quaes insiste, e naqueles que de proposito cala.” Feita esta curta analyse, de novo perguntar-vos-hei, snrs juízes: que fé nos pode merecer o depoimento dessas testemunhas, de modo que por elle possa um homem ser condenado perante aquelles que o vão julgar? Cumpre-me agora abusando ainda da vossa paciência preciosíssima, lançar um golpe de vista sobre o depoimento das praças, que depuzeram neste processo e que todas entraram no conflicto do dia 10 de Junho! Mittermaier, definindo a testemunha suspeita, diz que é aquela cujo depoimento não parece digno de inteira fé, aquella em quem motivos graves fazem suppôr terem faltado as faculdades sufficientes para observar os factos e conserval-os fielmente gravados na memoria, ou que não têm vontade firme de dizer a verdade inteira e só a verdade. Mais adiante, o mesmo illustre jurista acrescenta: – É natural que o co-réo tenha interesse directo em depôr contra a verdade. E de facto, snrs jurados, si quizesses ligar importância ao depoimento dessas testemunhas, bem difícil seria chegardes por elle ao conhecimento exacto dos factos. É uma contradicção monstruosa e de certo modo justificável. No primeiro depoimento, sem um extraordinário pavôr, alguns delles procuram aproximar-se da verdade; no segundo, porem, o temor e a covardia invadem-nos por completo e como se diz em gíria militar, desapertaram

285

para a direita. Herculano Gomes da Silva, por exemplo, no primeiro depoimento diz que esteve a meu lado durante o conflicto e viu-me reluctar no sentido de impedido, no segundo depoimento desmente tudo. Marcellino do Nascimento diz que o auctor dos tiros foi Herculano e conta que o mosquetão estava em suas mãos, mas que elle o passou descarregado para as mãos de Herculano que com elle fez fogo, a minha ordem! É (ilegível) e doloroso. Um atira a culpa sobre o outro, Marcellino sobre Herculano, Herculano sobre Sebastião do Nascimento, que atira sobre outros, e todos á una voce, esquecidos do que haviam affirmado, num desespero de causa, covardes e mentirosos, descarregam tudo sobre as minhas costas que, na verdade, pobre de mim! são as mais largas e as mais robustas e podem supportar todo o peso as mais tremendas responsabilidades. Como vedes, nenhum valor podem offerecer declarações desse juiz, oferecidas por homens cujo ideal único é salvar-se a todo o pano da responsabilidade que lhes possa caber, ou como diz Mittermaier já citado, é o interesse directo em depôr contra a verdade. Os mais conscienciosos entre elles fazem como Manuel Joaquim de Araujo, tratam de se metter nas encolhas, nada viram, nada sabem. Qual a matéria da accusação que se póde seguir contra mim, snrs? A de ter dado lugar ao conflicto, cujos resultados foram graves e funestos? Mas eu compareci ao local do conflicto, em cumprimento de uma ordem superior, e não só não dei tiros, ocmo posso provar com o depoimento do Alferes Amorim que viu logo depois do conflicto o meu revólver carregado, como também não ordenei tiros. Procurei manter a ordem que um ódio tremendo desorganisara, antes da minha chegada, sendo que o sargento do 13º Regimento de Cavalaria Iphigenio Xavier declara ter ouvido os soldados Sebastião Thomaz do Nascimento e João Antonio da Silva declararem que quem matou Mikilita foram os solados Marcellino e Alfredo, antes de ter eu chegado ao local do conflicto. Não houve da minha parte nem negligencia, nem imprudência no cumprimento da ordem do superior. A recepção por parte dos polacos, os tiros, as pedradas, as garrafadas demonstraram a forca completamente. Agi como um homem e como um militar, de accôrdo com as circunstancias desesperadoras. Mais nada. E por isso conto com o vosso espirito recto e espero das vossas consciências penas a justiça que nesta hora é a absolvição. Curityba, 7 de Maio de 1901 Alferes Francisco Corrêa Torres 1º Quesitos de defesa: Sabe si o revólver do alferes estava carregado logo depois do conflicto? 2º Ouviu a declaração dos soldados Sebastião Bento Thomaz do Nascimento e João Antonio da Silva, dizendo que Mikilita e Lucio foram mortos no primeiro conflicto? Curityba 7 de Maio de 1901. Alferes Francisco Corrêa Torres

SEBASTIÃO BENTO THOMAS DO NASCIMENTO Senrs., Presidente e mais juízes do Conselho de Guerra Como curador do réo soldado do 39º Batalhão de Infantaria Sebastião Bento Thomaz do Nascimento, venho perante vós apresentar a defesa que lhe é facultativa.

286

Digníssimos juízes, não vou negar á evidencia, o crime de que é accusado o meu constituinte, venho apenas demonstrar que, si crime houve, foi elle commettido em cumprimento de ordem. E isso é fácil de vêr-se, attendendo-se a que o meu constituinte soldado Sebastião se achava no dia do conflicto, despensado para sahir do acampamento pelo Alferes Francisco Correia Torres do 13º Regimento de Cavalaria e que era o commandante do destacamento. Por esse effeito, andava á passeio e ao passar pelas proximidades de lugar onde se dava o conflicto e observando que ali se achavão praças n’elle envolvidas, immediatamente, correu a dar parte do que vira ao citado Alferes Torres commandante do destacamento. Este o fez voltar em sua companhia, dando-lhe uma carabina Mannlicher e ao chegar perto do lugar do conflicto lhe ordenou o mesmo Alferes que a entregasse a outra praça e essa então por ordem do Alferes Torres fez fogo contra os polacos, resultando a morte de um e ferimento de outros. Dado o caso de ter sido o meu constituinte o auctor de semelhante scena de selvageria, ainda mesmo assim a responsabilidade não lhe poderia caber, por isso que operava sob ordem immediata do seu commandante que ao commetter este grande abuso de autoridade, gritava ‘Matem que eu respondo’. É sabido que em face da lei não podemos cumprir ordens absurdas; mas, também é sabido que o espirito de semelhante Lei ainda não poude ser comprehendida pelos nossos soldados, que em sua totalidade emergem da ultima camada social; por consequência alheios a sublime luta do espirito que sabe distinguir o bem do mal, a ordem da desordem e acredito mesmo que o meu constituinte, e as demais praças envolvidas n’este conflicto se tivessem a inteira compreensão dos seus direitos e deveres, por certo não cumpririão a ordem que lhes foi dada pelo Alferes Torres e quase que affirmo, sem receio de errar, que o fizeram, simplesmente, com receio de serem julgados mais tarde pelo crime de desobediência previsto em nossas Leis. São estes, Senrs. juízes, os argumentos que apresento para resalvar o meu constituinte desse marulho, déssa confuzão, que faz o objecto do presente processo. Confio portanto na lucidez do vosso espirito para que não veja periclitar direitos, quando pela leitura dos autos apenas vê-se, sem auxilio de lentes, o responsavel directo, moral e material, pelo crime a que, por dever de officio, foi arrastado o meu constituinte. Justiça, Senrs. juízes. Curityba 9 de Maio de 1901. Narciso Antonio Bisarro. Alferes, curador.

HERCULANO GOMES DA SILVA Snr. Presidente e mais membros do Conselho de Guerra Defeza Com a devida vênia e autorizado pelo favor que me foi concedido venho submetter à aprecciação dos Senrs. Officiais, membros d’este Conselho, as considerações que julgo conveniente para destruir por completo as accusações que me foram assacadas e que deram origem à minha pronuncia. Quando mesmo por qualquer circunstancia eu estivesse inhibido de gozar d’esse favor penso que bastariam os depoimentos que fiz em todo este processo para evidenciarem a minha nenhuma culpabilidade. Tanto o q. fiz após o facto em questão, ainda quando estavam

287

recentes e por conseguinte mais prezentes as suas peripeciais, como as posteriores para os quaes houve tempo sufficiente, de estudos e reflexões, nada mais significam do que a expressão da verdade que deve ser o apanagio do soldado, que sabe compenetrar-se de sua nobre e elevada missão. Como, porem, na marcha que naturalmente o processo seguio, surgiram depoimentos de testemunhas, que, como naufragos desesperados lançam mão de todos os meios de salvamento sem refectirem que muitas vezes compromettem a si e a outros, quando um pouco de sangue frio e de fé seria bastante para evital-o, sou forçado a vir occupar a preciosa attenção de Vas. SSas. Com as considerações que se vao seguir, nas quaes pouco me explanarei, limitando-me tão somente a refutar os pontos de accusação que me dizem respeito. - O Cabo Marcelino Pereira do Nascimento em seu primeiro depoimento declara que por ordem do Snr Alferes Torres, recebeu o mosquetão sem o cartuchame das mãos do soldado Sebastião e em seguida passou-o a outro ainda por ordem do mesmo Senhor official, afim de conduzir um polaco preso ao acampamento. Ora, dado o cazo de tudo isso ter-se passado a pequenos intervallos, no ponto em que formos encontrados pelo Snr Alferes, isto é, a meio kilomentro do lugar em que se travou o conflicto e devendo esse cabo executar immediatamente a ordem de condusir o polaco prezo ao acampamento, para onde devia pois ter-se dirigido, como se explica que elle mesmo venha affirmar que na occasião do conflicto me viu fasendo fogo com aquella arma? Só um grande poder vizual o faria vencer não só a distancia que o devia então separar de nós, como a escuridão da noite, poder que eu supponho muito extraordinário. Por outro lado como é que no primeiro depoimento quando ainda os factos estavam mais recentes, elle não declara o nome do Soldado a quem passou a arma por ordem do mesmo Snr official, e em outros posteriores para os quaes houve tempo de sobra para estudar e refletir, elle diz que o fez a mim? Neste depoimento houve confuzão ou desejo de me comprometter. A arma em questão só me foi entregue quando já o segundo conflicto tinha terminado e na occazião em que nos devíamos retirar conduzindo os polacos presos. Essa é que é a verdade. O soldado Benjamim Dorotheu declara que não tomou parte no conflito por achar-se dezarmado, más que no entanto donde se achava me via fazer fogo com aquella arma. Em primeiro lugar julgo inadmissível a prudência desse soldado que impassível assistia, com certeza, a distancia, uma luta em que estavam empenhados companheiros e um official, não se movendo nem ao menos levado pela generosa intenção de soccorrer algum delles que por ventura estivesse ferido. Por outro lado também me parece surprehendente o sangue frio e o alto poder vizual que permittiram-lhe na confusão de um conflicto e através da escuridão, pois esse se feria entre déz e uma hora da noite, ver-me distintamente no vulto que fasia fogo com a alludida arma. O Soldado Tito Corrêa de Mello diz que na occasião do conflicto escondeu-se no matto próximo a caza e d’ahi esse via dar tiros com o mosquetão. Esse companheiro que declara ter recebido ordem de um Snr official para ir prender os polacos e se esconde no matto próximo a caza não poderia estar em condições de me distinguir no conflicto, já porque era noite e já porque é de suppor, que praticando a fraquesa de esconder-se o tivesse feito mantendo-se a distancia e fóra do alcance dos tiros dos mesmos polacos que indubitavelmente estavam munidos de armas de fogo. O Anspeçada José Freire da Silva delcara que viu o Snr Alferes Torres ordenar ao soldado Sebastião a entrega da referida arma a mim. O próprio Snr Alferes Torres que julgo o

288

mais competente para saber quem condusio essa arma em todo tempo que decorreu de sua partida do acampamento até o final do conflicto, absolutamente não fez á mim a menor referencia. Em seus depoimentos elle affirma que entregou-a ao soldado Sebastião e este conduziu-a até o momento do conflicto, no qual envolveu-se levando-a consigo. Penso que esse anspeçada está em idênticas condições ao soldado Tito Corrêa de Mello, porque elle mesmo declara que recolheu-se ao matto próximo a caza para onde arrastou o soldado Liberino que se achava ferido e por conseguinte não podia ter me distinguido como diz. Outra testemunha que diz ter-me distinguido fazendo fogo com o mosquetão é a menina Serafina. Essa não disse a verdade porque sendo o conflicto á noite e como naturalmente não é aceitável que estivesse a tão curta distancia de mim que tao facilmente me podesse distinguir, e por conseguinte no meio do conflicto que travou-se fora da caza, com certeza me confundio com algum outro. Em todos esses factos se algum crime cometti consiste simplesmente em andar a passeio com meus companheiros pela Colonia e procurar apasiguar um conflicto em que infelismente se envolveram alguns d’elles, provocados pelos polacos. A minha presença no segundo conflicto se justifica do mesmo módo porque ahi se achavam todos os outros companheiros, já então em maior numero, a maior parte dos quaes foram julgados izemptos de culpa. No decorrer da luta na qual me envolvi, bem contra gosto, simplesmente procurei deffender-me e defender a meus Companheiros principalmente o Snr Alfr. Torres ao lado de quem permaneci quasi sempre, sem ter tempo de vêr claramente qual d’elles se achava armado com o referido mosquetão, sabendo apenas que o Cabo Marcelino éra quem carregava porque foi quem m’o entregou quando terminou o o Conflicto. É certo que sendo a luta a noite e achando-se os polacos armados com arma de fogo, bem podia acontecer que na confuzão resultante, elles mesmo se ferissem uns aos outros. Escudado na tranquilidade de minha Consciencia que absolutamente não me accuza de n’enhum delicto, mais uma vez e peço a preciosa attenção dos Snrs officiaes que constituem este Conselho e principalmente para os depoimentos que figuram n’este Conselho de guerra, nos quaes não ser no do Cabo Marcelino não se encontra a menor referencia a mim. Confiado na justiça que caracteriza os Snrs officiaes que fazem parte d’este Conselho aguardo Sereno o meu julgamento. Coritiba, 30 de Abril de 1901. Herculano Gomes da Silva Soldado

ALFREDO JOSÉ RIBEIRO Defesa do accusado Alfredo José Ribeiro Dos presentes autos se verifica que tendo, Sebastião e João Antonio ido á casa de uns polacos, moradores na Colonia General Carneiro, afim de pedir agua, encontraram a porta da dita casa fechada, ahi bateram e em seguida ouvimos o clamor das mulheres dos polacos, que gritavam por socorro. Accudiram os polacos armados de páo e dirigiram-se em attitude hostil ao accusado e seus companheiros, que tiveram de abandonar esse lugar, devido á superioridade numerica do inimigo, indo se colocar a meio kilometro de distancia. Então o

289

anspeçada José Freire ordenou aos indiciados Sebastião e João Antonio que fossem dar parte do occorrido ao Alferes Torres, commandante do destacamento estacionado na zona estratégica do Estado e co-réo neste processo. Este armado de revolver e mosquetão Mannlicher dirigiu-se levando de passagem consigo o accusado e o Cabo Marcellino, ao local onde e achavam os polacos. Ahi chegados o alferes entregou o mosquetão Mannlicher ao cabo Marcellino, mandando em seguida fazer fogo; então este disparou grande numero de tiros, ao que os polacos responderam á pao e pedra. Do conflicto havido resultou como consta dos autos a morte de dois polacos e o ferimento do accusado e dois companheiros. O co-réo Sebastião, praça do 39º Batalhão, declarou em seu interrogatório ter sido eu o provocador do conflicto. Sua declaração nenhuma prova faz, não merece a mínima fé, não só por ser una ou singular, como também por ser feita por um companheiro de armas, com quem, logo após o facto delictuoso, rompe as relações de amizade. O que mais se revela de extraordinário e admirável neste processo é a não pronuncia do Cabo Marcellino, único que armado de carabina Mannlicher fornecida pelo alferes Torres, disparou tiros sobre os polacos, como se evidencia dos depoimentos das testemunhas e do corpo de delicto, onde consta que os ferimentos foram produzidos por arma de fogo e pelo diametro do orifício se infere que a arma morticida foi Mannlicher. Ora a única praça que estava armada era Marcellino, (vide depoimentos das testemunhas e interrogatórios dos co-réos, inclusive o do Alferes Torres), e tendo os polacos sido feridos por essa arma, claro está que o autor de tanta crueldade foi o cabo Marcellino, a mandado do Alferes Commandante. Si culpabilidade existe neste processo, toda inteira deve recahir sobre o Alferes Commandante que, ao envez de apaziguar o barulho já começado, dando ordem de prizão ás praças, ordenou logo fogo, instigou-os á luta, e d’ahi originaram-se os tristes factos, que trouxeram a morte para uns e o ferimento para outros. Está exuberantemente provado que o Alferes, ao dar ordem de fogo, disse alto e bom son, que assumia a responsabilidade do que pudesse acontecer. Só uma clamorosa injustiça conservará o accusado na prisão em que se acha, afim de expiar um crime que não praticou, pois, si é exacto que tomou parte no conflicto, o que poderia elle fazer completamente desarmado, senão unicamente attender á ordem de seu superior? O accusado espera que, em vista do empenho corroborado pelas provas do processo, o conspícuo Conselho de Guerra o mande pôr em liberdade, por ser de justiça. Em 20 Abril 1901. Alfredo José Ribeiro, Soldado. JOÃO ANTONIO DA SILVA Senhor Presidente e mais membros do Conselho de Guerra Defeza Envolvido neste conselho de guerra como um dos culpado nos conflictos que se deram na colônia Lucena (sic), venho utilisar-me do favor que me foi concedido trazendo a presença dos Senhores officiaes que o compõem as provas de minha innocencia e de nenhuma coparticipação criminal nos factos que presenciei e em que me vi envolvido bem contra meu gosto. Reitero tudo quanto referi nos depoimentos que fiz em todo este processo desde o primeiro inquérito e julgo que só elles bastariam para pôr-me ao abrigo de qualquer accusação. Infelismente fui um dos que se dirigiram á casa dos polacos para pedir um pouco d’água e como essa estivesse feichada foi necessário chamar alguém da casa e por isso bateuse á porta. Tanto bastou para que os polacos que estavam próximo nos aggredissem

290

insolitamente sem que para isso tivéssemos dado o mais insignificante motivo. Desde então travado o primeiro conflicto apressei-me em ir com outro companheiro communicar o que occorria ao senhor alferes Torres, com o qual voltei, encontrando os camaradas já em caminho da colônia e a meio kilometro do lugar em que elle se travára. Isto é confirmado pelo cabo Herculano em seo depoimento. Não estive pois em todo esse primeiro conflicto, só sabendo mais tarde que dele resultaram apenas contusões e ferimentos leves. No segundo conflicto dado muito tempo depois, eu me vi envolvido como os demais camaradas e nelle limitei-me apenas em defendel-os e também defender-me do ataque que os polacos, já então em maior numero, nos trouxeram fazendo uso de armas de fogo, páo e arma branca. É evidente, segundo penso, a minha nenhuma coparticipação criminal em todos os factos que deram origem a este conselho e isso parece tanto mais provado quanto se vê que as testemunhas, quer civis, quer militares, que nelle figuram absolutamente não me fazem a menor accusação. Creio mesmo que o artigo 37, § 6 do Codigo Penal da Armada prevê sabiamente este meu caso e por isso não vacilo em afirmar a minha innocencia, esperando que os senhores membros do conselho com o critério que lhes é peculiar encarem a minha situação e façam-me a mais escrupulosa justiça. Quartel do 13º Regimento de Cavallaria em Curityba, 8 de Maio de 1901. A rogo do soldado João Antonio da Silva. (Ilegível) Pereiroa (sic) Ribeiro, soldado.

[PDF] Ver/Abrir - Free Download PDF (2024)

References

Top Articles
Latest Posts
Recommended Articles
Article information

Author: Catherine Tremblay

Last Updated:

Views: 6424

Rating: 4.7 / 5 (47 voted)

Reviews: 94% of readers found this page helpful

Author information

Name: Catherine Tremblay

Birthday: 1999-09-23

Address: Suite 461 73643 Sherril Loaf, Dickinsonland, AZ 47941-2379

Phone: +2678139151039

Job: International Administration Supervisor

Hobby: Dowsing, Snowboarding, Rowing, Beekeeping, Calligraphy, Shooting, Air sports

Introduction: My name is Catherine Tremblay, I am a precious, perfect, tasty, enthusiastic, inexpensive, vast, kind person who loves writing and wants to share my knowledge and understanding with you.